verve

RevistaSemestraldoNu-SolœNúcleodeSociabilidadeLibertáriaProgramadeEstudosPós-GraduadosemCiênciasSociais,PUC-SP 1

2002

VERVE:RevistaSemestraldoNU-SOL-NúcleodeSociabilidadeLibertária/ProgramadeEstudosPós-GraduadosemCiênciasSociais,PUC-SP.Nº1(maio2002-).-SãoPaulo:oPrograma,2002- Semestral 1.CiênciasHumanas-Periódicos.2.Anarquismo.3.AbolicionismoPenal. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. ISSN 1676-9090 CDD 300.5 VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Lucia M. M. Bógus e Vera L. M. Chaia. Editoria Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária. Nu-Sol Acácio A. Sebastião Jr., Ana Luiza C. Rocha, Andre R. Degenszajn, Beatriz S.Carneiro,EdsonLopesJr.,EdsonPassetti(coordenador),FranciscoE.de Freitas, Guilherme C. Corrêa, Heleusa F. Câmara, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da Silva, Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Rogério H. Z. Nascimento, Salete M. de Oliveira, Thiago M. S. Rodriques.

Conselho Editorial Adelaide Gonçalves (UFCE), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Margareth Rago (Unicamp), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP). Conselho Consultivo AlexandreSamis(CentrodeEstudosLibertáriosIdealPerez–CELIP/RJ),ChristianFerrer(UniversidadedeBuenosAires),DorotheaV.Passetti(PUC-SP),FranciscoEstigarribiadeFreitas(UFSM),HeleusaF.Câmara(UESB),JoséCarlosMorel(CentrodeCulturaSocial–CSS/SP),JoséMariaCarvalhoFerreira(UniversidadeTécnicadeLisboa),MariaLúciaKaram,Paulo-EdgarddeAlmeidaResende(PUC-SP),PlínioA.Coelho(InstitutodeCulturaeAçãoLibertária–ICAL/SP),SilvioGallo(Unicamp,Unimep). ISSN 1676-9090

revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me! verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal.

SUMÂRIO Algumas Observações Provisórias a Respeito do Estado Fundado no Amor Max Stirner 13 A Arte da Amizade Edson Passetti 22 Ocre Salete Oliveira 61 Limiares Thiago Rodrigues 65 Equívocos dos Movimentos Sociais Anti-globalização José Maria Ferreira Carvalho 75 O-BE-DE-CER: o “abcd” do Princípio da Autoridade, ou da Covardia. Rogério Nascimento 90 Conversas com um Abolicionista do Sistema Penal Entrevista com Louk Hulsman 106 Abram as Prisões, Dispersem as Tropas Manifesto Surrealista 122 A Escola Pública numa Perspectiva Anarquista Sílvio Gallo 124 Escola-Droga Guilherme Corrêa 165 Antimilitarismo e Anarquismo Jaime Cubero 183 Revolta e Ética Anarquista Nildo Avelino 198 Anatomia da Crise: do Sindicalismo Revolucionário ao Colaboracionismo Cooperativista. Alexandre Samis e Renato Ramos 211 Mistério e Hierarquia Christian Ferrer 226 Analíticas Anarquistas do Federalismo Natalia Montebello 242 RESENHAS A Dialética da Autoridade e da Liberdade Paulo-Edgar Resende 260 Visões do Estado Andre Degenszajn 264 Luce em Travessias, Memórias e Percursos Anarquistas Edson Lopes 266 Ousar ser uns Thiago Rodriques 269 Estrela de Vestido Azul e Ïculos Escuros Salete Oliveira 273

amigos,anossaépocanãoestádoente.nãoatorturetambémtentandocurá-la,apresseasuaúltimahoraabreviando-a,ecomonãoépossívelcurá-la,deixe-amorrer. MAXSTIRNER

algumas observações provisórias arespeito do estado fundado no amor

O “Memorandum” do Barão de Stein é universalmente conhecido. É a esse texto que remonta a opinião segundo a qual a época da Reação que mais tarde fará a sua aparição, ter-se-ia afastado dos princípios aí expressos, tendo-se orientado para outra forma de pensar; assim, o liberalismo dos anos 1808, apósumacurtaduração,teriasoçobradonumsonoque prosseguiria ainda nos nossos dias. Todavia, pode pôrse em dúvida o pretenso desconhecimento desses princípios; mesmo a um olhar superficial deveria parecer surpreendente que tenham sido as mesmas pessoas cheias de energia, que aliás se pretende que ostentaram alguns anos antes, nas circunstâncias mais tumultuosas, um espírito liberal, afastarem-se desses princípios, sem cerimônia, pouco tempo depois, tomando uma via oposta. Não se reconheceu finalmente, que a opinião durante muito tempo sustentada, segundo a qual a Revolução Francesa teria sido infiel a si própria devido à mudança de direção que * SéculoXIX,autordeumúnicolivroealgunsescritosesparsosanarquizantes.Textosdispersos.Lisboa,ViaEditora,1979.Publicadooriginalmenteem1844,naGazetaMensaldeBerlim,deLudwigBuhl.TraduçãoparaoportuguêsdeJ.BragançadeMiranda. 13

lhe foi imprimida pelo império napoleônico, assentava apenas num erro e não num ajuizamento superficial? Por que razão não existiria entre o liberalismo de Stein e o dito período de Reação que se seguiu, um encadeamento semelhante? Nesta perspectiva examinemos de perto o Memorandum de Stein. Stein, e isto salta imediatamente à vista, tem em comum com a Revolução Francesa duas finalidades — aliberdadeeaigualdade;trata-seentãodesaberomodo como ele caracteriza uma e outra. Relativamente à igualdade, ele reconhece que a preponderância das pessoas favorecidas por privilégios devidos ao seu estado, deveria ser eliminada: para isto precisava-se substituir a multiplicidade dos governos por uma completa centralização. Deveria terminar também essa forma de “vassalagem” que possibilitava a dominação dos súditos de um soberano, o rei, por numerosos pequenos senhores: deveria subsistir somente uma forma de vassalagem, universal, que precisamente consolidaria a deposição desses numerosos senhores. As forças de polícia privadas também deveriam desaparecer a fim de que apenas uma única polícia vigiasse todos súditos. A justiça senhorial, apanágio de alguns senhores privilegiados por antigos direitos, deveria ceder perante uma única justiça, a da monarquia, dependendo os juízes apenas “do poder supremo”. Através desta centralização o interesse de todos fica centrado num único ponto: o rei. Doravante, apenas se está submetido a ele, está-se desobrigado de qualquer vassalagem para com outros súditos; está-se sob a dependência de suas forças de polícia exclusivas. Somente à justiça real cabe pronunciar uma sentença. Já não se depende da vontade das pessoas de alto nascimento, mas exclusivamente dos altamente colocados, daqueles que o rei, para realizar o seu querer , introduz em seu lugar e coloca acima das pessoas que eles deverão cuidar em seunomeouseja,emsuma,osfuncionários.Adoutrina da igualdade tal como se acha expressa no Memorandum equivale portanto a colocar cada um ao mesmo “nível” de submissão. Nenhum súdito do rei poderá ser, simultaneamente, súdito de um vassalo. As formas de dependência, devidas às diferenças de condição, seriam assimiladas, tornando-se igual para todos. ÉimpossívelconfundiresteprincípiodaigualdadecomodaRevoluçãoFrancesa.Enquantoestareclamavaaigualdadedoscidadãos,adoMemoranduméaigualdadedossúditos,asubmissãolegal.Estadiferençaconseguetambémexprimir-sedeformaadequadanofatodequea“representaçãonacional”invocadapeloMemorandumdeverelatarjuntodotronoos“desejos”dossúditoscujograudesubmissãoestánivelado,enquantoqueemFrançaoscidadãostêm,expressaporintermédiodosseusrepresentantes,umavontade,muitoemborasejaumavontadedecidadãosenãoumavontadelivre.Éque,dedireito,um“súdito”nãopodefazermaisdoque“emitirosseusdesejos”. Emsegundolugar,oMemorandumnãoselimitaaexigiraigualdade,reclamandotambémaliberdadeparatodos.Daíoseguinteapelo:“Cuidaiquecadaum—éatravésdestaspalavrasqueseexprimeaigualdadedossúditos—,cuidaiquecadaumpossadesenvolverlivrementeassuasforçasnumaperspectivamoral”.Numaperspectivamoral?Quesedeveráentenderporisto?Seriaerrôneoopô-laàperspectivafísicajáqueoMemorandum“visaalcançarumaespéciemoralefisicamentemaisforte”.Tambémsómuitodificilmentesepoderiaexcluirdaperspectivamoralaperspectivaintelectual,porqueseprocuravafavoreceraciênciatantoquantopossível.Daformamaissimplesdomundo,restaemoposiçãoàperspectivamoral,aperspectivaimoral.Oraumsúditosósetornaimoralquandosaidocírculodassuasatribuições.Umsúditoque,navidadoEstado,navidapolítica,pretendesseteruma“vontade”emvezdeemitir“desejos”seriamanifestamenteimoral,porquenasubmissãosósubsisteovalormoraldosúdito—istoé,naobediênciaenãonalivredeterminaçãodesi.Assim,aperspectivamoralmanifesta-seincompatívelcomumaperspectivadeespontaneidade,comadeumquererlivre,deumaautonomiaesoberaniadavontade,ecomoapalavra“moral”estáreferidaaumaidéiadeobrigação,ter-se-áprocuradodespertarosentimentododevercompreendidocomo“livredesenvolvimentodassuasforças”.Soislivressefizerdesovossodever,éesteosentidodaperspectivamoral.Masemqueconsisteodever?OMemorandumdi-loemtermosclaroseprecisosatravésdestaspalavras,dequesefezumadivisa:“oamoraDeus,aoreieàpátria”.Desenvolve-selivrementenumaperspectivamoraltodoaquelequesetransformeporesteamor.Conferia-seassimàeducaçãoumafinalidadebemdefinida—tornava-senumaeducaçãoparaamoralidadeouparaalealdade,numaeducaçãoparaosentimentododever,aquecertamentesedeveráacrescentaraeducaçãoreligiosa;esta,aoinculcarosdeveresparacomDeus,nãopassanarealidadedeumaeducaçãoparaamoralidade.Semdúvidaé-semoralmentelivredesdeomomentoemquesecumpraodever.Aconsciência,essainstânciadamoralidade,juizdamoral,soberanadohomemmoral,dizaohomemdodeverqueeleagiucorretamente:“Oquefizfoi-meditadopelaminhaconsciência”.Masque o dever cumprido fosse realmente um dever, isso já a consciência não o diz. Ela só fala quando negligenciou oqueconsideracomotal.Aliás,oMemorandumtambém recomenda que se desperte a consciência, se impregnem os corações com o “dever para com Deus, o rei e a pátria”, se informe o espírito religioso e que se tenha o máximo cuidado com a educação e o ensino da juventude. É com esta liberdade que, segundo o Memorandum, dever-se-ia gratificar o povo: a liberdade do cumprimento do dever, a liberdade moral. Da mesma maneira que, como vimos acima, a igualdade enunciada era essencialmente diferente da que tinha sido proclamada pela Revolução francesa, dáse o mesmo com a liberdade. A doutrina da Revolução era que só é livre o cidadão soberano de um povo soberano. O ensinamento do Memorandum é que só é livre aquele que ama Deus, o rei e pátria. Ali, é o cidadão soberano que é livre, aqui, o súdito fortalecido pelo seu amor; ali, tratava-se de uma liberdade civil e aqui, de uma liberdade moral. Ealiásoprincípiodessaigualdadeeliberdade,igualdadenasujeiçãoeliberdademoral,nãoeraapanágioexclusivodosredatoresdoMemorandum,porquecorrespondiaaosentimentoprevalecenteemtodoopovo.Foicomapoionesteprincípionovoeentusiasmantequeseinvestiucontraadominaçãonapoleônica.Eramaliberdadeeaigualdaderevolucionáriastornadascristãs.Numapalavra,estefoioprincípiodopovoalemãoe,emparticular,dopovoprussiano,desdeasuasublevaçãocontraapotênciaestrangeira,duranteoperíododitodeReaçãooudeRestauraçãoaté...,bem,atéqueacabe!Deverátambémrejeitar-se,porfalsa,aopiniãosegundoaqualteriasidoumanecessidadedeliberdadepolíticaidênticaàdaRevoluçãoqueconduziuopovoàvitóriasobreNapoleão.Seoseuprincípiotivessesidopolítico,opovonãooteriaabandonadoounãoconsentirianoseuenfraquecimento.Éindevidamentequeseimputaaogovernoaresponsabilidadedeterretiradoaopovoalgoporqueesteaspiravaconscientemente.Abstraindodequesemelhantesubtraçãoéimpossível,aconteceque o governo e o povo estavam realmente de acordo em se defenderem contra a liberdade política, esse “aborto da revolução”. Isso exigiu de Frederico Guilherme III tanta dedicação e amor que este acabou por ser, por assim dizer, a encarnação acabada dessa liberdade moral, de tal modo que foi, integralmente, um homem do dever, um homem consciencioso, “o justo”! Como vemos, o amor ao dever está no centro da liberdade de moral. É costume conceder, e com razão, queocristianismo,emconformidadecomasuaessênciamaisautêntica,éareligiãodoamor.Aliberdademoral,queseresumeaummandamento—oamor,seráportantoarealizaçãomaispuraeconscientedocristianismo.Aquelequesótemamoratingeosupremo,overdadeiramentelivre,taléaproclamaçãodoevangelhodaliberdademoral.Malestaconvicçãodespontacoraçõesparaosrepletarcomabeatitudedaverdadetriunfante,aforçadodéspotaseráinevitavelmentedemasiadoínfimaparaseoporaopoderdesemelhantesentimentoeassim,ocristianismo,namaiselevadatransfiguraçãodasuaenvergaduramoral,comoamor,avançainflamandoospovosecertodasuavitória,contraoespíritodaRevolução.Estapretenderaapagá-lodasuperfíciedaterra,maselereergueu-secomtodaforçadasuanaturezaeentrounaliçacontraela,comoamor.SejaoqueforquedocristianismofoiderrubadopelosgolpesdaRevolução,oamor,asuaessênciamaisautêntica,permaneceuacoitadonocoraçãodaliberdaderevolucionária.Estaalimentavaoinimigonoseuseioetinhanecessariamentequesucumbirquandoeleacatoutambémdoexterior. Todavia,aprendamosaconhecerumpoucomelhoresteinimigodaliberdaderevolucionária.Costuma-seoporoegoísmoaoamorporqueestánanaturezadoegoístaoagirsemcontemplaçõesesempiedadeparacomosoutros.Sepostularmosqueovalordohomemestariaemserdeterminadoporsimesmoeemnãosedeixardeterminarporumacoisaouumapessoaalheias,sendoantesoseuprópriocriador,englobandoassim,numsó,ocriadoreacriatura,éindubitávelqueoegoístaéoqueestámaisafastadodafinalidadecristã.Oseuprincípioenuncia-seassim:ascoisaseoshomensestãoaquiparamim!Seelepudesseacrescentar:eeutambémestouaquiparaeles,entãojánãoseriainteiramenteumegoísta.Asuaúnicafinalidadeéadeseapoderardoobjetodoseudesejoenoseuardorperseguirá,porexemplo,umajovemparaseduzir...essa“coisa” adorável (pois, para ele, esta não passa de uma coisa). Tornar-se outro homem, fazer de si alguma coisa para merecê-la é algo que nem lhe passa pelo espírito: ele é como é. E o que precisamente o torna tão desprezível é que não se possa descobrir nele nenhum desenvolvimento, nem nenhuma determinação de si. Bem distinto é o amante. O egoísmo não muda o homem, mas o amor transforma-o “Desde que ama tornou-se uma pessoa totalmente diferente”, costumase dizer. É que, ao amar, ele faz de si qualquer coisa, destruindo nele tudo o que contradiz a amada; com a sua anuência e até com abandono, ele deixa-se determinar e, transformado pela paixão do amor, conforma-seaooutro.Senoegoísmoosobjetosnãoestão aqui para mim, no amor eu estou aqui para eles: nós somos um para o outro. Deixemos, contudo, o egoísmo entregue ao seu destino e comparemos ao invés o amor com a determinação de si ou liberdade. Através do amor, o homem determina-se, confere-se certas características, torna-se o seu próprio criador. Somente faz tudo isto tendo em vista um outro e não a si mesmo. A determinação de si está ainda dependente do outro: ela é simultaneamente determinação pelo outro e paixão: o amante deixa-se determinar pela amada. Pelocontrário,ohomemlivrenãoédeterminadonem por um nem por outro, mas puramente a partir de si. Ele “escuta-se” a si próprio e encontra nessa “escuta” de si o impulso para se determinar: “escutando-se” somente a si, ele age como um ser fundado na razão livre. Há uma diferença entre aquele que se deixa determinar por um e aquele que é a origem das suas próprias determinações, entre um homem repleto de amor e o que se funda na razão. O amor vive segundo a máxima de que cada um aja tendo em vista o outro, e a liberdade segundo a máxima que cada um aja tendo a si mesmo em vista. Na primeira, é o respeito por outrem que nos faz agir, na outra, obedeço ao meu próprio impulso.OhomemamanteageporamoraDeus,poramoraosseusirmãosnãotendo,regrageral,nenhumavontadeprópria.“Quesejafeita,nãoaminhavontademasatua”,éestaasuafórmulafavorita;ohomemderazãonãoquerrealizarnenhumaoutravontadequenãosejaasuaeconcedeasuaestimaaoqueobedeceàsuavontadepessoal,enãoaoquesegueadeumoutro.Assim,oamorpodeperfeitamenteterrazãocontraoegoísmopoisémaisnobrefazeravontadedeoutroqueasuaprópriae,realizá-ladoquedeixar-seaguilhoar,semvontade,pelaavidezexcitadadiantedaprimeiracoisaaparecida.Émaisnobredeixar-sedeterminarporoutrodoquesimplesmentenãosedeterminar,deixando-seir.Mascontraaliberdadeoamornãotemrazãoporqueésomentenelaqueadeterminaçãodesiacedeàsuaverdade.Oamorédecertoamaisbelaederradeirarepressãodesi,aformamaisgloriosadeseaniquilaresacrificar,avitóriasobreoegoísmomaisculminanteemdelícias;masaodespedaçaravontadeprópriaobstaculizaaomesmotempoaprópriavontadequeé,paraohomem,afonteprimeiradasuadignidadedeserlivre.Éporissoquenoamordeveremosdistinguirduascoisas.Emcomparaçãocomoegoísmo,ohomemcelebranoamorasuaglorificação,porqueoseramante,senãotemvontadeprópria,demonstrapelomenosvontade,diferentementedoegoísta.Eledeterminaasimesmoporquefazdesialgumacoisaporamoraooutroeporquesemetarmofoseianaformaquemaislheconvém;porseulado,oegoístaignoraqualquerdeterminação,permanecendonoseuestadogrosseiroeemnenhumgrausetornaseuprópriocriador;ohomemamanteécriaçãodesimesmopelofatodesebuscareacharnooutro,enquantooegoístaéumprodutodanatureza,umapobrecriaturaquenãosebuscanemseacha.Mascomosemanifestaoamorperantealiberdade?ANoivadeCorintopronunciouestaspalavrasquenosdesvelamocrimehorrívelqueelecometecontraaliberdade: “Aqui as vítimas caem Não são nem cordeiros nem touros, Mas vítimas humanas, Oh, coisa inaudita!” Sim, coisa inaudita, são vítimas humanas! Porque aquilo que antes de mais nada faz de um homem um homem é a vontade livre; o amor, montado nas costas do cavalo, ao declarar que o seu reino é a única fonte de beatitude, o terraço iluminado pelo relâmpago, proclama a soberania da privação da vontade. Como nem tudo se pode dizer em qualquer época, detemo-nos aqui e remetemos para circunstâncias mais favoráveis à exposição pormenorizada das manifestações do Estado fundado no amor2.Portodoladotropeçaremosentãonoprincípiodequeohomemsubmetidoaoamornãotemvontade,sótemdesejosparaexprimir,everemosquãoproféticaeraessagrandesentençadogovernadordeBerlim,ocondedeSchulenburg:atranqüilidadeéoprimeirodeverdoscidadãos!Nosbraçosdoamorrepousaedormeavontadeesóosdesejosepetiçõesestãodevigília.Masnãohádúvidadequeumcombateaindaperpassanestaépocaarregimentadapeloamor:éocombatecontraaspessoassemamor.Comooentendimentoéaessênciadoamor,comoospríncipeseospovosestãounidosporele,éprecisoexcluirtudooquetendeadesmancharessaaliança:osdescontentes(Demagogos,Carbonários,asCortesemEspanha,osNobresdaRússiaedaPolônia).Elesperturbamaconfiança,aabnegação,aconcórdia,oamor;essas“cabeçasquentes”turvamatranqüilidadesuscitadoradaconfiançaeatranqüilidadeéoprimeirodeverdoscidadãos. Nota 1 Valeriaapenafazê-loporqueéaformamaisacabada—eaúltima—doEstado(Notadoautor).

a arte da amizade

Umhomemmaduro,apósdedicarmuitosanosdesuavidaatuandodiretamenteaoladodosgovernantes,aoserdesalojadodesuastarefas,tomaainiciativadeescreverdoisestudosnormativossobreasoberaniaeosencaminhaapotenciaisgovernantes.EssehomemfoiMaquiavel.PensavanaunificaçãodaItália,extraindodosestudossobreaantigüidadeedassuasexperiênciasnadiplomaciaumagramáticadopodercentralizado.Aosoberano,governantelegítimodopovonumterritório,caberiazelarpelasuaconservaçãonogovernoprotegendoaspessoassobseucomandoebuscandounificarasarmasparagarantirnovasconquistas.Paraasegurançadetodos,osoberanoprecisaseramadoetemidopelopovo.Seporventurativerdefazerumaescolha,nãodeveráduvidar:épreferívelsertemidoaamado. No mesmo século XVI, um jovem, chamado Etienne de La Boétie, investe radicalmente contra a figura do soberanocentralizado,oUM.Numterritóriounificadocomo * Professor no Departamento de Política, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol. o da França, levanta a seguinte questão: por que escolhemos servir voluntariamente a um soberano? Para respondê-la, não se volta para o humanismo renascentista em busca das formas da antigüidade ou de uma história da origem da servidão voluntária. Suapreocupaçãoéimediataetrans-histórica.Éprecisomudar. MaquiavelviaoscostumescomofontedereferênciaparaaunificaçãoemtornodafiguradogovernantecentralizadodoEstadomoderno.ProcuravaencontrarmeiosparaafirmarumareformaitalianaeacabavaporfazerdeOpríncipeeComentáriossobreaprimeiradécadadeTitoLívio—ambosescritossimultaneamente,noexílio,em1513—duasreferênciasobrigatóriasparaaciênciapolítica.LaBoétie,publicava“Aservidãovoluntária”,agitavaosacomodadosemarcavaumadescontinuidade.Eraprecisopensareagirparamudaroscostumes.Diantedaunificaçãopeloalto,porpartedosoberano,propunhaaassociaçãoporbaixo,pormeiodaassociaçãodeamigos,dissolvendoahierarquia.DiantedamaturidadedeMaquiaveledapolíticamodernaemerge,simultaneamente,ajuventudeearadicalidadedeLaBoétie,apostandoemnovoscostumesvivenciadoscomocriançaapartirdomomentoemquecadaumdissernãoaosoberano.Paraosimdopovoaogovernante,deMaquiavel,umnãoafirmativodossúditosparaabolirestacondição,deLaBoétie. EducarascriançasparaaliberdadeéotemadoensaioXXVIdolivroIescritoporMontaigne.Curiosamente,éoescritoquepraticamenteantecedeaquelemuitoconhecido,dedicadoaoamigoLaBoétieeàamizade,odenúmeroXXVIII.AcurtaeincisivareflexãoestóicadeMontaigne,faladeumaeducaçãolivrevoltadaparaocorpoeoespíritonamesmagrandeza,naqualoinstrutornãobuscaumdiscípulo,masumaamizade.Àsuamaneira,oensaístafrancêsseopunhaàconsagraçãodosoberanonacasa,naescola,noexército,nocomandodotrabalho.Suadelicadaecontundentevisãodascoisasnãodissociavaohomemdos animais e meio ambiente. Havia, como há, muito a aprender com a natureza por sermos parte dela e não seus domesticadores. A contestação ao UM e a educação de crianças evitando a prática moderna mais eficiente da soberania — pela ameaça e o exercício do castigo —, tomou a dianteira nas análises críticas empreendidas pelos anarquismos desde William Godwin, no final do século XVIII. Proudhon,emseumuitocriticadoepoucolidoFilosofiadamiséria,encerraolivroafirmandoserimpossívelpensaremigualdadesemestética.Elaéabasedonovomundodaliberdadequeseconstróidiuturnamentelutandocontraosoberanoondequerqueeleseencontre,dacasaaoEstadoeemsentidocontrário. NapassagemdaprimeiraparaasegundapartedoséculoXIX—muitoantesdoanarquismosetornarumgrandemovimentosocialcapazdedesestabilizaroEstado,comonaComunadeParis—emBerlim,umjovemprofessor,chamadoMaxStirner,apósumasériedeescritosparapublicaçõeslocais,dedica-seaescreverumlongoeúnicolivro,chamado,precisamente,Oúnicoesuapropriedade.Paraeleaeducaçãodascriançasdependiadeumdistanciamentoradicaltantodohumanismocomodorealismoadvindocomadescobertadautilidadedoscorpos.NoopúsculoOfalsoprincípiodenossaeducação,dedica-seaoporsaberavontadeeaencontrarnacriançanãoolugardeinvestimentoemlibertação,masoprincípiodaliberação.Interessava-lheumpensarcriançaqueviesseaseoporaocasamentoindissolúvelentreféerazãocelebradopeloEstadomoderno.Aodeclarar-selivredareligião,estenadamaisteriafeitoqueconsagrarasuaproliferaçãoesubstituí-lapelarazãocientífica.DiantedossoberanosoudesoluçõesparaasociedadecomoidentificavamaspropostasdeProudhon,Stirnerprefereassociaçõeslivres,formadasporindivíduoslivreseducadosparaseremlivresparasienãoparaasociedade. Desta maneira, o percurso que seguiremos vai da maturidadedoadulto,seusabercontínuoecivilizatório,normativoeadestradordeMaquiavel,àjuventudedeLaBoétieesuaaversãoaoUMbuscandoafirmarasoberaniadoindivíduo,parachegarmosaopensarcriançadeStirnercomoformadeafirmaçãodeumÒnicodiantedetodos,muitosouseletosgrupos.Nestepercurso,nosencontraremoscomumduplofluxo.DeMaquiavelprocedeacrençaeaafirmaçãodoEstadomodernolaicoeracionaldecujacentralidadedependenossasvidas,assimcomoacontinuidadedasrelaçõesdesoberaniapelasociedade,pormeiodoscostumesfavorecemasreformasnecessáriasparaaconservação.Ograndetemadaíderivadoéodaamizadeentreospovos,coisasomentepossívelpormeiodetratadosquecelebramapaztemporária.Acentralidadedopodereaamizadeentreospovosconfirmamaguerracomomotedavida.DeLaBoétieaStirnerprocedeumoutrofluxo,heraclítico,quesevoltaparaavidalivrecombasenaamizadeassociativa,maneirapelaqualsomoscapazesdeinventaravida,umpovo,pormeiodemiríadesdeassociações. Contudo,daíjorraumterceirofluxoe,possivelmente,outrosmais.EledizrespeitoànoçãodepoderdeMaquiavelcomoforçasematuaçãoquenãodãodescansoàsutopiasequealimentarãoafilosofiacriançadeNietzsche:guerreirasemserdestruidorafazendoapareceroamigocomoomelhorinimigo.VemdeNietzscheumcaudalosorioquelamberiachoseseembebedadeoutraságuas,umatosemdescansorepletodedesassossego.Então,sealguémimaginavaqueestareflexãoiriadesembocarnameraoposiçãoentresoberaniaeautonomiaindividual,jádeveterreparadoqueseequivocou. Ame e tema seu príncipe em nome do povo e de sua vida Somosinvejososedispostosaagircomperversidade.É assim que os escritos sobre política e numerosos exemploshistóricosorientamMaquiavelaconstatarque os homens somente fazem o bem quando necessário. Na maior parte do tempo, não vacilam em caluniar. “Os povos que receberam sua liberdade são mais atrozes na sua vingança do que povos que nunca foram livres”1. Agimos por necessidade ou escolha e a coragem brilha mais intensamente quando a escolha é livre. Nada é permanente ou estável. As coisas sempre melhoram ou pioram, exigindo esforços dos homens paraconservarem o que conquistaram. É preciso o governo e este deve sempre manter-se cheio de vida mesmo depois da morte do governante. Nadaémaisinconstantequeamultidão.Abandonada aos próprios impulsos ela busca o tirano como forma de superação do caos momentâneo. Somente a República, segundo Maquiavel, traz o sentimento de igualdade entre os homens, diferentemente do principado governando por uma aristocracia que vive no ócio. O príncipe, preferivelmente, deve ser sempre um republicano. Os legisladores sábios escolhem sempre uma forma mista de governo. Maquiavel se distancia da tipologia descendente dos regimes elaborada por Platão, que vai da monarquia degenerando em aristocracia e culminando em democracia. Assume, também, posição eqüidistante de Aristóteles que elabora as degenerações sendo correlatas aos melhores regimeshierarquicamente dispostos. À monarquia corresponde a tirania, à aristocracia a oligarquia e à democracia a permissividade, também redimensionada mais tarde, por Rousseau, como oclocracia. Segundo o autor florentino, “se o príncipe, os aristocratas e o povo governam em conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente.”2. Entende-se porque na abertura de O príncipe irá afirmar que para conhecer a natureza dos povos é preciso ser príncipe e para se conhecer a natureza do príncipe é preciso ser povo. A relaçãogovernante/governadoséumarelaçãodemando e obediência estabelecida por cada um dos pólos e desta unidade depende a realização do desejo natural de conquista e as suas respectivas conservações. Umaboarepúblicadependedesorteedisciplina(militar,religiosaedasleis)paraquesuaconservaçãosejagarantidapormeiodaexpansãodeterritórios.Umbomgovernorepublicano(Roma)cuidadoseupovoemqualquerlugar.InvestircontraoEstado,porconseguinte,éumaaçãopelaqualosagentesnãodesconhecemoexercíciodocastigo.Apuniçãopormeiodeleis,mesmoinjustas,nãocausadesordemàrepública.Éprecisoconteraspaixõesnopovoporquesãoagenciadorasdeinteressesdeterceiroscapazesdetrazerumperigomaior.Éprecisosabergovernarparaevitarascalúnias.Obomgovernodeveestarabertoàsdenúncias.Destaforma,evitaaaplicaçãoimediatadecastigos,reforçaasleis,infundeotemoreinibeocrime.Todosdevemsaberatodoinstantequeointeressedopovoestáacimadetudo. Maquiavel classifica os que são dignos e os que merecem infâmias. Os primeiros são por ordem hierárquica: os chefes e fundadores de religiões, seguidos dos fundadores de repúblicas e reinos, os chefes de exércitos, os letrados e o número infinito de homens que mereçam elogios por sua arte e profissão. Os indignos maiores são os destruidores de religiões, seguidos dos que permitem às repúblicas e reinos que lhe foram confiados se perderem em tiranias, dos inimigos das virtudes e das letras e, enfim, dos ímpios, furiosos,ignorantes,covardes,ociososeinúteis.Notava, ainda, que a república deveria manter as religiões e as instituições religiosas separadas do Estado, contudo, ressaltando suas importâncias, pois delas depende o Estado para obter a confiança dos soldados diante da guerra. A confiança gera, quase sempre, vitória. O povo não suporta viver sob a lei de outrem, mesmo que este o tenha libertado. A minoria dos libertos se levanta pretendendo assumir o comando, enquanto a maioria exige viver em segurança. Em O príncipe, Maquiavel, deteve-se longamente sobre as forma da conquista. Os libertos em sua maioria aderirão, de imediato, ao príncipe libertador por supor que melhorarão de vida. Contudo, o príncipe deve tomar cuidado com aqueles que se sentirão ofendidos e os que oapoiaramnaempreitada.Oferecerliberdadeaumpovo quecompartilhaamesmalínguaéumaaçãomaiseficienteseconseguireliminaralinhagemdoantigopríncipe,recomendando-senãoalterarosimpostoseleisconsideradasjustaspelopovo.Masseoprincipadoconquistadotiverleisecostumesdiferentes,asdificuldadesserãomaiores,sejatrazendoaopovoliberdadeousubmissão.Éprecisoqueopríncipeváaliresidirouinstalecolônias,aformamaisbarataporevitargastoscomforçasarmadaseofensassuplementaresaosconquistados(osúnicosprejudicadosserãoaquelesquecederãoterrasemoradiasaosconquistadores).Ossúditosverãonestesgestosmaisrazãoparaamá-loetemê-lo.Portanto,éprecisoprudênciaparaganharaadesãodamaioriaqueapenasdesejaviveremsegurança.Nadadecercar-sedeautoridadeslocaisouestrangeirospoderosos.Éconhecendoosmalescomantecedênciaqueseevitaaprotelação.Umbompríncipedeveserinovador,prudente,imitandoosgrandesconhecidospelopovoepossuirfortuna. Conquistarparaconservarexigequeopríncipeseassegurecontraosinimigos;vençapelaforçaeastúcia;sejaamadoetemidopelopovo;seguidoerespeitadopelossoldados;capazdeextinguirtodosaquelesquepossamofendê-lo.Eledeveserumrenovadordeantigasinstituiçõespormeiodenovasleis;mostrando-seaomesmotemposeveroegrato,magnânimoeliberal.Éimperativodissolvertodamilíciainfiel.Paramanteraamizadedereisepríncipesdevecertificar-sequeestesserãosolícitosnobenefícioetemerososseofendê-lo.Maquiavelconsegueapanharaomesmotempoasrelações territoriais do Estado moderno e as relações internacionais. Sublinha em Comentários..., que a corrupção e a inaptidão para viver em liberdade decorre das desigualdadesintroduzidasnoEstado.Parapostularum cargo no Estado o cidadão deveria, anteriormente, ser considerado digno. Mas a realidade nada tem a ver com oideal.Adecadênciadoscostumesfazcomqueoscargos de magistrados sejam postulados pelos mais poderosos e não pelos mais virtuosos. Maquiavel está atento às exigências da burocracia moderna, sua impessoalidade como forma de dar continuidade ao Estado, ou seja, adianta-se em mostrar a necessidade do Estado ser o proprietário de seus meios materiais de gestão. Ele quer uma burocracia limpa e para mantê-la nesta condição é fundamental a institucionalização da denúncia. Entretanto, esta só se torna possível e digna na medida em que o povo se veja livre e acima de tudo seguro na pólis ou na colônia articuladas por uma cidadania que dá os mesmos direitos em territórios distintos. O governante depende da burocracia para levar a cabo as reformas que evitem na sucessão que príncipes vigorosos sejam substituídos por fracos. Ao lado da burocracia, o príncipe necessita um exército próprio e forte, treinando os cidadãos como soldados.3 Uma ditadura nem sempre é um mal; o é quando deixa de ser uma delegação temporária para se caracterizar como usurpação. No primeiro caso é de curta duração e restauradora. No segundo, é devastadora, provocada por maldade do príncipe ou por favorecimentos aos conterrâneos, não necessitando de muitos méritos, apenas da astúcia do demagogo. A conservação de uma república exige a anexação de territórios, um império. Para se manter no governo, o príncipe deve realizar os benefícios gradualmente e executar medidas punitivas e de restrição de uma só vez. Deve ser amigo ou conquistar a confiança do povo. Segundo Maquiavel, o povo deve devotar a amizade ao príncipe ou ele fracassará (pelas ameaças externas ou internas). Na verdade, o príncipe depende da fidelidade do povo. Este é o sentido que o autor atribui à amizade entre povo e governante. É preciso ser fiel. Não precisamos nos alongar. A fidelidade supõe trapaças tanto no âmbito da burocracia civil como militar, fomentando possíveis ditaduras, na mesma medida em que supõe traição. O traidor do príncipe pode ser então, tanto da ordem interna do governo como exterior a ele. O Estado moderno será sempre guerra. SegundoFoucault,aguerranãoéumprolongamentodapolíticaporoutrosmeios,masaocontrário,apolíticaéguerraprolongadaporoutrosmeios.4 Está no interior como guerra civil antes de qualquer confronto com outros Estados. Amigos e inimigos interna e externamente dependem das circunstâncias. Por isso mesmo,Maquiaveldefenderáotemordopovoaopríncipe como virtude primordial do príncipe. Amar supõe fidelidade, trapaças e traições, ódio, um valor que se apresenta altruísta para realizar seus interesses mesquinhos e misteriosos. O amor nas religiões é o espelho do amor ao Estado. O amor pelo pastor é o mesmo que o amor pelo pai ou governante. Quem sabe o que é o amor é o soberano esteja ele no governo, em casa, na escola, nas fábricas, nas empresas. O amor é um valor que vem de fora para sufocar as paixões, domesticar os impulsos, dar sentido à liberdade. Maquiavel sabe de tudo isso. O príncipe deve se manter sem a ajuda de terceiros. Para possuir exércitos próprios é preciso além de homensdevotos,dinheiro.Quandonãosetemcondições materiais necessárias deve-se evitar o combate em campo aberto com o inimigo e fortificar suas muralhas, o que supõe capacidade de infundir no povo a idéia de inimigo cruel. UmbomEstadodevepossuirboasleiselaboradaspor legisladores sábios, sob a forma mista de regime e boas armas. Para conservar o governo, o príncipe tradicional ou moderno, deve aprender a ser mau e prudente. Os seus defeitos ele deve saber utilizá-los ao sabor das situações. Vícios e virtudes, segundo as situações trocam de sinais, para trazerem segurança. Para precaver-se de calúnias o governante deve evitar demonstrar suntuosidade ou avareza. Ele deve saber ser parcimonioso. Contudo da mesma maneira como o autor lida com a relação amor-temor, entre a suntuosidade e a avareza o governante deve preferir demonstrar ser avaro. O povo deve desejá-lo piedoso e cruel, o que lhe exige cuidados para não ultrapassar a linha do temor e passar a ser odiado, uma precaução relativa ao sentido do próprio amor. O temor implica uso de lei e força, a ameaça do uso do castigo físico ou não por meio da lei como prevenção geral. O bom príncipe não pode ser, deve aparentar ser caridoso, fiel, humano, religioso e íntegro. Ao mesmo tempo deve ter clareza nas decisões para evitar a ira dos estrangeiros, manter a estabilidade interna e evitar conspirações. Não pode descuidar de criar grandes empreendimentos, ser um exemplo, obter fama de grande homem e sempre ser verdadeiramente amigo ou inimigo, ou ainda, jamais deve se mostrar neutro ou estabelecer aliança com outro príncipe mais poderoso. A prudência faz do príncipe alguém capaz de introduzir uma novidade como se fosse uma tradição. Deve fomentar entre o povo festas e espetáculos com a mesma prudência que utiliza na escolha dos ministros (estes devem sempre pensar no príncipe e não em si mesmos) para honrá-lo e enriquecê-lo. Há uma nova precaução relativa à burocracia. O príncipe deve evitar os bajuladores: um príncipe se aconselha quando quer e não quando os outros pedem. Enfim, o príncipe deve preferir ser impetuoso a circunspecto. Segundo Maquiavel, um governante deve ser amado e preferencialmente temido pelo povo e ter na prudência a sua principal virtude, ao lado, é claro, da sorte. Para bem governar é preciso ser um inovador. São as reformasquedãocontinuidadeaosgovernosmodernos.Éprecisomanteroscostumesajustando-osgradativamente,criandoasensaçãoquecadagestoinovadoréumatradiçãoreescrita.Opovoesperaboasleiseboasarmas,istoécerto.Massóépossívelsaberseasleiseasarmassãoboasseelasinspiraremsegurança.ParaistoexisteEstado,porquesomosincapazesdenossentirsegurossemumsoberanoquenosmostreosvalorescorretos,asboasleis,enosintroduzagradativamentenoscostumesenumatradiçãoquejáexisteantesdeeunascerequedeveperpetuar-sedepoisdeminhamorte.Éprecisosegurançaparahaverliberdade! Cuida-se do povo e do território, das novas conquistas anexadas, das colônias aí instaladas, dos cidadãos livres, pormeiodeumalegislaçãoelaboradaporhomenssábios, oquemodernamentepodeserdefinidocomooscompetentesdentrodaracionalidadelegalelegítima.UmpovoéoqueoEstadoagrupa,organiza,defineecontrola.Nãoéumaabstração,éapenasoprodutodeumdeterminadoentreverodeforçasemconstanteatualização,porémdirigidasparaacontinuidadedosoberano,daautoridadecentral.ReligiãoeEstado,sorteeprivilégios,senhoresesúditos,sãoelementosconstantesqueexpressamasvirtudesdasforçasemcombate.Nãohárelaçõesapartadasdasimultaneidadeentrevíciosevirtudes.AmoraldogovernanteéamoraldoEstado,semelanãoháética.OEstadomodernorequeracontinuidadedaantigüidade,umhumanismonaforma,umaafirmaçãodeorigemreligiosaedechefiasabraçadasparacriarsegurançaentreossúditos.Cremosedevemoscrernisso.NãopodehavervidaforadoEstadoedetodaequalquerrelaçãofundadanaautoridadecentralizada.Maquiavelpretendiaverapenascomoumagramáticadopoderseafirmaapartirdaautoridadecentralizada.Nissonoslegoulivrosnormativosqueservemagregosebaianos.EusóexistomedianteoEstadoexercitandoumaliberdadequesefundanaprevençãogeralparaamanutençãodosgovernos. Eu não existo na servidão Foucaultmostrouem“Agovernamentalidade”quenestaépocaumavastabibliografiaabordavaasrelaçõesdepodersegundoomovimentoascendenteedescendenteemrelaçãoàsoberaniapolítica.Paraserumbomsoberanoseexigianãoapenasasvirtudesdopríncipenaconduçãodogoverno,mastambémnacasaenaeconomia.Contudo,estediscursoacabousendointerceptadopelocontratualismo.AsrelaçõesdepodercomoforçasinstituídasapartirdacentralidadedaautoridadecomoproteçãoaoterritóriodescritasporMaquiavel,colocamodernamente,eempoucaspalavras,apossibilidadedevidaapartirdeumarelaçãodesegurançaqueaautoridadecentralcria.Semela,nãoépossívelexistirordem. Deixandodeladoosefeitosconsensuaisdepoderdecorrentesdoexercíciodosoberanoquesupõeadesão,ameaçadepuniçãoeomissão,legitimandooexercíciolegítimodaforçarepressiva,umoutrodiscursoanti-MaquiaveltambémseafirmacomoforçaeencontraemEtiennedeLaBoétieumdosseusformuladores.Trata-sedodiscursolibertárioqueganharáprojeçãocomoanarquismoapartirdoséculoXIX.Éumdiscursoaomesmotempoanti-Maquiavel,mastambémavessoàgovernamentalidadeou,sequisermos,queapanhaaamboscomoformasdecontinuidadedoUM.5 Háuminfortúnioquenosatinge:éodeestarsobumoumaissenhoressempossibilidadedecertificarmo-nosqueelessejambons,apenasdequetêmopoderparafazeromal.Porque,então,preferimostolerarotiranoacontradizê-lo?Estamosenfeitiçados?DiantedafortunadopríncipedeMaquiavel,LaBoétieopõeoinfortúniodossúditosesuaimobilidadediantedestacondiçãodeservidãovoluntária.Sentimo-nosnusdiantedapossibilidadedenãoobedecermosaosoberanoe,porisso,nosdeixamosdominar.Precisamosdaliberdadedosoberano.Perdê-laéestaramercêdeumasérie de males. Devemos obediência. Pouco importa se diante da situação na qual o governante se apresenta comoamigo,esteaqualquerinstantepossafazeromal.6 ParaLaBoétienãoéprecisoguerrearparaserlivre,bastanãoservirmaisaosoberano.ElaborandoumvetornosentidoinversodeMaquiavel,nãoestámaisemdiscussãomaneiraspelasquaisossúditospodemdesestabilizarumsoberano,masaafirmaçãodeoutrasexistênciasalheiasaopríncipeecapazesdeanularosentidodaautoridadecentralizada.Nãoépormeiodapolíticaedaguerraqueseencontraliberdadeougarantiasdevida.Oatodepronunciar-secontraoUminstituioutraspossibilidadesdevida.Diantedapolíticaedasociedade,LaBoétieinsinuaavidaemassociaçõeslivresdeamigosquepelassuasprópriasexistênciasinibem,atéanular,apertinênciadosoberanoedaautoridadecentralizada.Oautorestáinteressadoemmostraraliberdadedosoberanodesidiantedosoberanosobretodosnós. Oqueterialevadoaoenraizamentodenossavontade de servir, esta vontade de ser súditos, de assujeitar-se, de criar entre nós esta condição de reprodução do soberano para além de sua existência? Segundo La Boétie, os direitos de natureza nos mostram que somos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos à razão e, portanto, servos de ninguém. Na natureza não há servidão, mas uma liberdade que nos indica um governo de irmãos, de companheiros, que não desconhece a diferença de talentos e de estruturas físicas e incentiva a ajuda e o recebimento de ajuda.7 LaBoétienãosepropõeaencontraromomentohistóricoemqueummau-encontroapareceuparadesnaturalizar o homem. Como bem notou Pierre Clastres, em “Liberdade, mau encontro, inominável”, o problema abordado pelo jovem La Boétie é trans-histórico, liberto de territorialidade social e política. A sociedade que serve ao soberano é histórica, não é eterna, nem sempre existiu. Algo se passou para que o homem passasse da liberdadeparaaescravidão.ParaClastres,onascimento da história é acidental e coincide com o nascimento do Estado, perda da liberdade na resignação e amor à servidão8. Não espere de La Boétie um tratado psicológico, ele está interessado em mostrar uma mecânica, não havendo, portanto um deslizamento progressivo da liberdade para a servidão. O nascimento da história é fruto de um mau encontro. Hátrêstiposdetiranos.Osqueobtêmoreinoporeleiçãodopovo(democracia),pelaforçadasarmas(ditaduras)eporsucessãodesuaraça(monarquias).Mesmocomdiferençasarespeitodosmeios,elesgerammaneirassemelhantesdegovernar.Éprecisoobediênciaparaconteraquelesaseremdomados,aspresasdeguerraeosescravosnaturais.Qualquerformadegovernocentralizadoé,portanto,umatirania.DaídecorretantoumaaversãoàstipologiasdePlatãoeAristóteles,comoàprescriçãodogovernomistodeMaquiavelouaindasuasrespectivasjustificativasparaditaduras.Diantedaveracidadedasproposiçõesherdadasdaantigüidade,LaBoétieintroduzumaoutravontadedeverdadeprovenientedeumsujeitoavessoaoassujeitamentonaturalizadopelaservidãovoluntária. O assujeitamento para La Boétie9 exigeumaoutracoisa.Elesprecisamdeilusãooudeseremforçadosaalgo:nascidossobojugo,educadossobojugo,oshomensseconformam.Sobatirania,aspessoassetornamcovardeseefeminadas,fracas.Oscostumessãoaprimeirarazãodaservidão.Nestesentido,seriaprecipitadoapenasoporLaBoétieaMaquiavel,ouseja,diantedainevitabilidadedosoberanoparaum,anegaçãodomesmoparaooutro.Opercursoémaisacidentado.ParalaBoétieestáemjogoreverteratradiçãodoscostumes,desnaturalizá-losdaobediência,operarexistênciasdeassociaçõesdeamigosqueanulamafalsaamizadenointeriordosgovernoseentreEstadosqueéfomentadoradeguerras,rodíziosdegovernanteseperpetuaçãodacondiçãodesúdito.MesmoporqueparaLa Boétie tudo isso depende de uma vontade voluntária dos súditos para que isso aconteça e não somente da prudênciadopríncipe. O tirano teme a todos, afirma La Boétie, invertendo a máxima de Maquiavel. Há um perigo rondando o príncipeadvindodosprópriossúditos.Casonãohouvesse otemordossúditospelopríncipejamaisexistiriamleisearmasparasegovernaratodos.Oargumentonãoseescudanajustificativaqueentreossúditoshaverásempreaquelequepostularáasoberaniadopríncipe.Oautorvaimaislonge.Opríncipeprecisasertemidonãoapenasporqueoutrospossampostularocargo—soluçãoqueademocraciaencontrouparapacificarestaformadelutainstitucionalizandooconflito—,masporquetambémviveoriscodeteraautoridadecentralizadacontestada.Nolimite,diantedademocraciaedanecessidadedeelacomporformasmistasdegovernos,encontra-seoriscodarevoltapacífica,aquelanaqualsedizapenasnão.10 Depreende-se de La Boétie que qualquerrevoluçãonadamaiscriadoquearestauração da autoridade soberana superior.11 O tirano necessita de um anteparo que é a religião. Todaautoridadesoberanaexigedevoção.Portanto,quemgoverna precisa de obediência, servidão e devoção. É bom lembrar, diz La Boétie, que o povo não acusa os governos, mas os governantes, e dessa maneira exige substituições e reformas constantes. O tirano não é amado nem ama o povo; ele o teme. Desta maneira, por dentro do território ou nas relações com outros Estados não há amizade que não esteja baseada na diplomacia externa ou no reconhecimento da autoridade dos governantes, maneiras para arealização do prolongamento dos estados de paz. É preciso uma paz precária e uma ilusão de paz perpétua que cada governo instaure e que cada súdito aspire. Não há Estado sem religião, trata-se de um casamento indissolúvel na Terra, ainda que La Boétie imagine que o amor a Deus possa ser uma maneira de estancar a violência, como se houvesse uma existência para religião monoteísta dissociada de Estado12. Serão os costumes inventados pelos que dizem não ao soberano e se associam, que darão conta de equacionar esta e outras questões que se respondem por meio de novas perguntas. Apenas é certo que devemos voltar à natureza, incluindo-nos como sua parte constitutiva e não domesticadora. Noâmbitopúblico,LaBoétieopõeàtiraniaaamizade,aqualnosentregamoscomopessoasdebemcommútuaestimaequesemantémpormeiodeumavidaboa,nemtantopelosbenefícios,reconhecendo-seaintegridadedecadaparticipante:“asgarantiasquesetemsãosuabondadenatural,féeconstância”13 OsdiscursodeMaquiaveleLaBoétiefuncionamemdireçõesopostas.Paraanecessidadedeautoridadecentralizadadeum,aliberdadedecadaum,paraooutro.SeparaMaquiavelháumanaturezahumananegativafomentadoradeconspiraçõesecumplicidades,emLaBoétieháumavoltaànaturezaquenosindicaaamizadecomoformapacíficadeconvivência.Diantedeumpríncipeamadoetemido,oUmparaoqualorespeitoàliberdadesefundanaobediênciaaosoberano,seopõeumpríncipetemidoequetemeopovo,oUmqueprecisaserignoradoparaquealiberdadecomosoberaniadesipossaocorrer.Paraasformasdiferentesdegoverno,naqualsobressaiarepública,aconstataçãodainvariânciadosgovernoscomoexercíciosdetirania.Aamizadeéaresposta,àvidapautadanaguerra.Aoscostumesaseremrespeitadospelacontinuidadedosgovernoséinterpostaoutranoçãodecostumesvistosdedoisângulos:atradiçãoqueseatualizaparamanter o UM e a experiência de novos costumes para inventar povos. Diante de um povo unificado pelo Estado, a diversidade de povos, o que não situa La Boétie num campo multiculturalista como o atual, pois para ele, este seria uma nova recriação das unidades estatizantes. Em vez de continuarmos na condição de servosvoluntários,umanovavontadedeverdade.Enfim, para o discurso histórico fundado na conquista e conservação, apanhado na normatividade por Maquiavel, abre-se com La Boétie a possibilidade de máquinas desejantes. Para uma sublimação chamada povo, um soberano real, Eu. Montaigne foi o primeiro a dedicar-se à sugestão de La Boétie acerca da amizade e da educação para novos costumes, não deixando de atentar para o fato de que sua realização somente é possível por meio de investimentos na educação autônoma e livre. AamizadeparaMontaigneestárelacionadacomavidaadulta,amaturidadedosespíritos,esediferenciadoamorpelaconcordânciadevontades,porsertemperadaeserena,suaveedelicada,semasperezaeexcessos.Nelaasalmasseconfundemnumasó.Trata-sedeumaidentidadecompartilhada,desterrito-rializante,alheiaàprudência,serviçosefavores.Oquesedáaoamigoéporsatisfação,porprazer.Éumarelaçãopautadanaindivisibilidade.Nadarestaparadividir;estamosdesobrigadosdetudoesilenciamossegredos.Contudo,areflexãodeMontaignesituaaamizadenoâmbitoprivado.Aindaquenoâmbitopúblicopossaviraserconfrontada,comoética,aoplanopolítico,nãodevemosesquecerdoconservadorismopolíticodeMontaigne14. Contudoénoseuensaio“Daeducaçãodascrianças”,afirmando-seseguidordePlutarcoeSêneca,queeletraráumdetalhamentoimportanteparaentendermosainvençãodoscostumes,sobaperspectivadeLaBoétie.Paraeleagrandedificuldadedohumanismorepousanotemadainstruçãoeeducaçãodascrianças.Osfilhotesdeanimaismostramsuastendênciasnaturais.Oshomensporsuavez,“sobhábitos,preconceitoseleis,mudamousemascaramconstantemente”15.Um instrutor deve ter mais inteligência que ciência para exercer suas funções evitando que as crianças sejam em suas mãos aqueles que repetem o que foi dito. Para verve tal,eledeveestabelecercomacriançaumarelaçãonaqualnãofalesozinho,mascriecondiçõesparaqueodiscípulofale.Estáemjogoestabelecerumarelaçãoquesepautepeladiluiçãodahierarquia,namedidaemquesuatarefaprimordialéadeevitaracontinuidadeemcrençasefantasmagoriasquenostornamservoscativos.Uminstrutorinteligentenãopodesubestimarainteligênciadacriançaeumaboamaneiradeimplementarestainteligênciaénãoafazendodepositáriadecostumestradicionais.Diantedeumdiálogoemqueomestreprovocaoesclarecimentonodiscípulo,afirma-seumdebatediantedoconhecimento,semtomaraprioriumvaloruniversal. Nãoháumprincípioúniconaeducação,sejaeleestóico,epicuristaouaristotélico,dizMontaigne.Nãoháprincípioquandoestáemjogoaescolhalivre.Épreferíveladúvidadiantedacerteza,poissomenteosloucostêmcertezaabsolutadesuaopinião.Seguiraoutroéomesmoquenãoencontrarnada,poisnãoháprocura.Apoiando-seemSênecadirá:“nãoestamossobodomíniodeumrei;quecadaqualgoverneasi”16. Uma criança não deve ser poupada do perigo. Deve viver ao ar livre, viajar, tomar contato com outros povos e línguas, fortalecer sua alma tanto quanto o corpo17.É preciso pronunciar a palavra não18. O livro do aluno é o mundo. É ele que nos ensina a comparar, reconhecer nossas imperfeições, as fraquezas naturais, a diversidade cultural, e isso não é pouco. É preciso mais:conhecer-se, saber viver e morrer bem. É preciso trabalhar: o jovem deve estar apto à fadiga e à aspereza. Não pode haver ensino dissociado do trabalho. A restrição de nossas necessidades para a existência informa que “a maior parte das ciências em uso é sem utilidade para nós”19. Montaigne está ao mesmo tempo voltando-se para a natureza, constatando a distância das ciências da própria natureza e propondo ter a criança o mundo como livro. Andar, conhecer pessoas, conhecer-se, notar, anotar e reparar na diversidade, na regra geral da submissão. O jovem tem pressa e não podeficarentregueapósos15ou16anosaospedagogos. O instrutor se dissolve em poucos anos porque ele está lá para não formar discípulos. Ali se encontra para fomentar a ação. Nossos colégios são “verdadeiras prisões para cativeiro da juventude, e a tornam cínica e debochada antes de o ser”20. Montaigne anuncia a rebeldia stirneriana contra a educação e a instrução e a bizarra busca por um ensino geral e público comandadopeloEstado. Para Montaigne a criança e o jovem devem reconhecer os erros para evitar a teimosia e a contestação, considerados defeitos de almas vulgares. Para haver filosofia, e agora segue Epicuro, é preciso praticá-ladesdepequenoedelajamaissecansarmesmo na velhice. Para haver filosofia é preciso voltar atrás, corrigir-se, saber que tudo se encontra sob mudança. Portanto, um péssimo instrutor é aquele que prende o jovem a horas intermináveis de estudo tanto quanto lhe infunde o espírito melancólico e reservado do amor aos livros, que afastam o jovem da vida. Uma filosofia contemplativa é aquela que tem regras que vão do recém-nascido ao decrépito. “O ofício da filosofia é serenar as tempestades da alma e ensinar a rir da fome e da febre, não mediante um epiciclo imaginário qualquer, mas por meio de razões naturais sólidas. Tem por fim a virtude, a qual não está, como quer a escolástica, colocada no cimo de algum monte alcantinado, abrupto e inacessível. Os que dela se aproximam afirmam-na ao contrário, alojada em bela planície, fértil, e florida de onde se descortinam as coisas”21. A um jovem basta “um gabinete, um jardim, a mesa e a cama, a manhã e a tarde, todas as horas e lugares lhe servirão”22. Não há escola para acolher as crianças e jovens e também não há um instrutor único ou especialista. A educação das crianças em Montaigne, relacionada à associação de amigos na ação pública de La Boétie, inventa outras maneiras de existir23. Uma educação livre é aquela que implica instrução pela qual “é melhor atrair a vontade e a afeição, sem o que se conseguem apenas asnos carregadores de livros”24. Outroscostumes,livresdaservidãovoluntária,embuscadeumsujeitosoberanodesi,acoplamasreflexõesdeLaBoétieeMontaignecomopartesconstitutivasdodiscursolibertárioanarquista.Éprecisoinventarumpovoagoraenãonofuturoguiadoporumaconsciênciasuperior.Dizernãoaosoberanoéafirmaracriança,nãoapartirdequemdissenãocomoseaírepousasseaverdadeiraconsciência,mascomopotênciadeliberdade.Nestecasonãoháporquesubordinaracriançaaumapedagogiasuperior.Educarexigeumreposicionamentodoadultodiantedacriança,umdescolamentodasfantasmagoriasdarazãoedareligião.Montaignequesemostravaumhomemestóicomaduroaofalardaamizade,nestemomentoencontra-setocadopelarebeldiadeLaBoétie.Maisdoquesepodiaimaginaréneste“Educaçãodascrianças”,quemaispresenteestáoseuconsagradoamigo. Ònicos,Uns MaxStirneréumhomemfeitoaoescreverseuOúnicoesuapropriedade.UmhomemmadurotomadopelajuventudecomoLaBoétieevoltadoparaaliberdadedacriança.EmStirnernãoháabuscapelasociedadehumanistarealizandoaautonomiadosujeito.Diantedasociedadesomenteoindivíduoeesteserealizaaonãosacrificarsuaindividualidadeàcoletividade,masaoafirmaraassociação. Entre os anos de 1842 e 1844, ele escreve alguns opúsculos publicados em Berlim, que dizem respeito diretamente aos preceitos dos governos e à educação livre. São escritos preparatórios para seu único livro. Diz-se, e também o afirmo, que Stirner teria levantado diversos problemas anteriores e análogos a Nietzsche25. OprincipaldelesdizrespeitoàcriaçãodoHomem,umefeitofilosóficodetranscendentalidades.Elequer,comoooutropensadoralemão,algomaisdoquenoslegouKanteHegelcomoapogeudafilosofia.Éprecisoumafilosofiacriança,comumaoshomenslivres,instintiva,capazdedespedaçararelaçãoentrerazãoereligião.NãohánomundomodernomaisdoqueumreacenderdaantigüidadecapitaneadaporPlatão.Éprecisoabandonarapólis,acidadefeliz,asutopias,adicotomiaqueassolaoslivresopondoBemeMal,vícioevirtude,saúdeedoença,amoreódio,certoeerrado,guerraepaz.Omelhorinimigoéoamigo,afirmaráNietzsche.Nãoháúnicosemoutroúnico,euetuassociadospelarazãodooutro,afirmaráStirner.Nãoháoutro,espelho,identidade,continuidade,mesmodemim.Sóháúnicosecomotalnãoalmejamsertodos,muitosoualgunsespeciais.Sãoapenasunsquenãoseapartamdavidapolítica,sabemdasuaexistênciacomorealizaçãodademocraciacomoreligiãodorebanhomoderno,masnãosevoltamparaintegrar-seaelacomocontestaçãoaosoberanoeafirmarlutasquesequererãocapazesdeumaconsciênciasuperior.Stirner,incisivamentequerimediatoprazer,vidaimediataparaaquelesqueprivilegiamavontadediantedosaber.Nãoépossívelsubordinar-seaosoberanocentralizado. Em Stirner não há uma negação a ser superada numa síntese. A associação não é mais do que vontade de pessoa livre, algo que se passa por dentro e por fora da tradição. Não há um passado a ser negado por um presente mais justo, real e pleno. Há uma vontade de único que se associa a outra cuja existência se opõe à moral, sem desconhecer a história da moralidade e da piedade, ao afirmar os instintos. Não se trata de mera oposição de instinto à razão, de pré-história à história e de um pensar apartado do domínio das paixões, mas fusão de corpo e pensar, um corpo que ataca a razão paradefenderapele.Trata-sedeumpensarpelavontade de verdade avessa a domesticações, capaz de realizar a morte do saber, mostrando como se sabe morrer. Não é a morte da filosofia que faz renascer uma nova filosofia. É uma filosofia, de crianças jovens e adultos, feita da preciosidadequeélutarporumobjeto,denãoseapartardoobjetoporcriaçõesdarazãooudasreligiões.Édebate aberto, construção da associação, efeito do ato de saber dizer não ao soberano. LaBoétieexpressavaaprofusãoinstintivaaonosapanharcomoservosvoluntários.Stirner,aseumodo,investenaassociaçãodeamigoslivredatranscen-dentalidadedaamizade.NãoháAmizade,masamigosqueafazememcadaassociação,coisaquejamaispoderáserapanhadapeloconceito.Éexistênciapeloladodeforadoprivado,diferenciando-sedeMontaigne;elaésemprepúblicae,obviamente,jamaisaparentadacomasuaversãoestatal:amizadeentreospovosesuapossívelderivaçãoemhospitalidadecomoprojetofilosóficodepazperpétua,comooelaboradoporKant.Amizadenãocomoconceitoetampoucocomoprática,umapossívelrotina,masexperiênciapúblicaentreamigos,livresdeEstado,deautoridadecentralizada. DeLaBoétieaStirnerháforçacomovontadeeumaconstataçãodequejamaisseencontraráumaautonomiareal.Vontadedeoposiçãoecontestação,devosublinhar,quenãoaguardaouconstituicompa-tibilidadescomavontadedacoletividade—umaespiritualidade—,masquefazequeracontecerindependentementedavontadedomundo.Dirão:éniilismo.Poucoimportaoquedirão,onadacriadornãoserefereapalavras,substânciaouexperiênciapassadarevigoradaportradições,experiênciacongelada:“Ohomemprefereavontadedonadaaonadadavontade”,encerrouNietzscheaGenealogiadamoral.26 Seria convincente, ainda nesta brevíssima apresentação de Stirner, afirmá-lo como um anarquista? Sem dúvida, do ponto de vista da crítica da sociedade, do Estado e da afirmação da liberdade, as dúvidasnãopermanecemdepé.Seriaumdesvãocolocálo pacificamente neste lugar. O humanismo anarquista que se anunciava com Proudhon, a quem ele dedica longuíssima reflexão em seu livro, é inaceitável, transcendental, utópico e exercício de inversão de termos (ou séries no dizer de Proudhon), no qual deixamos o mundo restrito da propriedade privada pelo impessoal da propriedade coletiva ou posse transitória. Para os anarquistas, Stirner somente tem sentido se for lido como um anarquista no anarquismo, vontade que não lhe dá sossego diante da utopia e da justiça social. Para ele não há um agora como preparação para o futuro; não há futuro, somente o presente. Diante dapreparação pelo saber, a intensidade. É um anarquista que se distancia das afinidades que os diversos anarquismos buscam por meio de suas singularidades.É uma singularidade que se lixa para afinidades. Não é uma extravagância, apenas um atrevimento. É o inacabado como constatação que o distancia da conclusão perfeita. Trata-se de uma ética e não mais de moral. Éprecisoserguerreiro.Opensarcriançatemsempreumobjetocomqueseocupar,comoacriançamesma.Choca-secomoutrocomamesmapretensãoeconflito.Lutamosquandocriançascontraarazão:Estado,religião,ciênciaefilosofia.Ereagimosfortementeàscaríciaseaoscastigos.Vida,naforçaenoinstinto,naqualnãoprecisamosdestruirooutro.Entrecriançasoguerreiroexistenalutapeloobjetoenãopeladestruiçãodaoutracriança.Umabatalhasemguerradiantedeumapazqueopensaradultopretendeimporaestasupostaguerra. Quandoatingimosajuventudeoprocessodedistanciamentodoobjetoestáparasecompletar.Pais,escolas,relaçõesdevizinhanças,paróquias,diversasmaneirasderealizaçãodasociabilidadecontribuemcomigualforça.Prepara-seomomentoparaodistanciamentofinaldoobjeto,aconfirmaçãodoabsoluto.Éomomentodetensãoeapaziguamento,explosãoderebeldiascomoexpressão do resultado da domesticação dos instintos. A pessoa está quase pronta para a vida em sociedade segundo os costumes e a política; encontra-se na iminência de tornar-se um adulto. Estamos diante da glória do humanismo, que corresponde segundo Stirner ao tempo de Péricles e Maquiavel, tempo de Sócrates revigorado, liberto do cristianismo que afirmou o amor desinteressado.Estãoosjovenseducadospelapossessão do Espírito invisível e sagrado que não lhes pertence e os confunde. Crêem, agora, num homem superior. E todo homem superior é apenas uma moralidade que se opõe à piedade. O Homem substituiu Deus, instituindo a nova moralidade que substitui um pelo outro. Comolidarcomeducaçãodecrianças?Comotaleducaçãoéparteconstitutivadaassociaçãoenãoécomopedagogiasuacondiçãodeexistência?TomaremosquatroartigosdeStirner,anterioresaoOúnicoesuapropriedade(1845).Sãoeles“Arteereligião”,“AlgumasobservaçõesprovisóriasarespeitoaoEstadofundadonoamor”,“MistériosdeParis”e“Ofalsoprincípiodenossaeducação”.Osdoisprimeirosde1842eosseguintesde1844.Sendoofocodadiscussãoaemergênciadeumdiscursolibertárioarespeitodasupressãodosoberanoedarelaçãoamor-temorqueeleexige,aapresentaçãodavontadedeStirnerestimulaoleitoralersuarealidadepresente.Ohomemdeveráserformadoparaasociedadeouparasipróprio? “Amigos, nossa época não está doente, acontece que jáviveutudo;nãoatortureistambémvóstentandocurála, aligeirai antes a sua última hora abreviando-a e já que não é possível curá-la, deixai-a morrer”27.Elaestávelhaenãonecessitadeumamedicinadecharlatão,afirmaStirneraocomentarnesteartigoolivro,deEugèneSue,Mistérios.Estáemjogoadiscussãomoralacercadovícioedavirtude,noqualoBemétomadocomoalgosemexistência,queexigedenósaexemplaridadeobrigando-nosaconfessar:“averdadeiramoralidadeeaverdadeirapiedadenãosedeixamnuncadistinguir completamente. É que mesmo os adeptos da moral que negam a existência do Deus pessoal conservam no bem, na verdade e na virtude, o seu Deus e a sua Deusa”28. Um moralista liberal exige nada de excessos, tanto quanto um piedoso. O que era virtude para um ou vício para o outro, se intercambiam sem abalar a ordem, ao mesmo tempo em que se erguem os deuses da virtude e do vício e os seus respectivos fiéis. Pessoas honradas exibem uma existência virtuosa e submissa a Deus. É preciso tanto a punição canônica comoapuniçãomoderna;éprecisocastigarparalibertar o corpo tomado pelo mal; é preciso antes de mais nada interceptar a sexualidade. As ações se voltam para melhorar o estado das coisas. Em tempos mais distantes, afirma Stirner, procurava-se reformar a Igreja, agora se busca melhorar o Estado. Moralidade e piedade precisam afirmar seus deuses diante de uma guerra de deuses, advindos da precária cura dos instintos. A nós resta constatar que para tornar a criança um ser moral precisa-se antes de tudo reconhecer nela o potencial do mal expresso pela intensidade dos afetos. Ela pode ser guerreira e amante pela força dos instintos, mas deve-se incutir-lhe o amorcomo maneira de sujeitá-la antes a si própria. É preciso formar as massas; entretanto, não se pode desconhecer que as massas também possuem calosidades na pele e são “capazes de mostrarem-se insensíveis perante as circunstâncias rigorosas dos seus artigos de fé”29. É possível imaginar, a partir de Stirner, que existe uma massa tomada por uma falsa consciência? A resposta positiva diria que somente os esclarecidos seriam capazes de crítica. A maioria não passaria de receptores inofensivos subjugados ao poder das instituições e que ao ter suas boas almas sendo instruídas por uma moral e pelos deuses da virtude dos modernos missionários da filosofia seriam despertas da vida vegetativa para seu grandioso destino. Elas não sabem que fazem a história? Qual história? Aquela a serreconstruídapeloshistoriadoresqueasabemfazeredar-lheinfinitude?Aquelaaserordenadaeprovocarrespostasàsuaépoca?Pobresmassasdispostasaossaberesdoscondutores!Malsentemoscalosnapele!Reconhecem-sepobresdeEspírito,incapazesdeperceberseusprópriosproblemasequesomenteencontrarãosoluçõespormeiodereformasquelhesãoexteriores.Criaramasiprópriosemconformidadecomapiedade.EsperamdamoraldoEstadoamesmapiedadedaIgreja.Sãosúditosquereescrevemsuacondiçãodesúditos. Quem quer pai, Estado ou Deus, quer pai, Estado e Deus. Precisa de amor: “é o mistério que faz duma questão do entendimento um assunto do coração — o homem inteiro, através de seu entendimento,éoseu assunto isto é o que faz deste último um assunto do coração”30.ParaStirneracriançacomporta-secomoumsersensívelquenãoexperimentaoamoranãoserquandoemsuarelaçãocomoshomenspassaadistingui-loseaosobjetostransferindosuaafeiçãoaoutro.Écomtemorerespeitoquecomeçaasentiramor.“Umacriançaamaporqueumaformaexteriorouobjeto,umapresençahumana,exercesobreelaoseuimpérioouseuencanto—elaconseguedistinguirperfeitamentedosoutrosseresasignificaçãomaternaldasuamãe,mesmoquenãosaibaexprimi-ladeformaracional.Antesdesuainteligênciadespertar,acriançanãoamaeoseumaisprofundoabandonoamorosonãoémaisquecompreensãoíntima”31. Para haver amor é preciso um objeto com propriedade de entendimento e este necessita de um objeto para fazer valer a compreensão de um mistério. Desta maneira é ao se refazer que o amor não se dissolve e se faz coisa do coração. Amar aos pais, a Deus e ao Estado são deveres do entendimento tocados pelos mistérios do coração. Na soberania moderna há menos vida no ditador que nas instituições democráticas, mesmo porque estas se baseiam no reconhecimento da imperfeição humana. A perfeição de Deus jamais poderá ser alcançada pelo ditador,umhomem.Nós,homens,diantedoUm,oDeus,somentedamoslongevidadeànossasoberaniacomopovopormeiodeinstituiçõesfundadasnaimpessoalidade.Oentendimentoacercadoimperfeitofazcomqueamemosademocracia.Abuscadaperfeição,porsuavez,realiza-senodesejodeditador—ummisteriosopaiqueaomesmotempoéoentendimentopeloatodeexistircomoocorpoacabadodosqueabdicaramdesi.Amoretemorsãopartesconstitutivasdoideal,doamoraoEstado. Respondendo a Hegel, Stirner procura mostrar que a arte não segue a religião, mas é sua companheira, começo e fim das religiões. “Sem a arte e o artista, criador do ideal, a religião não poderia nascer”32.O artista cria o ideal a partir de uma projeção futura, um além que deve comportar a completude que os estados naturais e animais atuais são impossíveis de satisfazer. Criaoobjetoparaoentendimento,repletodeseuespírito que perdura pelo olhar do outro e pela reprodução da forma. A religião é a manifestação do ideal da criação artística, a separação do homem de sua existência, o entendimento. A arte constitui o objeto e “a religião vive somente pelo encadeamento a este objeto”33. Seria leviano identificar razão com entendimento. O esforço de Stirner é para liberar a razão de sua forma acabada como idealização sustentada pelo entendimento. Se é este que faz a criança amar e temer, e o homem ver a inocência da criança realizada na moral do ideal, nada mais verdadeiro que fazer saber ser a religião uma arte perfeita e limpa inventada pelo próprio homem. A criança é um objeto de entendimento, um objeto de investimento do ideal, e o homem moral é o futuro da criança e de sua inocência. Não há vida como obra de arte, mas arte e religião como ideais de vida. Então, na medida em que o homem se distanciou de Deus e da piedade e projetou seu ideal no humano baseado na moralidade,oódioperdeupartedesuaforçatantoquanto o amor a Deus. O amor e o temor ao homem agilizam a perfeição, uma guerra interminável entre piedade e moralidade, apesar de ambas jamais se dissociarem. Teocraciaedemocraciasedigladiamnomundomodernoemtornodosideais,doentendimento.Contudo,seriaequivocadodizerqueseopõem.Concentramforçasdiferenciadasemtornodoamoredotemor.Oartistadapiedadecedelugaraoartistadamoralidadesemprogressoousuperação,apenascomoefeitodeforçasemtornodoentendimentosobreoideal.Oartistaanônimodasparedesdascavernasexternavaomundonasuacompletudeanimalenatural,damesmamaneiraqueoartistaindígenadeixainvadir-sepelassuasrelaçõescomanatureza.Masdiantedosobrenaturaleletambéminventaráoobjetodecura,temor,cultoepartederitualquetrazcertoentendimentoàscoisas.Inventamitosquecriamoshomens,aquelesespecíficoshomens.Estaartedeviverecriarobjetosprocuraresponderaopresente,aofortalecimentodoslaçosentreoshomens,mulheresecriançasqueoconstituem.Nãotrazempiedadeoumoralidade,nãocriamoEstadoeasfigurassoberanas.Assimcomonanatureza,nadaéfixo,constanteeimutável. Aartemodernavaiembuscadaexpressãodaperfeiçãovisíveldocorpoherdadadorenascimentoparadecompô-lapelagenialidadedoartistarevolvendooentendimentodoideal.Elanãoreinventaanatureza,masinterpõeohomemrevolvendosuanaturezahumana,atéchegaraosurrealismocomoatodeexposiçãodosinteriores,renovandooidealpelaassimilaçãodoinconsciente,suadesmesura,umirracionalcomoparteconstitutivadoracional.Umoutroentendimentoprojetadosobreoobjetoqueseprojetacomoobjetodearte,idealqueseperpetuatantoquantoimagenssantificadasapropriadasporcolecionadoresprivadosepúblicoscomoexpressãoartística.Éespelhoqueprojetaumidealaosespectadores.Éparteconstitutivadacontinuidadeparaaqualadescontinu-idade da arte primitiva se interpõe desalojando o entendimento. A arte cria o ideal, a religião seus mistérios. Stirner irá contrapor brevemente a filosofia à arte. Para o filósofo a razão busca a si própria, não ama pois se relaciona consigo e não com qualquer objeto. “QuandoseocupadeDeusnãoéparavenerar,maspara rejeitar, — nela só habita a razão que busca a centelha de razão que se ocultou sob esta forma”34. A filosofia é um ato de instabilidade, de crítica sobre o pensamento, de liberação dos ideais. Se a arte é começo e fim das religiões o que seria o Estado fundado no amor? Para Stirner, a liberdade democrática será superior à liberdade cristã. Entretanto, ela só existe pela negação da autonomia. A revolução Francesa introduziu uma representação da vontade, que embora seja uma vontade de cidadãos não é uma vontade livre. Stirner se encontra no interior de vasta discussão radical da década de 1840 que investe no entendimento acerca do direito e que o coloca como forma específica diante da generalidade, tema que atravessou os jovens hegelianos. Os direitos como entendimento do dever agilizam a liberdade moral em progresso e fazem com que os efeitos da Revolução Francesa sejam disseminados pelo mundo. Um progresso que refaz a beleza do amor: “o amor é decerto a mais bela e derradeira repressão de si, a forma mais gloriosa de aniquilar e sacrificar, a vitória sobre o egoísmo mais culminante em delícias; mas ao despedaçar a vontade própria obstaculiza ao mesmo tempo a própria vontade que é, para o homem, a fonte primeira de sua dignidade de ser livre”35. Amoretemorpelosoberanosãoexpressosporincontáveisatosdirigidosaobjetoseaidealizações.ÉprecisomelhoraroEstado,amá-loacimadetodasascoisas,porquenasuamaterialidadeeleacomodaoamoreotemoraDeus.ÉprecisoaconfissãodorebanhocrentenarazãodeEstadocomorepresentaçãodavontadedetodos.Elecastigaparaensinar,ameaçacompuniçãoparasermelhoramadoerespeitado.Apresenta-secomoaparterealdiantedoidealreligiosoeéomeioparaascendermosdenossacondiçãodemiséria.Respeitandosuaforçaeamandosuasaçõesmelhoramosdevida. O Estado possui seus artistas que materializam seus grandes feitos em obras públicas; e também genialidades que criam leis, são capazes de nos representar interpondo ao monarca uma razão comum e humana. Se a democracia perpetua no futuro o presente pela imperfeição institucional, o socialismo é a realização da perfectibilidade no futuro. Se antes teocracia e democracia compunham a família e o amor aos súditos e cidadãos, o socialismo será a dissolução da generalidade na emancipação humana, colocandonos o ideal de igualdade, ainda que o homem livre, mais uma vez não passe de um ideal em progresso. Por Stirner encontramo-nos diante do entendimento da gramática do poder maquiaveliana, tanto quanto o intempestivo e voraz “não” proferido por La Boétie. O jogo de forças que se encontra pacificado em Maquiavel pelo exercício do soberano e que foi instabilizado por La Boétie como reverso do temor do príncipe pelo povo, encontra em Stirner uma possibilidade para a relação de homens livres de Estado, inventando associações diante da recriação da arte da sociedade. Talvez seu mais contundente opúsculo seja “O falso princípio de nossa educação”. O tema é apresentado ao leitor havendo uma oposição entre humanistas e realistas. Ele designa os primeiros como aqueles cuja formação está pautada nos ensinamentos da antigüidade, voltados para a erudição e o investimento nas massas visando a superação da ignorância; e os segundos, que pretendem sucedê-los, voltados para a utilidade. Stirner procurará mostrar as complementaridades. O ensino superior até o iluminismo, incontestavelmente dirigido pelos humanistas, debruçava-se sobre a compreensão dos antigos tanto quanto aos estudos da Bíblia, que também tinha por referência a mesma antigüidade. O povo deveria permanecer ignorante para venerar o saber dos humanistas.36 A educação deveria ser formal, fundada no gosto, o apreço pelas formas, um ensino elegante. O realismo veio interpor-se trazendo programas pedagógicos a serem aplicados a todos contemplando os princípios do moderno direito de igualdade para a emergência de um indivíduo independente e autônomo, segundo os princípios da liberdade. Desta maneira, se o humanismo pretendia enaltecer o passado, o realismo voltava-se para o presente. Entretanto, a distinção nada mais faz do que reafirmar o domínio do temporal. A libertação da autoridade não trazia consigo, segundo Stirner, a igualdade e a liberdade sem autodeterminação, mas apenas uma reconciliação com o nosso ser eterno. O homem deixava de voltar-se para uma cultura formal baseadanaculturageralparacompor-secomautilidade do homem prático. Aeducaçãoformal,realistaemodernavaiembuscadoútileutilizávelconsagrandoasformasepropiciandoahabilidade.Elapassaaserinevitável.Assimsendoaobrigatoriedadeseentendepelaeducaçãodascrianças,votoeserviçomilitar.(Apassagemdotempoconsagrarámelhoraindaaescolhaobrigatóriapormeiodalegitimidadedaabstençãoeleitoraledoserviçomilitaropcional).Aescola,particularouestatal,segundoStirner,éaformaeducativaparavolatilizaraautonomiaindividualemobediência.Éamaneirapelaqualosaberseconsagraeosrealistasexplicitamsuahostilidadeàfilosofia.Aeducaçãocombasenautilidadevisalongevidade,aperfeiçoamento,ascensão,dedicação,especialização,domínio37. Corresponde ao industrialismo, um tempo de saber simples e direto que “manifesta-se e recria-se em vontade em todas as nossas ações”38. Não devemos, diz Stirner, passar por cima da “vontade de Saber”39, para afirmar um estado de Querer, pois o saber culmina em querer ao despojarsedosensível,criando-secomoumespíritoqueconstrói oprópriocorpo.Equalhumanismoourealismodesejará a morte de tal saber? Um saber impessoal não nos preparaparaavida,mantém-secomoabstração,sópodeser o fim último da educação. É inibição da vontade, contradizendo, simultaneamente, o idealismo e o materialismo. Aeducaçãoensinaaobedecer.Impedeavitalindisciplinaaomesmotempoemqueinterrompeoprópriosabersetransfigurandoemvontadelivre.ParaStirnernãoestáemdiscussãoopor,tãosomente,SabereVontade.Nãohávontadequeemerjasenãoapartirdeumavontadedemorteaosaber,oqueporsinosreportaàcríticaàvontadedesaber(oespíritocriandoocorpo)paravontadedequerer(ocorpoesuascalosidades).Stirnernãoestádeclarandoamortedosaberpeloexterior,maspeloexercíciolivredesuasprópriasproposiçõeslevadasaolimite.Amortedosaberestánelemesmo,oquefazdafilosofiaumexercícioparaqualquerumopondo-seaumaverdadeiraeducaçãonasmãosdosfilósofos.Saberepodernãoestãodissociados.Aconsciênciamaiordofilósofosucumbediantedamenoridadedoexercíciocríticodefilosofar.Nãosetratadeliberdadedevontade—oqueéprópriodosaber—pois“seaidéiadeliberdadedespertanohomem,umavezlivre,elenãocessadecontinuaralibertar-se;masseéapenasculto,eleseadaptaráàscircunstânciascomopessoaaltamentecultaerefinadaenãoserámaisdoqueservidordealmasubmissa”40. Não está em questão formar homens de princípios que respeitem leis, e que se mantenham fiéis às suas convicções. É preciso sofrer de liberdade, estremecer, um rejuvenescimento constante. Uma situação na qual se instala a dúvida que nos faz escolher, transfigurando o saber em vontade. Não há pedagogia que não infunda um saber sem vontade visando a concordância entre a escolaeavida.Stirnerquerqueaescolasejaavida.“Ateimosiaeaindisciplinadacriançatêmtantosdireitosquantoseudesejodesaber.Estimulamdelibera-damenteesteúltimo;quetambémsuscitemessaforçanaturaldaVontade:aoposição.Seacriançanãoaprendeatomarconsciênciadesi,éclaroqueelanãoaprende o mais importante. Que não seja sufocado nem seu orgulho, nem sua franqueza natural. Minha própria liberdade permanece sempre ao abrigo de sua arrogância. Pois se o orgulho degenera em arrogância, a criança desejará usar de violência contra mim”41. Para uma educação que ensina “a arte de fazer habilmente seu caminho na vida, esta dá o poder de fazer brotar das profundezas do Eu a fagulha da vida; aquela prepara para estar consigo num dado mundo, esta a estar consigo mesmo”42.Trata-sedaliberdadedesinaqualosabersósetornalivreinternamente,diferindodaqueladoshumanistaserealistasquevelampelaliberdadedepensamento,pelalibertação,umaliberdadequenoscalcificasubmissos.Osaberdependedestaliberdadeexteriortantoquantoavontadedependedeumaliberdadeinterior.Diantedamoral,aética.Somenteumaexistênciaéticasustentaumaeducaçãopessoal. Abalandoasconvicçõeshumanistaerealista,Stirnertambémabalaosanarquismosnoquecrêemdefuturoeutopia.SeelestêmalgoavercomStirnerestáemdesfazer-sedasconstruçõesdopresenteemdireçãoaofuturo,paraserpresentedespojadodemoral.Atãoefetivoseesfuziantescríticosdasociedade,capazesdeinventaremassociaçõesparaavidalivre,reclamariadelesStirneravontadededeixardesersociedade.Seremnômades,comobandosdehomensebichosabandonandoosgrandesdefensoresdosaber—eosqueodenigrem—àprópriasortedosseuscriadores.Masistoédeumlado,aconfirmaçãodapróprialiberdadedosaberquecedooutardeaeledeclararáguerra;edeoutrolado,éaconstataçãodoslimitesdestaliberdade,um efeito de liberação, uma ética da amizade que ri entre amigos, os melhores inimigos, a cada migração. Aos tristes e aos escravos as migalhas da liberdade, ou os sonhos de uma liberdade que jamais será vivida! Por Stirner se redimensiona a arte da amizade, a arte dos amigos pessoais alheia a convicções, algo que ocorre pelo ato de fazer e existir, não regulando a moral no âmbito dos espaços delimitados, mas fazendo-a acontecer por fluxos. Não se queira eterno como idéia ou realidade. Nem o Estado é para todos, de todos e detodas as épocas, nem a associação é para sempre. É preciso ser livre para sair e inventar. Os anarquismos precisam de outras liberdades anárquicas. Um comentário final, até certo ponto alheio ao que foi discutido. Se há alguma relação entre este percurso de La Boétie a Stirner e, a partir deste principalmente em relação à arte que conhecemos, a relação pode ser encontrada no dadaísmo; arte aquém e além do objeto. HansRichterafirmouque“Dadanãoselimitavaanãoterprograma,eracontratodososprogramas”.Issonãoexclui,completouPaulFeyerabend,emContraométodo,“ahabilidosadefesadosprogramasparamostrar ocaráterquiméricodetodasasdefesas,aindaqueracionais”43. Um anarquista, para Feyerabend, “é como um agente secreto que participa do jogo da Razão para solapar a autoridade da razão (Verdade, Honestidade, Justiça e assim por diante)” 44. Aí se encontra Max Stirner, numa posição de agente secreto, radical e distante, daquilo que concluiu Sun Tzu, em A arte da guerra, escrito na China por volta do século V AC: “somente um príncipe esclarecido e um general digno podem aliciar os espíritos mais penetrantes e realizar feitos notáveis. Um exército sem agentes secretos é um homem cego e surdo.” Esterionãodesembocounaoposiçãoentresoberaniaeautonomiaindividual,apenaspassou,porgrandesrios,comoumafluentequeseramificasegundoaépocadaschuvas.Emtempo:aschuvasnãoforamsuficiente-menteabundantesparafazê-lonãomaisqueresvalaremNietzsche.Seráprecisoesperaranovaestaçãodaschuvas.Mascomousemelasabemosqueaamizadenãoéumtemaexclusivodefilósofos,nemaelescabelocalizaraspráticasdeamizade.Aartedaamizadeestáemfazerpublicamentemiríadesdeassociaçõesformadasporpessoascondutorasdedesejos,uns.Osanarquistassãouns. Notas 1 Nicolau Maquiavel. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília, UNB, 1994, p. 97. 2 Idem, p. 25. 3 AfasemaisfértildeMaquiavelcomohomempúblicoénogovernoSoredini.Propõeeorganizaoalistamentoetreinamentosmilitares,inclusiveemdiasdeferiados,comoobjetivodeformarmilíciasprópriaseacabarcomanecessidadedeserecorreraexércitosdemercenários.Oconfrontocomosespanhóiseofracassodestamilíciacusta-lheocargoeoexílio.ApesardeFlorençaserconsideradaamaisrepublicanadasrepúblicasdonortedaItália,desdeaConstituiçãode1293,transformandoosprivilégiosdosnobres(exercíciodopodercentralemonopóliodacavalaria)paraacomodarosinteressesdoscomerciantes,elanuncadeixoudeseroligárquica. 4NestesentidoésemprebomlembrardoopúsculodePlutarco,“Comodiscernir o bajulador dos amigos”, tarefa árdua e incansável do governante. 5ArebeldiadeLaBoétieatingeemcheioasformasdecontinuidadedosoberanonaTerra.Porém,oautorseesquivaemampliarsuademoliçãoàreligião,quepermaneceintocável,umaformamoralirredutível,aindaqueosgovernantesvenhamautilizá-lacomoescudo.UmafamiliaridadeasermelhortraçadapodeserlocalizadanotranscendentalismoemersonianodeDavidHenryThoureau,noopúsculoconhecidopor“Adesobediênciacivil”. 6 “Nossa natureza é de tal modo justa que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que omerece”(LaBoétie,E. Discursosobreaservidãovoluntária,SãoPaulo,Brasiliense,1982p.12). 7 Muito tempo depois, na passagem do XIX para o XX, o pensador anarquista Piotr Kropotkin, partirá da noção de ajuda mútua para opor-se à construção da

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naturezahumanacompetitivaaprofundadapelodarwinismo,procurandoelaborarumanarquismocientífico.Paranossosinteresses,nestemomento,bastareconheceristo.Entretanto,convémnãodeixardesublinharqueavisãopositivistadeKropotkin,estabelecendoumaleideterministaparasociedadeigualitáriaserábastantecombatidanointeriordopróprioanarquismoqueconsideraaatitudecomoexistêncialibertáriadiantedasleisdahistória. 8 Umoutropercurso,pormeiodaanálisedonomadismoéelaborado,emespecial,porGillesDeleuzeeFelixGuattariem“Tratadodenomadologia”,publicadoemMilplatôs(SãoPaulo,34Letras,1997,vol.5).ParaClastres,LaBoétieseriaofundadordeumaantropologiamoderna:associedadesprimitivasevitamomauencontropelarecusadainstituiçãoEstado. 9 TomoaquianoçãodeassujeitamentodepreendidadeFoucaultporGuilhermeCasteloBrancoem“Consideraçõessobreéticaepolítica”(in,Portocarrero,V.eCasteloBranco,G.(orgs)RetratosdeFoucault,RiodeJaneiro,NauEditora,2000p.326)quediz:“escolhiaexpressão‘assujeitamento’aoinvésde‘sujeitamento’paraseguiràriscaaidéiadeFoucault:trata-sedeummododerealizaçãodocontroledasubjetividadepelaconstituiçãomesmadaindividualidade,ouseja,daconstruçãodeumasubjetividadedobradasobresiecindidadosoutros”.SobreasrelaçõesentreopensamentodeLaBoétieeFoucaultverAmizade:Ensaios,Foucault,Nietzsche,Stirner...,tesedelivre-docência,PUC-SP,2000,pormimapresentadaedefendida. 10 ParaClaudeLefort,em“OnomedoUm”,emLaBoétienãohátransiçãodaautoridadeparaaliberdade.Trata-sedeumainversãododesejo:deixardequererotiranoéderrotá-lo.Hánopoderumfeitiçoe,nestesentido,LaBoétie,chamouatençãoparaoselementossobrenaturaisdopoder. 11 NestecasoasreflexõeslevadasacaboporanarquistascomoGodwin,ProudhonemesmoStirner,filiam-seaessareflexão,aindaquenoanarquismo o vetor revolucionário tenha grande penetração e, sem dúvida, predominância,

oquesobcertascircunstâncias,tambémderivaparaoterrorismo.

12 TalveztenhasidoErricoMalatesta,entreosanarquistas,oautorquetenhamelhorcaptadoumadissociaçãodareligiãodoEstado.Paraeleomovimentoanarquistanãopodeexcluiraprioriosdevotosdeumareligião.Encontranalutapelaliberdadeafinidadesentrepessoasquevivemsobojugodaautoridade.Omovimentoanarquistadeveriaincorporartodosaquelesquesevêemoprimidosindependentementedecoloraçãoreligiosa.Aeducaçãonalutalibertáriaincluindovivências,solidariedades,ajudasmútuas,elaboraçãodenovoscostumeseexistênciaséquesituaráosefeitosreligiososentreeles.Portanto,sehaviaemMaquiavelumaassociaçãointrínsecaentrereligiãoegovernodemaneirapositiva,emLaBoétieenoanarquismodeMalatesta,comasdiferençasnotadas,evita-seprescreverquaisserãoasnecessáriastarefasparaaedificaçãodolibertarismo. 13 EtiennedeLaBoétie.Discursodaservidãovoluntária.SãoPaulo,Brasiliense,1987,p.35. 14 VeraesserespeitoassugestivasreflexõesdeSalmaTannusMuchail“Sobreaamizade-consideraçõescasuais”,SãoPaulo,Margemnº9,FaculdadedeCiênciasSociaisPUC-SP/EDUC/FAPESP,pp.131-139edeJeanStarobinski,Montaigneemmovimento,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1992. 15 MicheldeMontaigne.“Daeducaçãodascrianças”inEnsaios,vol.I,SãoPaulo,NovaCultural,ColeçãoOspensadores,p.76. 16 Ibidem, p. 78. 17 Segundo Montaigne, devem ser as seguintes as matérias para educar o corpo: exercícios, jogos, corridas, lutas, música, dança, caça, equitação e esgrima. O corpodeveestarhabituadoatodososusosecostumes.SeguindoCícero,afirma que desejaria formar o jovem envergonhando-se de seus trapos e espantandose com a riqueza. Seus conhecimentos devem servir-lhe, não para mostrar o que sabe mas para ordenar seus hábitos, se é capaz de se dominar e obedecer a si próprio. 18 AinspiraçãoparaLaBoétieescrever“Aservidãovoluntária”,deacordocomMontaigne,quefoiseuamigointensodurantequatroanos,veiodaconstataçãoqueoshabitantesdaÂsia,acostumadosaservirumúnicosenhor,nãopronunciavamapalavranão. 19 Michel de Montaigne, op. cit., p. 81. 20 Ibidem, p 84. 21 Ibidem, p. 82. 22 Ibidem, p. 83. 23 Foicomumnaeducaçãoanarquistaqueosjovensfossemestimuladosaconheceromundocomoaspectoprincipaldasuaformação. 24 Michel de Montaigne, op. cit., p. 89. 25 SobreainfluênciadeStirneremNietzsche,verinventárioemPassettiop.cit.,eemespecial,RüdigerSafranski,Nietzsche:biografiadeumatragédia,SãoPaulo,GeraçãoEditorial,2001,pp.97-119. 26 SegundoBragançadeMirandanaapresentaçãodeTextosDispersos(Lisboa,ViaEditora,1979,pp.26-27)deStirner,“oEu,oÔnicoéumadessasmetáforasbrancasquenãosignificamnada.Daísuaambigüidadefundamental.Stirnerpretendeucunharumapalavraquecortassecomaabstraçãoeogeral,queconseguissedesignaroindizível,oinexprimível,semqueestealgoimediatamenteseevaporassenonada;semconteúdo,elanãoremeteriaparaconceitos,nempermitiriaqueseencetasseuma‘novasérieconceitual’,socavando,simultaneamente,oterrenodametafísicaondemedramossistemas.(...)Ametáforabranca,semsignificado,éumametáforaprodutivadediferenciações,oferece-secomopassagemaoTuqueprojetando-senelaaencheriadeconteúdo.”Stirnerquersaberoquefizemosdenóseoquepretendemossabercomovontadedepessoalivre.ComobemlembrouJeanBarrué,em“Daeducação”(inStirner,MaxOfalsoprincípiodenossaeducação,SãoPaulo,Imaginário,2001),

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em Stirner, como em Montaigne, prepondera o “faz valer-te a ti mesmo!”. 27 Max Stirner. “Mistérios de Paris” in Textos Dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979, p. 148. 28 Ibidem, p. 131. 29 Ibidem, p. 137. 30 MaxStirner.“Arteereligião”inTextosDispersos.Lisboa,ViaEditora,1979, p. 104. 31 Idem, p. 102. 32 Ibidem, p. 104. 33 Ibidem, p. 109. 34 Ibidem, p. 110. 35MaxStirner.“AlgumasobservaçõesprovisóriasrespeitantesaoEstadofundadonoamor”inTextosDispersos.Lisboa,ViaEditora,1979,pp.121,122. 36 NãofoipormeracasualidadequeolibertárioWilliamGodwinaoescreveroPoliticaljustice,nofinaldoséculoXVIII,chamavaaatençãoparaofatodasmassasveremoshomensletradosegovernantescomooagrupamentocompostoporhomensportadoresdevirtudes,ousegundoascircunstâncias,osverdadeiroscorruptoseviciosos. 37 “Asliberdadesdepensamento,decrençaedeconsciência,essasfloresmaravilhosasquesãoaobradetrêsséculos,sefecharãonoseiodaterraparanutrircomsuaspreciosasseivasumanovaliberdade,aliberdadedequerer.Saber,teraliberdadedesaber,taleraoidealdessaépoca,idealenfimalcançadonoapogeudafilosofia.AgoraoheróideveerigirelemesmosuafogueiraesalvarsuapartedeeternidadesobreoOlimpo.Afilosofiapõeumpontofinalnocapítulodopassado;osfilósofossãoosRafaeldaépocadopensamento;graçasaeles,osantigosprincípiosencontramseuacabamentonumacintilanteorgiadecores,eesserejuvenescimentoosfazpassardotemporalaoeterno.Doravante,quemquiserconservaroSaberoperderá,masquemoabandonar oencontrará.Sóosfilósofossãoaptosaessarenúnciaeaessaaquisição:empédiantedaschamasardentes,é-lhenecessário,comooherói,deixarconsumir-seseuinvólucromortalsequiseremdelelibertarseuespíritoimortal”.MaxStirner.Ofalsoprincípiodenossaeducação.SãoPaulo,Imaginário,2001,p.73. 38 MaxStirner.OfalsoPrincípiodenossaeducação.SãoPaulo,Imaginário,2001,p.74. 39 Idem, p. 74. 40 Ibidem, p. 78. 41 Ibidem, pp. 81-82. 42 Ibidem, p. 83. 43 PaulFeyerabend.Contraométodo.RiodeJaneiro,FranciscoAlves,1989,p.44. 44 ÉimportantesalientarqueFeyerabendnãofechacomoanarquismoporconsiderá-los,àmaneiradeFoucault,repletodecaracterísticasqueseencerramnum“tipodeseriedadeededicaçãopuritanasqueeudetesto”(op.cit.p.25).SuareflexãosobreoquechamaanarquismopolíticoestámarcadapelasualeituradeBakunin;porumacertadisplicênciaevitouconstataropacifismonointeriordosanarquismosdomesmoséculo,comoemGodwineProudhon.Recorreuentãoaodadaísmo:“umdadaístanãofeririauminsetojáparanãofalaremumserhumano.Umdadaístanãosedeixaabsolutamenteimpressionarporqualquertarefasériaepercebeoinstanteemquepessoassedetêmasorrireassumemaquelaatitudeeaquelasexpressõesfaciaisindicadorasdequealgoimportanteestáparaserdito.Umdadaístaestáconvencidodequeumavidamaisdignasóserápossívelquandocomeçarmosaconsiderarascoisascomlevezaequandoafastarmosdenossalinguagemasexpressõesenraizadas,masjáapodrecidas,quenelaseacumularamaolongodosséculos(‘buscadaverdade’;‘defesadajustiça’;‘preocupaçãoapaixonada’,etc.).Umdadaístaestápreparadoparadarinícioaalegresexperimentosatémesmoemsituaçõesondeoalterare oensaiarparecemforadequestão(exemplo:asfunçõesbásicasdalinguagem).Esperoque,tendoconhecidoopanfleto,oleitorlembre-sedemimcomoumdadaístairreverenteenãoumanarquistasério”op.cit.pp.25-26,grifosdoautor. resumo abstract O cristianismo e o Estado moderno The Christianity and the modern destinaram a amizade à vida state have placed friendship in privada. Retomar sua importância private life. Recover its public pública, alheia à formalidade importance, apart from the state estatatizante sob o nome de formality under the name of amizade entre os povos, requer friendship among peoples, requires buscar uma ética existencial atenta searching for an existential ethics à política para nela não sucumbir. O that considers politics, so it will not modelo da soberania inspirado por parish with it. The model of Maquiavel é contraposto aos sovereignty inspired by Maquiavel libertarismos ético e estético de La is the opposite of the ethic and Boétie e aos escritos de Max Stirner aesthetic libertarisms of La Boétie anteriores a O único e sua and the works of Max Stirner, prior propriedade. to The Ego and Its Own.

ocre

RastrosestridentesdemilvozesassumemaformadasmassasinvisíveisapontadasporCanetti,diluídasnafiguradovento.Asescadariasnaportadotribunalpululamemfreqüênciasdíspareserostosanônimos.Latasdealumínio,perfazemdançastortaseapressadasnaáguaquecorrenomeio-fiodacalçada,trombamcomcigarrosrecémapagadosesão,abruptamente,engolidasporbueirosimprevistos. Aesperaescaldasobosol.Aesperaencharcasobachuva.Aesperadavezsemvezreaparecenoanônimoasercatalogado,mapeado,esquadrinhado,inventariado.Mãessemdentesmastigamlanchesvagabundoscompradosdooutroladodarua,nafilaexcessivadecarneseossosdispostosnavastaesperadaapoteosedoprocedimento.Oaçouguedaformalidade.Criançassobemedescemasescadarias,tornandobrinquedodegrausgastosdahierarquiasupérflua. Sons de conversas entrecortadas, por dúvidas concretas de mulheres com seus filhos, invadem o ar saturado de amarelo ocre. A água do meio-fio cheira a mijo. Urina reluzente. Crianças cagadas desassossegam ao sol. O burburinho aumenta. Lá dentro um agente da lei grita, impassível, um a um o número das senhas. ‘Diante da lei há sempre um porteiro’ disse Kafka. Pela * Salete de Oliveira é pesquisadora do Nu-Sol. 61

porta suntuosa e carcomida a fila se espreme e adentra pela antes larga e agora estreita passagem. O coro de mil vozes bipartidas é esquartejado por inúmeros corredores labirínticos do impossível cansaço do procedimento burocrático. Existências engolidas, digeridas, regurgitadas, evacuadas, pairam sob instrumentos de registro, identificação, violação, para melhor recontar uma verdade que já estava construída para fazer caber cada existência no interior dela. Não importa o que vibra, excede ou escapa. O julgamento individualizado deve ser capaz de outorgar a cada um o que de antemão é validado como universal. Esta é a cota que cabe a todos os mortos-vivos que acreditam na universalidade da lei e no direito de justiça. Amisériadaesperaportrásdeportastaciturnaseclodenamisériadasobriedade,namisériaquecomportaqualquertipodeesperança.Aesperança,sejaelaqualfor,édesprezível,poisnãopassadopaliativofugazqueandademãosdadascomocalmanteperpétuodocompassodoperdão.Oqueeraumproblemapessoaleintransferívelentrepessoasconcretasseesfumaparaviraradereçoregularnaabstraçãodarotinaburocrática,comtodasuaparafernáliadeatenuanteseagravantesperfiladosnasmilfasesdeboletinsdeocorrência,inquéritos,diligências,averiguações,provasecontra-provas,laudosmédico-legais,representações,sindicâncias,apurações,testemunhos,pareceresbio-psico-sociais,alegaçõesparciais,alegaçõesfinais,sentenças,encarceramentos,acórdãosdesfavoráveis,manutençãodesentenças,sobre-encarceramentos. Otribunalsealastraparamuitoalémdeseuterritório,suaportadeentrada,estebecosemsaída,jáeraopedaçoínfimoperpetuadonocotidianoemváriascasasquereinventamotribunaldafamília;emescolasquereconstroemotribunaldainstrução;notrabalhodecadaumqueedificaotribunaldacompetência;namídiaquereeditaotribunalgeneralizado;nareligiãoquesantificaotribunaldasalvação;nauniversidadequedescortinaotribunal do esclarecimento; na polícia que legitima o tribunal da tortura; na prisão que refaz o efêmero acordo dotribunalnacontinuidadebiológica;noEstadoquecoroa otribunaldorebanho;namoral,todaequalquermoralcujasobrevivênciaseperpetuanacertezaatrozesuavequecomeçaláondeseiniciaasujeiçãoimperceptíveldasintaxeamedrontadadecadaumdenós—todasasvezesquesecrêequesequerfazercrer,queoprescritíveltribunaléasombraseguranafugacidadedavida.

Osilênciodotribunal,cheiraaoco.Nãoháespaçopara

ovaziorepletodesons,mesmosonssilenciosos.Éoocodosruídosquefalamaisaltonostribunais.Semruídos!Existênciassobre-contadasnodedilhardeescrivãsreimprimemfalasdescortinadasnasantaconfissãodetododia.Murosdelabirintosdoprocessoformallegal.Tribunal-parede.Tribunal-parente.Tribunal-patente.Tribunal-ponte-que-leva-à-cruz.JULGAMENTO.Jugodocimentodelodo.Olododecódigoseleis.Olododamoral.Otronodaenormebunda.

TextoextraídodePolíticaePeste:Crueldade,PlanoBeveridge,AbolicionismoPenal.SãoPaulo,TesedeDoutoradoemCiênciasSociais-PUC/SP,2001. resumo abstract A tradição do tribunal destinada a The tradition of the tribunal directed to crianças e adolescentes, considerados children and teenagers, considered transgressors, in Brazil, saves for them infratores, no Brasil, reserva a estes a the modern profile of the transfiguration face moderna da transfiguração do of just judgment, shaped for its ideal julgamento justo parametrado por seu partner: the asepsis of death parceiro ideal: a assepsia da morte measurable in the proliferation of life mensurávelnaproliferaçãodavidasobundersecurity.Adultsareafraidofchildrenbecausethearrowsthrownby a égide da segurança. Adultos temem themreachaccuratelytheirtarget,therecriançasporqueasflechasarremessadas and here, where remains butt and lack por elas incidem certeiras, lá e aqui, ass. onde sobra bunda e falta cu.

em circunstâncias de paz, o homemguerreiro se lança contra si mesmo

Nietzsche

limiares

oquenãoentorna,seconforma. arnaldoantunes I Operíododemarcadohistoricamenteentreanos1945e1989foiprofícuonaconstruçãodeimagens.Omundopassaraaterdoispólosdemagnetismosopostos:‘Leste’e‘Oeste’sepersonificaramemantagonistasdeumaguerraglobalnuncadeflagrada;‘fria’àslentesdasRelaçõesInternacionais,vívidaparaalvosmacartistas,recrutassoviéticosnosudoesteasiático,soldadosnorte-americanosnosudesteasiático.Alegoriasemconflito,asideologias,virulentasemsuassemelhanças,forneceramvagueiosdeorientaçãoparacrentesemluta.Nochoquedemetáforas,omuroquecindiuaex-capitalnazista,emprincípiosdosanossessenta,assumeacargadeprovaimagéticadanovaordemplanetária.Algumasquadrasberlinensesrasgadasporumaarmaçãodeconcretoencerravamarepresentaçãodahumanidadecindida.Quandoaslascasdomurovêm * Poeta, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador do Nu-Sol. 65

ao chão, em meio à festa da reconciliação fraternal alemã, o signo da fissão entre comunistas e capitalistas é substituído por um novo arsenal de retratos e prefigurações: a Europa Unida, a Liberdade libertada, o apaziguamento com o Próximo. A escolha de iguais, toleráveis em aparências e aspirações, pressupõe, contudo, a produção ininterrupta de alteridades. A aceitação utópica do ‘mesmo’ não prescinde da rejeição contundente do ‘outro’. As fronteiras, limiares conformadores do Estado Moderno, não se dissolvem, mas se atualizam em novas barreiras, ‘virtualizadas’ muitas vezes em rastreamentos eletrônicos, mas sempre rígidas em sua existência. Dos metros do Muro de Berlim que se multiplicavam nas milhas metafóricas do mundo bipolar, cancelas concretas se interpõem ao trânsito livre de indesejados. Dentre tais obstáculos, um outro muro se posta não entre alvos germânicos, mas entre mexicanos, de um lado, e a promised land estadunidense, do outro. Centenas de quilômetros na fronteira entre México e Estados Unidos foram convertidos nos últimos anos numa faixa de bloqueio. Placas de concreto, arame farpado, chapas de metal e um implacável deserto se colocam como desestímulo àqueles que intentam avançar rumo ao norte. Em adição, há o trabalho da guarda de fronteira norte-americana que sobre-vigia as passagens permitidas e rastreia, com todo aparato tecnológico criado para desvelar a astúcia clandestina. Se o pretendente a imigrante ilegal lograr iludir os guardas federais e resistir aos coiotes, ao frio extremo da noite e ao calor insuportável do dia no deserto, ele ainda há de superar os novos rangers texanos, cujo esporte preferido parece ser caçar latinos pelas rochas e vazios da fronteira, fazendo uso das mesmas armas, rádios, localizadores e equipamentos de visão noturna utilizados pela polícia estadunidense nas bordas do México e pelas forças armadas norte-americanas alhures. A caça é, declaradamente, apenas de ‘captura’; sendo, os ilegales, supostamente entregues às autoridades para repatriação. Às vezes, mexicanos ludibriam todos empecilhos à sua entrada nos EUA, se ocultando nos fluxos permitidos entre os dois países. A descoberta recente de imigrantes ilegais sufocados num container, sugere que muitos já foram exitosos em furar os bloqueios se imiscuindo entre, ou fingindo ser, mercadorias. Estas sim podem circular com certa tranqüilidade liberal desde que o North American Free Trade Agreement (NAFTA) entrou em vigor, em 1994, abrindo as portas para que produtos e capital transitem entre os acordantes Canadá, EUA e México. Como uma zona de livre comércio que é, o NAFTA destina-se à liberalização das trocas comerciais e das transações financeiras, vedando o ir-e-vir de pessoas. Principalmente, mexicanos. E não se trata de insurretos indígenas, mas de pessoas, homens e mulheres desejosos em realizar o ‘sonho americano’: ambicionam trabalhar para as empresas norteamericanas em troca de dólares norte-americanos. Orechaçonãoé,pois,‘ideológico’oumetafórico.OmuroMéxico-EUA,feitodeconcreto,deserto,guardas,cãesecidadãosnorte-americanosfarejadores,nãoéumaimagemadividircosmovisõesouformasdevida.Éumlimiteerigidodefato,amploecontumaz,queobjetivarepeliraalteridade.Omexicano,etambémoutroslatinos,nãosãomeramente‘imagensdooutro’repudiadaspelosWASP(WhiteAnglo-SaxonandProtestant)americanos,sãorealmenteumaalteridadeinvasoraquemobilizadiversossetoreseinteressespolíticoseeconômicosnosEstadosUnidos.Háqueselidarcomantígenosinternos—afro-americanosechicanoshámuitoestabelecidos—ecomnovosbárbarosquepressionamafronteira.Sim,háfronteirasadefendere‘outros’aseremgolfadospeloascointransigentedosamericanostemerososesempreciososdesi. II Dosintoleráveisàmoralidadeocidental,duaspráticasemergemcomdestaquenestecomeçodeséculo:terrorismoenarcotráfico,‘flagelosdahumanidade’.Avinculaçãoentretaisatividadesnãoénova,esuagenealogiapodeserperscrutada,aomenos,retornandoaosanosoitentaeaodiscursogovernamentalnorte-americano.Em1986,ogovernorepublicanodeRonaldReagandeclaraqueonarcotráfico,entendidoentãocomo‘impérioclandestinoconspiratóriocontraasaúdeeamoralestadunidense’,passaraasertidocomoameaçarealàsegurançanacionalnorte-americana.Osignificadodestaafirmação,jáentão,nãopareceriavagoaosquenutrissemalgumafamiliaridadecomahistóriadasrelaçõesentreEUAeAméricaLatina.ConceitofundamentaldomododeorganizaçãopolíticadoEstado-Nação,adefesadasegurançanacionalparaosnorte-americanosultrapassaaidéiaderesguardodesuasfronteiraseseuentornoparaprojetar-sesobretodoocontinenteamericano.ParaosEUA,potênciaregionalemundial,osacontecimentosdistantesda‘Pátria-Mãe’sãodevitalinteresse.Nalidedapolíticaexterna,consideraralgouma‘ameaçaàsegurançanacional’significaoavalinterno(político,midiáticoesocial)parapossíveisintervençõesdiplomáticasemilitaresnos‘focos’ouna‘origem’doproblema.Nestemomento,aterminologiaclassificatória‘paísprodutordedroga/paísconsumidordedroga’,cunhadaaindanogovernodorepublicanoRichardNixon,nosanossetenta,édeextremaeficácia.Umpaísseria,assim,responsabilizadopelaproduçãodo‘mal’,enquantooutro,vitimizadopelaafrontaexógena,teriaodireitodesedefenderatacandoa‘fonte’. Diante do declínio do ‘perigo vermelho’ ao longo da décadadeoitenta,o‘demôniobranco’dacocaínaparecia assumir o espaço que aos poucos era desocupado pelos insurretos de esquerda que povoaram as preocupações estadunidensesnadécadaprecedenteenocomeçodaqueledecênioemcurso.Nestatransiçãodealvos,umahibridizaçãoocorreu.NaColômbia,paíslocalizadopelosEUAcomo‘centroprodutor’primordial,asatividadesdasguerrilhasmarxistasemlongalutapelopoder,passamaservinculadaspelodiscursogovernamentalestadunidenseaotráficodedrogas.Grandescaposdadrogaagiriamemconsonânciacomguerrilheiros,partilhandoterritórios,colheitas,armas,dólares.AameaçatradicionaldaGuerraFria—comunistasemarmas—reaparecia,assim,relacionadaaonovooponente:otráficodedrogas.Confeccionava-seaidéiadenarcoterror.Termoquetemutilizaçãoampliadaquando,napassagemdosanosoitentaparaosnoventa,inúmerosatentadoseseqüestrospatrocinadosporempresáriosilegaisdacocaína,comoPabloEscobar,visamjuízesefiguraspúblicascomoobjetivodepressionarogovernocolombianoanãoaplicaraleideextradiçãofirmadacomosEUA,nadécadade1970. Independentedaaproximaçãoproporcionadapelodiscursodonarcoterror,conectandoumperigoemergenteaoutroemdissolução(‘ideológica’,aomenos),otráficodedrogaseoconsumodesubstânciaspsicoativasilegais,assumiamapontadaspreocupaçõesdogovernonorte-americano.Preocupaçãoemnadanovidadeira,umavezqueaelaboraçãodemarcoslegaisinternacionaisdecunhoproibicionistadeveemmuitoaoesforçodiplomáticoestadunidense,desdemeadosdadécadade1910.OsdiversosacordoseconvençõescelebradosentreosEstadosdogloboquepretendiamcoibir,emintensidadecrescente,ocomércioeousodedrogas,foramfomentados,emgrandeparte,pelainiciativadasdelegaçõesnorte-americanasqueexportavamaomundo,ummodeloderepressãoàebriedadequímicacalcadonopudicolastrodaspráticassociaismoralistasdomésticasequecolocavaemmarchaumeficazinstrumentoderastreamentode‘comportamentosdesviantes’levadosàcabopor‘indivíduosperigosos’,notadamentenegros(‘cocainômanosagressivos’),mexicanos(‘indolentesusuáriosdamaconha’),chineses(‘introdutoresdoópio’),irlandeseseeslavos(‘bêbadosinveterados’).Onarcotráficodespontava,nosgovernosdorepublicanoGeorgeBushedodemocrataBillClinton,comoinimigopreferencialasercombatidodentrodecasa(noduplosentidode‘dentrodopaís’e‘dentrodasfamílias,escolasecomunidadeslocais’)enoalém-fronteiras.Contudo,outro‘anômalo’despontavadividindoatenções:oterrorismoextremistaislâmico. Proveniente da vociferação contra o ‘Grande Satã’ de Khomeini, nos anos oitenta, o ativismo islâmico anti-americano não se revela tão-somente com o triplo atentado aos Estados Unidos em setembro de 2001. A laicizaçãodospaísesislâmicos,tônicadosgovernospóscoloniais na Âfrica e no Oriente Médio, cedia espaço para movimentos políticos de inspiração muçulmana ‘puritana’, desde ao menos os anos 1970. A Revolução Iraniana e o assassinato de Sadat são marcos deste crescimento. Os alvos deste islamismo de luta são constituídos nos interstícios de temas ancestrais traduzidos e reapresentados: Israel e os Estados Unidos são infiéis em terra santa, imperialistas em terra empobrecida. Após o primeiro ataque ao World Trade Center, em 1993, a ameaça de ‘ataques extremistas’ é lançada para os norte-americanos como uma possibilidade concreta em tempos de guerra na Bósnia, no qual internacionalistas arriscavam prefigurar que os embates do futuro seriam entre culturas antagonistas. A crença na ‘guerra cirúrgica’ criada, fazia pouco pela intervenção no Iraque, se apresentava tolerável às sensibilidades ocidentais, tornando ainda mais impactanteapossibilidadedeuma‘guerrasuja’,naqual o inimigo não se exibe com insígnias. O intuito do terror fundamentalista é causar destruição e mortes que não sãoindiscriminadas:civissãoo‘povo(do)inimigo’.Ou,comotestemunharamatônitososestadunidensescomaexplosãodeOklahoma,oscidadãosnorte-americanospodemsertambéminimigos.Inimigosquesemultiplicam,semrosto,mascomperfil:aproduçãodealvostrabalhacomafincopara‘localizar’metasdeataque.AsembaixadasamericanasexplodidasnaÂfrica,em1998,seguidasdaincursãosuicidacontraumnaviodamarinhaestadunidensenoGolfoPérsicosãocreditadasaumhomem:OsamabinLaden,filhodeumafamíliasauditabilionária.ConsideradoumhomemabnegadoporabrirmãodeluxuosavidaparalutarcontraossoviéticosnoAfeganistãonosanosoitenta,ofilhodesgarradodoclãendinheirado,jácontavacomumaordemdeprisãoeditadapelogovernoestadunidenseantesdeserresponsabilizadopeloseventosemNovaIorqueeWashington.SeurostojáestampavaumamensagemdecapturaveiculadapelositedoFBI,versãotecnológicados‘Wanted’doscaubóisdeoutrora. Assistimosaosincontáveisvideo-tapesdastorresgêmeassucumbindo,comoseaCNNpassasseaexibirfilmes-catástrofe.Mortos,nãoosvimos.Somentenomes,inclusivedelatinos.Ilegales,masinocentesvítimas.Osresponsáveisestavamàmão,aindaquedistantes,emgaleriassubterrâneasdosudoesteasiático.Ocontra-ataquedosEUAémontadosobreosustoemseralvejadoemcasaesobreaimprecisãolegaldesecombaterumagressorsempátria.OrepublicanoGeorge W.Bush,teceareaçãoidentificandoumEstadoinimigo, condição fundamental para uma declaração de guerra que seguisse o direito internacional. Tal Estado era o Afeganistão, não seu povo, mas a ‘milícia’ (e não ‘governo’) que o controlava: o Taleban. Os radicais que forçam mulheres a andar de burca e que implodem budas milenares, cometem o crime insuportável de esconder Osama e sua organização terrorista, a Al Qaeda. A debilidade retórica de Bush Jr. é amparada pela argúcia do colega inglês, o trabalhista Tony Blair. Dandoatônicadoquesignificavaoatentadoeaforçadesuareação,Blairdestilouumdiscursocivilizatóriodenovafeição:emtemposdemulticulturalismoedefesadosdireitosuniversaisdoHomem,osinimigosnãopodemserosmuçulmanos,massim,osradicaisislâmicosque‘distorcemafé’e,pior,renegamasuniversalidadesinquestionáveisdapaznaTerra:liberdadeedemocracia.Osterroristassão,assim,violadoresdoOcidente;nãomaisoOcidentegeográfico,masoOcidentemoralqueseespalhaportodososrincõesdomundorepresentadoporONGs,empresas,dólaresvoláteis,coca-colas,enovospaísesqueseformam(oulutamparaseformar)ambicionandosetornar‘EstadosModernos’.Defato,osmuçulmanosnãosãoosinimigos,jáquetodostêmdireitoacultuarseudeus,desdequesejanaintimidade.Os‘alvos’são,aocontrário,representantesdeum‘arcaísmocontra-histórico’,radicaisdopassado,antagonistasdofuturo.São,emsuma,aalteridadeintolerável. Alteridademoralquepeca.Pecaporqueatacaoprojeto de progresso desterritorializado (não mais ‘ocidental’), peca porque viola os direitos humanos, peca porque denigre Deus em sua violência, peca porque se financia, em parte, com dólares conseguidos em troca da preciosa heroína nascida dos campos de papoula do Afeganistão. Afrontas à moralidade ocidental, os alvos de hoje são compostos pela aliança entre a ‘corrupção do corpo e da alma’, representada pelos ‘venenos do tráfico’, e a destruição dos magnos valores da convivência fraternal entre povos democrática e universalmente conectados. Expelidos também devem ser, os párias da Humanidade. III Os grupos que traficam armas ou drogas, e as redes de terroristas que declaram guerra ao Ocidente são consórcios privados ilegais perfeitamente afeitos ao mundo midiatizado e ‘global’. Traficantes transitam com desenvoltura pela superfície e pelas entranhas do capitalismo, ao tempo em que não se pode negar o desembaraço com que ‘extremistas’ manejam seu capital especulativo e pilotam jatos comerciais. Nesta guerradenovotipo,Estadospersegueminimigosfluidos, presentes lá e cá, sem pouso fixo, com mobilidade transnacional. ‘Extremistas’ parecem reivindicar uma utopia islâmica; traficantes anseiam pela manutenção da criminalização de suas atividades que maximiza infinitamente seus lucros. E a batalha contra o irrefreável se cristaliza como combate a todos. Todos os inconformes, dissonantes, refratários. Umaondadeexpurgosseanuncianasmedidasdeexceçãojustificadaspelaprevençãoaoterrorismo.Cidadãosaflitosapóiamasuspensãodedireitoscivisemnomedasegurança,exibindo,numlampejohobbesiano,queapropriedadeeaproteçãoàvidalhessãomaisfundamentaisquea‘liberdade’.Navarredura,asclassesperigosas,sempreatualizadaseremodeladas,continuamaseralvodocontrolegovernamentaledaojerizasocial.IntolerânciascatalizadasporEstadostambémconsorciadosemmáquinashíbridassemi-privadas,ampliandooscanaisdecirculaçãodocapitalpelosveiosvirtuaisdasbolsasdevaloresepelassearasconcretasdosmurosprisionaisedosnovosgrilhõeseletrônicos.Consorciadaparece,também,seranovautopiadeEstado,multi-étnico,pluralista,democrático:Estados-modernosconvertidosematualizadomodelosupra-estatal.‘Supra’,enão‘pós’estatal.Aliás,serápossívelfalaremalgocomo‘pós-nacionalidade’quandovemospalestinos,bascos,israelenses,ex-iugoslavos,curdos,entreoutros,lutarempelaconstruçãoouconsolidaçãodoseuEstado,nosmoldesmodernosde“umterritório,umacultura”?Serápossíveldefenderalgocomouma‘sociedadecivilpós-nacional’quandonovospaísesindependentessurgem,comoTimorLorosae,tuteladoseconfeccionadospela ONU a partir de um receituário de Estado, que recomendaaforjadetrêspoderes,aadoçãodeumalíngua ou de línguas oficiais, a imposição de uma democracia representativa que jamais fez parte da organização política local, entre outras importações? Será possível sustentar que exista tal ‘supra-nacionalidade’ quando o paradigma desta construção ‘pós-nacional’ é a União Européia, modelo de Estado-nacional ampliado que instaura um ‘parlamento supranacional’, um ‘direito comunitário’, uma ‘corte de justiça comunitária’ e até mesmo ‘forças armadas supranacionais’? No multiculturalismo excludente desta utopia democrática de Estado, unidades de soberania clássica se interligam política e economicamente, constituindo agregações centralistas calcadas no modelo kantiano de um super-Estado pacificador, que nada mais é do que umnovoalvéolodesoberania,ondeumgovernocontrola um território ampliado e sua população, sem importar se este Estado leva prefixos pretensamente inovadores ou se seus ‘cidadãos’ são constituídos por povos semelhantes irmanados no respeito mútuo a seus direitos transcendentais. Nódulos avessos ao outro, os super-Estados do idílio democrático globalizado são territórios para que os ‘próximos’ se congreguem, erigindo barreiras ao trânsito indiscriminado do intolerável. Intoleráveis são mexicanos, contestadores anti-globalização, libertários, crianças transformadas em ‘menores’ e todo um rol de práticasconstantementerepelidas,negadas,instauradas à margem, ainda que insuportavelmente imiscuídas, neste campo da moral universalizante que se forma. resumo abstract Ensaio em três movimentos sobre Essay in three movements about muros antropoêmicos, substâncias anthropoemic walls, illegal substances, ilegais, imigrantes ilegais e projetos de illegal immigrants and projects of super-super-Estados. states.

equívocos dos movimentos sociais antiglobalização

Nestemundoemquevivemos,cadavezmaisdesesperadoeangustiadopelasmisériasedesgraçasquecria,asreflexõeseaspráticasemocionaisemaquiavélicassobrepõem-sesobremaneiraàquelascujaimpotênciahistóricaastornaobjetosdemorteedegenocídiodeumaengrenagemquelhesescapa.Outrossereshumanos,entreosquaisseincluemosqueseautodenominamdeanarquistasoulibertários,comalgumalucidezerevoltatentaminverteresseprocesso,masatéhojenadamaissãoquesereshumanosimpotentesfaceaumatragédiahistóricaquenosvaidestruindolentamente.Odia11deSetembrode2001,emborapeseosseussimbolismosmidiáticosespetaculares,nadamaiséqueumdosefeitosouderivaçõesnegativasdeumasociedadequeseestruturaatravésdamorte,daviolência,docrime,daguerraedoterror.Numpassadorecenteforamaspopulaçõesindígenaseosescravosafricanosqueforamassassinadosecolonizadospeloterrordasbaionetasdos * Editor da Revista Utopia e professor na Universidade Técnica de Lisboa. 75

exércitos e dos Estados; no presente e provavelmente no futuro, as vítimas do genocídio e da barbárie são os seres humanos alienados e atomizados que habitam o planeta Terra, que nada mais são que objetos manipulados por um poder sem rosto e abstrato. Portudoisto,quandofalamos,agimosouescrevemossobreaproblemáticadaglobalizaçãodevemostersemprepresenteumasériedefatoresquemuitasvezesdãoorigemaumasériedeequívocos,inclusive,entreaquelesqueseintegramnoimaginárioanarquistaelibertário.Naatualidade,avisibilidadeeapertinênciahistóricadosmovimentossociaisantiglobalizaçãosãoumexemploflagrantedoqueacabodereferir.Paratornarmaisclarooquepretendodesenvolver,emprimeirolugardebruçar-me-eisobreosconteúdoseasformasdaglobalizaçãoquedãosustentabilidadeàaçãoreivindicativaerevolucionáriadosmovimentossociaisantiglobalização.Numsegundomomento,tentareidiscernirsobreascontradiçõeseosconflitosqueatravessamosdiferentestiposdeaçãocoletivaqueintegramestesmovimentos. Características tendenciais da globalização Se há algo que nos pode aproximar de um conhecimento mínimo dos efeitos da globalização na vida quotidiana das pessoas à escala mundial, são sem dúvida as formas padronizadas de comportamento humano em termos sociais, econômicos, culturais e políticos. O comportamento humano em volta do valor e das funções do dinheiro enquanto elemento de troca mercantil, mas também como elemento de riqueza, de poder e de sobrevivência histórica, é, nesta assunção, emblemático. Se generalizarmos essas funções e o valor simbólico do dinheiro para o que é convencional chamar a prática sofisticada e complexa do capitalismo financeiro, depressa nos apercebemos da sua importância nos mecanismosdeexploraçãoedeopressãodocapitalismoàescalauniversal.Pelaviadasações,dasfusões,dasaquisiçõeseconcentraçõesdeumcapitalsemrostoeabstrato,astransnacionaisinvestem,acumulam,enriquecem,empregam,desempregam,criamempresas,fechamempresas,semqueagrandemaioriadostrabalhadoresassalariadospossainterviroudecidirsobreesseprocesso.Fábricas,tecnologias,capitais,trabalhadoresassalariadossãolocalizados,deslocadosourealocadosnumespaço-tempoemqueosdomíniosdovirtualedorealmuitasvezesseconfundem.A“pequenezdostrabalhadoresassalariados”revela-secadavezmaisimportantefaceàonipotênciadastransnacionais,cujasatividadeseconômicasseinscrevemnossetoresprimário,secundárioeterciário.Emborapesetodasasdiferençasdesalário,dedireitosedeveres,decondiçõesdetrabalho,adimensãodestatendênciadepadronizaçãoeconômica-financeiraafetanegativamentetodosostrabalhadoresassalariadosdomundo.Comoescravosmodernoseobjetosmanipuladospelosdesígniosdastransnacionais,aemergênciadeumaidentidadecoletivadostrabalhadoresassalariadosé,nomeuentender,maisimportantequeumasupostadivisãooudesigualdadedeincidêncialocal,regionalounacional. Emsintoniaestreitacomesteprocessohistóricodecapitalizaçãodossereshumanos,anaturezavemsendoobjetodeumatransformaçãodesenfreada.Acrescenteintegraçãodaciênciaedatécnicaeomodelodecrescimentoededesenvolvimentobaseadonoferro,novidroenocimentotêmcontribuídoparaadestruiçãoirreversíveldossolos,rios,mares,florestas,recursosnaturais,espéciesanimaisevegetaisquesãoessenciaisparaamanutençãodoequilíbrioecossistêmicodanatureza,massobretudoparaaprópriaperenidadehistóricadossereshumanosqueaindatêm o nome de “gente” ou de “pessoas”. O capitalismo e, por conseguinte, a globalização em associação estreita com osditamesdasuaracionalidadeinstrumental,trans-formaanaturezanumsimulacrodevidaenumcaixotedolixodeumaespéciehumanaacéfala,atomizadaeestupidificada.Nestesentido,aglobalizaçãodocapitalismoéadestruiçãodoplaneta,porqueelaproduzsereshumanosquenãoseidentificamcomoasuaessênciabiológicaesociológica,provocandoperversõesqueculminarãonasuamorteedasoutrasespéciesanimaisevegetais. Domesmomodoqueestasperversõesdatendênciaeconômica-financeiraafetamsobremaneiratodosostrabalhadoresassalariadosdomundoetodosaquelesquevivemàsuamargem,tambémnãoémenosverdadequenoquadrodaracionalidadeinstrumentaldocapitalismo,asobrevivênciahistóricadestesóépossíveldesdequepersistaacapitalizaçãodepessoas,mercados,tecnologias,matériasprimas,recursosnaturaisedinheiro,aúnicaformaconsistenteparaquesejamaterializadaasuaexpansãoterritorialegeográfica.OsditamesdoBancoMundial,doFMIemaisrecentementedaOMCedasreuniõesmidiáticasdoGrupodos8(G8)sãooscontornosinstitucionaishegemônicosdeumaregulaçãoecontrolemundialdaeconomia.AcrisedoEstado-Nação,noqueconcerneàsuamanifestaincapacidadeemsuprirasinsuficiênciasderegulaçãodomercadoatravésdepolíticaseconômicaskeynesianas,éumaprovasintomáticadasuafraquezaperanteaforçaestruturantedastransnacionais. Para a maioria dos analistas, a força irrefreável do capitalismo é subjacente à força onisciente do mercado que tudo compra e vende: pessoas, dinheiro e mercadorias. Nas últimas décadas, a mercadoria quemais se compra e vende é sem dúvida a informação. É um tipo de mercadoria imaterial, sem rosto, abstrata, cujos signos e significados são hoje a grande essência da estrutura dos custos de produção diretos e indiretos da generalidade dos bens e serviços, tornando-se, em última instância, a base da opressão e da exploração capitalista. E neste sentido, não estamos nos limitando em termos da energia, da informação e do conhecimento que todos os trabalhadores assalariados do mundo despendem nos locais de trabalho, mas sobretudo nos referimos a todos os aspectos da sua vida quotidiana que é atravessada pela socialização da informação. Logo a seguir à força do sistema econômicofinanceiro e à catástrofe ecológica por ele gerada, a globalização torna-se também cada vez mais visível no domínio sócio-cultural. O poder dos media está justa-mente na sua capacidade em difundir e socializar a informação em escala universal. Como acontece com todas as mercadorias, a informação é objeto de padronização e capitalização. Só que, para além disso, é também um fenômeno da aculturação e de aprendizagem sócio-cultural. Ainda que em situações discrepantes, como ocorre num bairro pobre no Cairo e São Paulo ou num bairro rico em Nova Iorque, a simbologia da informação veiculada pelo poder midiático introduz-se paulatinamente nos neurônios de todos os indivíduos que habitam o planeta Terra. Assim, a globalização não se explica exclusivamente pelo fato de se assistir a uma tendência a trabalhar, produzir e consumir da mesma maneira, por vestir as mesmas calças, ver televisão todos os dias ou beber a mesma coca-cola, mas sobretudo pela mesma maneira de pensar e agir em relação à natureza, ao trabalho, ao dinheiro, ao Estado, ao capital e à religião. Hoje, socializar a informação implica transformar os seres humanos em mercadorias na totalidade do espaço-tempo da sua vida quotidiana: nos locais de trabalho, nos cafés, nas praças, nos jardins, nos transportes, na família, inclusive quando mergulham no asfalto da estrada da miséria e na ignomínia do escravo pós-moderno que pede esmola e se considera um beneficiado na situação de pobreza. A assunção naturalista desta realidade está bem presente nos olhares e na indiferença com que as diferentes pessoas se cruzam nos grandes centros urbanos dos países capitalistas desenvolvidos e nos países capitalistas considerados subdesenvolvidos. A padronização do pensar e agir reporta-se também ao conteúdo das relações interpessoais. Quem não for suficientemente competitivo, violento, eficiente e obediente é sancionado negativamente pela brigada dos bons costumes, pela polícia ou, em caso extremo, pelas prisões, hospitais psiquiátricos e a exclusão social. Portanto, se o espaço-tempo de estruturação da informação atravessa os nossos neurônios de uma forma sub-reptícia quando somos levados a pensar da mesma maneira ao codificar e decodificar as linguagens que nos relacionam com o outro ou os outros, não é menos importante observar a sua influência nas formas padronizadas de integração e de controle social. Ou seja, ao perceber do mesmo modo o léxico da informação que é contrária à denúncia e à crítica radical do sistema social vigente, os seres humanos tornam-se adaptáveis às normas e regras sociais persistentes. Não é de admirar assim que, pela via da omissão ou da adaptação identitária ao sistema social vigente, tornem-se expoentes da integração e do controle social, sem que para isso sejam induzidos a tal ação individual e coletiva pelas estruturas repressivas clássicas: polícia, tribunais, exército, ideologias, governos, religiões. Ainda que possamos afirmar que as características atuais da globalização são menos visíveis nos aspectos culturais e políticos, porque a força reativa e a resistência das religiões monoteístas e dos valores tradicionais do Estado-Nação conflitam com os desígnios hegemônicos dos valores baseados no lucro, no dinheiro e na troca mercantil das empresas transnacionais, quer um quer outro tenderão a integrar-se na lógica destas. Entretanto, os negócios do petróleo e do material de guerra, assim como das várias drogas, demonstra à saciedade da cumplicidade subsistente entre as transnacionais, as religiões e o Estado-Nação,amaioriadosquaisbaseadosemgovernos despóticos de maioria cristã ou islâmica. Este tipo de cumplicidade entre o poder hegemônico do capitalismo mundial e formas arcaicas do capitalismo está, no entanto, gerando grandes contradições. Várias razões estão na origem desse fato. Em primeiro lugar, o Estado-Nação clássico está perdendo a legitimidade do controle e administração políticoadministrativa do seu território, para além de já ter perdido grande parte das suas funções de bastião da política econômica a favor das transnacionais. A perda delegitimidadedoEstado-Naçãosobreasociedadecivil, assim como a crescente burocratização e inutilidade das suas políticas sociais, traduz-se num fator de deterioração política da burocracia estatal. Todavia, a força estruturante e avassaladora da globalização decorrente do sistema econômicofinanceiro, das novas tecnologias, da informação e do poder midiático não se coadunam com realidades políticas e culturais inadequadas e ultrapassadas. As guerras regionais na ex-Iugoslávia e no Kosovo, e mais recentemente no Afeganistão, são formas diferenciadas de resolução dos mesmos problemas: identificar os sistemas políticos, culturais e sociais ao sistema econômico-financeiro das transnacionais. Para estas, podem existir Estados, pátrias, religiões e ideologias políticas contrastantes, mas desde que submetidas à lógica de um Estado universal alicerçado no valor do dinheiro, do mercado, da mercadoria e do lucro. Todos os meios são bons para atingir esses grandes objetivos, desde que feitos em nome da democracia e do capital. Por isso é que a guerra, a destruição do planeta Terra, o terrorismo, os genocídios, a fome, a miséria, o crime e a violência que ocorrem atualmente são algo que é justificado e legitimado por esse Estado mundial em formação (NATO; ONU; OMC; Banco Mundial) e pelas suas democracias representativas. Estasituaçãodeconflitodecorrentedeestágiosdedesenvolvimentoscapitalistasdiferenciadoséfácildesuperarquandoamudançasefazpelaviadosistemaeconômico-financeiro,masémuitomaisdifícilderealizaremtermossociais,culturaisepolíticos.Asresistênciasàglobalizaçãoprovêmdadificuldadeeminstaurarregimespolíticosbaseadosnademocraciarepresentativa,namedidaemqueparasustentareregularascontradiçõeseosantagonismosgeradospelaopressãoeaexploraçãonospaísescapitalistasmenosdesenvolvidossóépossívelatravésderegimespolíticosditatoriais,namaioriadoscasosmilitareseteocráticos.Airreversibilidade(?)daglobalizaçãodeterminaquenãopossammaisexistirmecanismosdenaturezapolítica,culturalereligiosaqueinviabilizematransformaçãodetodosossereshumanosemobjetosdeprodução,dedistribuiçãoedeconsumodemercadorias.Porisso,quandoexistemsituaçõespolíticas,sociaisoureligiosascontraproducentesoucondicionadorasdesseprocessohistórico,osguardiõespolítico-militaresdastrans-nacionaisdão-seaodireitolegítimodeprovocarouinterviremtodasasguerrasregionaisoulocaisemproldessegrandeobjetivo. Contradições e conflitos entre os movimentos sociais antiglobalização Numa primeira aproximação das contradições e conflitos gerados pela globalização pode-se afirmar que quase todos evoluem para configurações polarizadas à volta de quatro dimensões básicas. A primeira reportase às perversões do desemprego, da precariedade da vinculação contratual, dos salários baixos, pobreza e exclusãosocialdecorrentesdadegradaçãodacondiçãofunção do trabalho assalariado. A segunda deriva da degradação do ambiente e da destruição da natureza em termos da diminuição drástica da camada do ozônio, da poluição atmosférica, da destruição massiva de recursos naturais, cujos sintomas são cada vez mais visíveis com a tendência crescente de ocorrência de catástrofes e calamidades naturais. A terceira, situa-se nos antagonismos e contradições provenientes das lógicas de desenvolvimento e crescimento econômico diferenciados que são prioritariamente centrados nas lógicas de administração político-administrativa e territorial do Estado-Nação ou aquelas que são decorrentes de uma administração político-administrativa e territorial de âmbito mundial, cujos objetivos se identificam com as tendências de dominação de organizações e instituições de características transnacionais. Por fim, uma quarta dimensão situa-se nos fenômenos de resistência radical à mudança imposta pela globalização em relação a países, regiões e continentes que ainda não atingiram a modernidade capitalista. Essa resistência baseia-se essencialmente na tradição cultural e religiosa, na medida em que face à situação de miséria e pobreza da maioria das populações desses países, regiões ou continentes, esses fatores funcionam como os únicos “analgésicos” ou uma “tábua de salvação” de uma tragédia histórica de opressão e exploração estimulada pela modernidade e, mais recentemente, pela pós-modernidade da globalização. Qualquer uma dessas dimensões potencializa conflitos e ações coletivas de âmbito local, regional e nacional, mas a sua configuração ideológica e religiosa só tem cabimento no quadro de um imaginário coletivo de natureza universal. Por isso, na luta contra os aspectos negativos da globalização persistem quase sempre os mesmos denominadores comuns: o Estado, o capitalismo, as políticas dos governos dos países mais desenvolvidos e as instituições e organizações de caráter transnacional. O inimigo é comum, só que as soluções paraoreformarouextinguirsãodiferenciadas.Nãoadmira,assim,queseassistaàintegraçãoeàconvergênciadeideologiasepráticascontrastantesnaconstruçãodeumimagináriocoletivocontraaglobalizaçãoedepoisnocontextodasmanifestaçõessurgemconflitoseequívocosinesperadosentreosmúltiplosmanifestantes.OsexemplosdasmanifestaçõesdeSeattle,Praga,Gotemburgo,NiceeGênovasãoelucidativosaesserespeito.Apartirdeumlequepolíticoepartidárioquevaidaesquerdaàdireita,dospacifistasaosviolentos,dosreformistasaosrevolucionários,dosgruposecologistasaosmilitantesdasONG’segruposreligiosos,passandopelosanarquistaselibertários,todosparticipamcomasuaideologiaeasuapráticanomesmoespaço-tempodalutacontraosaspectosnegativosdaglobalizaçãoe,contraopodereconômico,social,políticoeculturalquelideraesseprocessohistórico. A explicitação de posições contrastantes far-se-á inevitavelmente com o decorrer da luta contra a globalização, mas, entretanto, os paradoxos e os equívocos emergem com relativa visibilidade. São equívocos que se relacionam com os objetivos das lutas, os conteúdos e as formas de organização que são desenvolvidos pelos movimentos sociais antiglobalização. Entre a esquerda e a direita, entre ecologistas e apologistas do progresso e da razão, entre os reformistas e os revolucionários, ter objetivos centrados na persistência e mudanças hipotéticas do Estado-Nação, do capitalismo e da importância inexorável da existência de Deus, ainda é admissível, mas em relação aos que se consideram anarquistas e libertários, é um absurdo histórico. Por outro lado, em termos organizacionais já está sobejamente demonstrado que sindicatos, partidos e igrejas primam por relações sociais e processos de socialização assentes na dominação e na autoridade hierárquica. A confusão e conflitos gerados entre espontaneísmo e auto-organização, violência e pacifismo, liderança e hierarquia, com os pressupostos da democracia direta, é continuar a agir coletivamente de forma mecânica, esquecendo que a democracia direta só é possível com indivíduos livres e soberanos e que são capazes de viver simultaneamente a revolta e a lucidez. Não obstante sabermos da tragédia histórica que estamos vivendo e não obstante a nossa impotência, o sentido histórico da utopia anarquista continua mais válido do que nunca. Eu afirmo isto por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, porque os seus pressupostos de emancipação social estão fundamentados na solidariedade, na cooperação, noamor, na liberdade e na fraternidade. É uma opção societária simultaneamente societária, filosófica e ética e que pode inverter os pressupostos da sociedade capitalista e do Estado, baseados na competição, na violência, na guerra, no crime, na alienação e atomização dos indivíduos. A transversalidade destes pressupostos é visível nos dilemas e perversões estruturados pela globalização. Neste capítulo, é chegado o tempo histórico dos anarquistas e libertários pensarem e agirem como atores universais. É um desafio enorme, porque esse grande objetivo que sempre acompanhou o imaginário individual e coletivo dos anarquistas é algo que nos situa nos domínios da realidade e da utopia. Para evoluirmos nesse sentido, na minha opinião, há de se ultrapassar os equívocos que são, ainda, alimentados pelos mitos da revolução, da luta de classes, do poder e da instauração de uma sociedade anarquista. Pelaexperiênciahistóricaacumuladaaolongodeséculos,pensarqueépossívelrealizarumarevoluçãosocial,cujasmudançassubstantivasimplicamrupturasedescontinuidadespolíticas,econômicas,sociaiseculturaisdetipoabsolutoé,nomínimo,umabsurdo,namedidaemquenós,enquantoseresbiológicosesociais,somosirredutivelmenteumaconstruçãohistóricaestruturadapelopassado,opresenteeofuturo. Nesse processo, as mudanças podem ser mais radicais ou mais reformistas, mas isso não implica necessariamente que possamos eliminar mecanicamente, de um dia para o outro, da cabeça dos indivíduos e grupos que constituem todas as sociedades, as relações sociais, os processos de socialização, os valores, a moral e a ética que estão na origem do Estado e do capitalismo e, logicamente, na base de todas as formas de opressão e exploração entre os seres humanos e entre estes e as outras espécies animais e vegetais. Portanto, a alternativa entre reforma e revolução, como se fosse uma hipótese de escolha absoluta entre o bem eo mal, é um falso dilema, pois toda e qualquer ação de mudança inserida no processo histórico das sociedades implica sempre uma situação estrutural e funcional de interdependência e complementaridade entre ambas. Hoje, com as mudanças operadas no seio do capitalismo e do Estado em escala universal, é difícil discernir da homogeneidade e da disparidade subsistente nas situações de dominação e exploração.É um fenômeno que emerge nas múltiplas realidades da condição-função de trabalhador assalariado no sentido genérico, mas é também visível nas múltiplas relações sociais entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre os próprios trabalhadores assalariados, entre ricos e pobres, entre integrados e excluídos na ordem social vigente, entre povos e etnias diferentes. A multidimensionalidade das contradições e conflitos que podem desenvolver ações individuais e coletivas que tendem para a emancipação social não pode ser restringida a qualquer grupo ou classe social, mas a todos os indivíduos que se integrem num processo histórico de luta contra todas as formas e conteúdos de dominação e exploração entre seres humanos e entre estes e as outras espécies animais e vegetais. Neste sentido, toda e qualquer luta de incidência coletiva deve ter presente uma assunção de participação e de decisão para a qual confluem natural e espontaneamente todos os indivíduos potencialmente livres e soberanos. Outromitoqueprovocamuitosequívocosentreosanarquistaseoslibertárioséaextinçãodopoderatravésdeumahipotéticarevoluçãosocial,comoseopoder,enquantomanifestaçãopolíticainscritanasnossasdecisõeseparticipaçõesnocontextodequalquergrupo,comunidadeousociedade,nãoimplicassesempreumarelaçãosocial.Oracomosabemospelanossavivênciaquotidiana,emtodaequalquerrelaçãoemqueparticipamosnãoexistemsituaçõesplausíveisdesimetriaereciprocidadeabsoluta,namedidaemqueasnossasdiferençasindividuaisirredutíveisnãoopermitem.Namesmamedida,enquantoindivíduosfalamos,sentimos,agimosemfunçãodasestruturasedasfunçõesquetemosemqualquersociedade,tambémpensamos,agimosesentimosapartirdenósmesmos.Unsfalammaisaltoqueoutrosougostammaisdacorazul,verdeouvermelho.Sãorelaçõessociaisquetêmumaincidênciainformaleespontâneaequenãopodemserobjetodeformalizaçãoeinstitucionalizaçãoestatalousocietária.Nestetipoderelaçõessociais,queiramosounão,persistemsempreformasdepoderquepodemnãoimplicardominaçãoecoação.Portanto,quandoosanarquistasouoslibertáriosafirmamsercontraopodere,logicamente,sãoapologistasdasuaextinção,esquecem-se,quasesempre,queopoder,enquantorelaçãosocialassimétrica,nãoexisteexclusivamentenasinstituiçõeseestruturasdoEstadoedocapital,mastambémqueeleéimanenteànossacondiçãohumana,socialepolítica.Aointegrá-lonanossalógicadeemancipaçãosocial,temoséquesocializaropoderdeumaformalivreesoberana,solidáriaefraterna,extirpando-odetodasasformaseconteúdosdenaturezaformaleinstitucionalqueassumenaautoridadehierárquicaenadominação. Finalmente, importa referir o mito da realização da sociedade anarquista. Como o sentido etimológico da palavra anarquia indica, nos pressupostos básicos que a informam subsiste a inexistência de qualquer governo ou autoridade hierárquica sobre qualquer indivíduo ou grupo de uma dada sociedade. Neste sentido, podemos pensar o conceito de anarquia como uma filosofia, uma ética e até como um projeto hipotético de sociedade. Todavia, ao contrário do que ocorreu com o comunismo, o fascismo, o socialismo e o capitalismo, a anarquia etimologicamente não sendo um ismo, pode e deve ser interpretada, explicada e vivida conforme cada sensibilidade e personalidade individual, como vivida e praticada por cada grupo ou sociedade. Mas, também por isso, a anarquia nunca poderá ser transformada num dogma, numa doutrina ou religião. Por outro lado, nunca qualquer indivíduo ou grupo se pode arrogar o dono de uma filosofia, de uma ética ou de um projeto de sociedade anarquista onde não existirão deuses nem amos. Pelas razões sublinhadas, nunca poderá existir uma sociedade anarquista no sentido finito do termo, na medida em que a liberdade, o amor, a fraternidade, a cooperação e a solidariedade não têm limites espaço-temporais no seu aperfeiçoamento. A anarquia é e será sempre uma utopia permanente pela qual se luta e vive todos os dias. E mesmo que o sentido histórico da humanidade fosse a anarquia, porque nunca poderá ser objeto de institucionalização e de formalização definitiva, nunca poderá ser um modelo de sociedade acabada e perfeita. A força histórica da anarquia sempre foi a sua dimensão universal. Com base nos desafios e perversões que emergem da globalização do capital e do Estado, hoje, mais do que nunca, em termos teóricos e práticos, importa que a anarquia seja uma base estruturante da emancipação social que os seres humanos tanto necessitam. Para a consecução desse verve

grande objetivo, talvez uma probabilidade positiva seria a de desfazer os equívocos que existem entre os anarquistas e libertários e entre estes e os movimentos sociais antiglobalização. resumo abstract O movimento anti-globalização visto The anti globalization movement, seen pela análise anarquista. Discute-se a through anarchist analysis. This article ecologia no interior da globalização discusses ecology into capitalist capitalista, os efeitos das mídias, globalization, media effects, financial repercussões econômico-financeiras e and economic impact and regional guerrasregionais.DiantedeumEstado wars. Before a global state in mundial em formação, os anarquistas development, the anarchists take part fazem parte diferenciadamente dos differently among the other actors demais atores envolvidos no involved. movimento.

o-be-de-cer: o “abcd” do princípio deautoridade, ou da covardia

Muitossãoostermosutilizadosporestudiososdasociedadeparadefiniraépocanaqualvivemos:pós-moderna,moderna,pré-moderna,crisedosparadigmas,mundodesencantado,niilismo.Sãoalgumasdasexpressõesdemaiordestaque.Todaselas,sãodisseminadasnoconjuntodasociedade,decerto,enfatizamumououtroaspectomarcantedavidasocialnostemposrecenteseatuais.Porcontadistopossuemalcanceconsiderávelnamedidaemquetraduzemcertosaspectosdeinquestionávelurgência,paraumentendimentomaiscompletodosfenômenossociaiscontemporâneos,comotambémmuitossentimentoseperspectivasdeanálisesdasproblemáticassociaismaiscandentes. Diversos historiadores, para não falar em outros investigadores e especialistas, caracterizam o século passado como tendo sido marcado por conflitos os mais sangrentos e sem precedentes na história humana: duas grandes guerras mundiais—ehá quem sustente * ProfessordaUniversidadeFederaldaParaíba,músicoepesquisadordoNu-Sol. ter iniciado uma terceira guerra ainda em andamento com a diferença de esta agregar à forma convencional outras estratégias inusitadas —; uma infinidade de conflitos localizados; eclosão, de maneira quase geral, de sistemas de governos totalitários como fascismo, nazismo, nacionalismos, imperialismos, além de catástrofes sociais como fome, pestes, epidemias e também catástrofes naturais... e a lista seria deveras longa caso tentássemos descrever com maior precisão o rol de misérias de nosso tempo. Sejuntarmosaestalistareferênciasàsagressõessistemáticasfeitascontraosecossistemascomsuasbiodiversidades—istoé,comosdiversosseresvivosnelesexistentes—pelostubarõesdasfinanças,dasindústriasepelaespeculaçãoimobiliária;seadicio-narmosaindaosem-númerodedoençaspsicosso-máticasprovenientesdoestilodevidadaschamadassociedadesmodernascomotambémdeumaorganizaçãodotrabalhonaqualoserhumanocumprepapeldeapêndicedemáquinasoudesistemasdeoferecimentosdeserviços;sesomarmos,também,asestatísticassobreasituaçãodossem-teto,dossem-terra,dainfânciaedavelhiceabandonadaeindigente;esenãoesquecermostambémnestalistadosextermíniosdoschamadosíndios,dehomossexuais,deprostitutasedapopulaçãonegra;oscasosrotineirosdaschacinasdosmoradoresdasperiferiasnasgrandescidades,dosfavelados,dascrianças,dostrabalhadoresurbanosedocampo...Seconsiderarmosesteselementosetantosoutrosainda,aviolênciacotidianacontraamulherouatruculênciacaracterísticadetodososgovernantescomosmaisdiversossegmentossociaisapenasnoperíododaRepúblicanoBrasil,teremosumaidéiamaisaproximadadonúmeroedamagnitudedospequenosegrandesholocaustosacontecendodeformasimultâneaerecorrenteemdiversospontosdenossasociedade,aonossoredor,porvezesbemdonossolado! Disfarçado em formas sutis como uma anedota, uma ironia,umafrasesarcásticaouopagamentodeum(notembemotermo)“imposto”ouum“cumprimentodeumdever”cívico,militaroureligioso;manifestoemformasgrosseiras,cruasmesmo,clarasecristalinas,comoumaagressãoouummassacretelevisadoparamilhões(evivenciadoporunspoucos,sofridopormenosgenteainda,masnãomenosintensoeinominávelparaestes),odomínio,oabuso,oarbítrio,rotineiramente,banalizaavidaeamorte.Seprestarmosatençãoumpoucomais,veremosserele,alémderotineiro,sistemáticoecalculado.Seafinarmosmaisumpoucoaindanossossentidoseprocurarmosperceberossinaisdosacontecimentosaonossoredorporumajaneladiferentedaproporcionadapelosilustres,gravesetapadostele-jornalistascomotambémpelosalegres,divertidoseidiotizadosentretenedoresdaTelevisãooudosabastadosesinistrosempreendedoresdeOrlando,oquesignificadizer,seprocurarmosperceberoseventosaonossoredorcomsensibilidadeeatitudeiconoclasta,notaremos,aomesmotempo,oabsurdodomododevidavigentecomotambémdelineadosantenossosolhosospropósitosinconfessados,deliberadamenteplanejadosdetantasdores,detantasmisérias. Pode-se levantar objeções, afirmando a elasticidade e aprofundamento das liberdades individuais e coletivas depois da queda do muro de Berlim, do fim da chamada “cortina de ferro”, da guerra fria, fazendo coro com os vencidos alegres; caso nos objetem ainda acenando com um pretensamente fatal e inevitável estabelecimento da democracia em todo o mundo com a conseqüente sustentação de uma lógica globalizante e de um mercado planetário como único pensável e possível caminho a ser trilhado de hoje em diante, ainda assim sustentaremos o colocado mais acima. Mais que isto: estas objeções nos oferecem elementos para recrudescer nossas convicções, nos dando argumentos favoráveis às assertivas acima arroladas. Isto porque, primeiro, o muro de Berlim, a U.R.S.S. e a guerra fria não apontam para campos excludentes, inconciliáveis, opostos. Expressam uma mesma causa; são fenômenos intrinsecamente ligados à lógica dominante sob o capitalismo e sob o estatismo, apesar de esconderem e mascararem este fato ao aplicarem maquiagens com tonalidades diferentes e uma retórica recheada de supostos radicalismos conjugados a termos peremptórios, incisivos. Segundo, se a construção de um muro dividindo e separando a Alemanha em duas, a instauração da hoje finada U.R.S.S. e a guerra fria nos foram mostradas, na vitrine das relações internacionais, como provas factuais da existência de campos políticos e ideológicos inconciliáveis, houve e há na verdade muito mais coisas em comum entre eles do que uma história oficial — à direita ou à esquerda (?) — pretenda admitir. Dessa forma, podemos sem dúvida nenhuma nos referir a ambos os campos como constituintes de uma mesma dinâmica e se valendo dos mesmos processos sociais, respeitadas certas especificidades, relativas mais a grau e menos a gênero. Assim, numa perspectiva econômica não houve diferença entre países comunistas (?) e países capitalistas: ambos eram — e os ainda existentes também o são — capitalistas; a diferença está no fato dos primeiros desenvolverem um capitalismo de Estado enquanto os segundos desenvolvem um capitalismo de mercado. Ainda para realçar mais as similitudes entre democracia e socialismo (?) de Estado e em detrimento da idéia de existência de um pretensamente intransponível fosso divisor entre estes dois sistemas de governo, como defendem os demagogos da democracia e os psicóticos ao mando da ideologia vermelha, temos o estatismo como forma comum de gestão da vida social. No estatismo — democrata, vermelho ou outro — permanece o princípio de autoridade como postulado fundamental da sociabilidade humana, mantendo-se a hierarquização da sociedade e, portanto, a existência tanto do centralismo, na forma da heterogestão social, como também, implicação lógica e necessária, uma verticalização na dinâmica das relações sociais. Istonoslevaaoterceiroponto.Emambos,éamesmaintervençãonavidadasociedade,respeitadas,nuncaédemaislembrar,asespecificidadesdecadacaso,decadalocalidadeedecadasituaçãoparticular.Intervençãoestajustificadasejanaidéiadefazercumprirumapretensa“vontadegeral”,uma“vontadedamaioria”ouum“interessenacional”,sejanadefazervaleruma“verdadecientífica”,uma“verdaderevolucionária”ouum“interessedooperariado”porsobreoconjuntodosdemaissegmentossociaisedosindivíduos.Nestadireçãoutilizou-seeutiliza-se,domesmomodo,fatalenecessariamente,deexpedientesviolentos.Porsuaveztaisexpedientesremetemànecessidadedacriaçãoemanutençãodeexércitos,depoliciais,deumcorpoextensodemagistratura,deoficiais,decarcereiros,deprisões,deparedões,decadeiraselétricasesimilares...edemuitosfuncionáriospúblicosparafazerfuncionartodaestaimensarededecompressão. Umavezascoisastomadasnestasproporçõespodemosnosperguntarcomosãopossíveistamanhosabsurdosnummundotidocomototalmentevoltadoparaacomunicaçãorápida,paraainformaçãoprecisa,paraatecnologiadeponta?ComotolerartantasviolênciascorriqueirasenaturalizadasnoreinodosDireitosenoimpériodoEstadodeDireito?Comotemsidopossívelaconvivênciacomtantasarbitrariedadesetantosabusosdepoisdeextintososreisabsolutosedetersidoinstauradoumperíododegarantiasdeliberdadeejustiça,comodefinem,grossomodo,oseusistema,republicanosedemocratasestadunidenses?Maisainda:comosesustentameseproliferamportodoomundoascarnificinaspormotivosétnicos,religiosos,econômicos,políticosououtronumaépocadepretenso“fimdasideologias”? Levantemos algumas saídas apontadas pelos falaciosos da demagogia democrática e das tiradas ditatoriais — mesmo com o verniz da urna eleitoral — do socialismo jacobino nas diversas versões reclamadas de inspiração marxiana. Na perspectiva de ambos, o futuro vislumbra a construção de governos nacionais (querfortes–queéatendênciadetodaformadegoverno – quer diminutos – sempre apenas em tese pois na práticatodogovernoéaçambarcador),convergindopara o estabelecimento de órgãos mediadores das relações internacionais, de grandes blocos econômicos intercontinentais e de instituições e de legislações reguladoras de acordos de extradição, de expulsão, de cooperação comercial e dos órgãos de repressão; de conexão de cadastros pessoais, de empresas e de outrosdados, enfim, uma espécie de governança mundial. É desnecessário dizer ser este governo, de certo modo, já existente. Mas cada vez se torna mais nítida a intenção de se instaurar um “de fato” e não só “de direito”. O diferenciador entre democratas e socialistas, além do oportunismo e demagogia dos primeiros e da falácia e da arrogância dos segundos, está apenas em certos arranjos na tessitura deste novo império e não no questionamento da elaboração de mais um projeto de despotismo, de mais um altar onde se pretende imolar as liberdades individuais e coletivas. Peloquevimosacima,podemosperceberasrespostasdadaspelosgovernosdeplantãoetambémpelosdemaispretendentesaopoder—tomadospelapsicoseautoritária—comopassandoobrigatoriamenteouporumareformanosmecanismoseinstituiçõesdegoverno,istoé,porcrescenteaprimoramento,atualizaçãoeconservaçãonasestratégiasdecontrolesocial,e/ou,pelamudançanaspessoasdosmandatários,ouaindaporumacomposiçãodasduas.Deummodooudeoutro,asquestõessociaissãopercebidas,nestaperspectiva,comoassuntosalheiosaosdiretamenteinteressados,dizendorespeitomaisaespecialistasea“represen-tantesdopovo”emenosaestemesmopovo;estenãopodeterocontroledeseudestinoouporpuraincapacidadeouporcausadeumaconcepçãodeserhumanocomolobodoprópriohomem,cultivadapelosorbitaisdoprincípiodeautoridade.Apretensaincapacidadedapopulaçãoemgerirsuaprópriavidavemdopreconceitocientificista.Estepreconceitoestádiretamenteligadoàsuperstiçãofilosóficasegundoaqualtodaequalquerdimensãodavidahumanapossuiumaverdadeessencial,puraousuperioraseralcançada,oudescoberta,únicaeexclusivamentepelaciência.Osconhecimentosexistentesforadoscânonessagradosdaciênciaocidentalsãotidoscomocrendices,preconceitosousuperstições...paraosnovossacerdotesdareligiãodeciência! A noção do homem lobo do homem, do homem mau por natureza ou do ser humano natural ou espiritualmente degenerado constitui na idéia basilar de todo o edifício filosófico das instituições vigentes e, portanto, da forma como se estabelecem as relações políticas, econômicas, intelectuais, pessoais, religiosas e demais nas sociedades reclamadas tributárias de um chamado modo de vida ocidental. Os filósofos do liberalismo partem da concepção de uma conjectura, como eles mesmos denominam seu mito de origem. Um dito estado de natureza seria uma época muito remota; tão distante a ponto de ser impossível provar, com documentos, ter este estado existido. Mesmo assim, se baseiam nesta ilusão para erguer todo seu edifício filosófico, seguindo-se a eles todos os defensores de uma centralização social. No pretenso estado de natureza, os seres humanos viveriam isolados tendo posteriormente criado a sociedade com outros semelhantes apenas por motivos utilitaristas. Na vertente hobbesiana dos jusnaturalistas a sociedade passou a existir a fim de que os seres humanos não se destruíssem mutuamente; só sob ameaças e medo de sofrer punição e castigos seria possível barrar os ímpetos anti-sociais próprios dos humanos. O Leviatã seria o ser a pairar sobre todos, impondo, pela magnitude e poderio, temor e respeito, contendo em todos os indivíduos suas inclinações antisociais. A escola de Maquiavel iria também somar com a de Hobbes na elaboração de uma natureza humana essencialmentemá,configurandoumespectromedonho da sociabilidade humana. Nesta dinâmica se encontram todas as escolas científicas, ideológicas, de doutrina social e filosofias defensoras de uma organização social centralizada, hierarquizada, verticalizada. Alémdestasescolasdopensamentosocial,fundadasemprincípiosdeumasociabilidadehumanamápornatureza,temosatradiçãoreligiosajudaico-cristãinstaurandoumacosmologia,umaformadeveromundoapartirdepressupostosautoritários.Assim,nossomitodeorigemsacramentaaidéiadapossibilidadedohomemisolado.Atravésdestemitofundamental,básicooucentralnateologiacristã,AdãopassouumlongoperíodoapenastendoafiguradeDeuscomointerlocutordiário;possuindotodosospredicadosdehumanidadeemsimesmo,semnenhumcontatocomsemelhantes,falou,nomeouosanimaiseprocedeunogeralcomoqualquerserhumanofaria.Apenasnummomentoposteriorsentesolidãoepedeàdivindadeumacompanheiraquelheseja“idônea”,depoisdeobservartodososanimaispossuindouma.Suarelaçãocomestacompanheira,comocomtodaaexistência,éfundamentadanodomínio.Notextosagrado,ocriadorlhedáafaculdadedeusar,domodocomoquisesse,detodososseresexistentes.SemesquecerdofatodenomesmotextotodooprocessodepassagemàexistênciadosserestersedadodeumaformatotalmentediferentedadosurgimentodeAdão;enquantoosanimaiseplantassurgiamapenasapartirdeumaordemverbaldadivindade,nossoAdãofoiformadocomamodelagemembarrofeitapelaprópriamãodeDeus;findoesteprimeiromomentodoprocessodecriaçãodeAdão,opróprioDeussoprouvidanasnarinasdobarroinerte,tornando-o,apartirdestemomento,uma“almavivente”.Coloca-se,nestaaltura,sub-repticiamente,umabismodedistânciaentreossereshumanos,osdemaisseresvivosemateriaisinorgânicos.Instalam-seasdicotomiasexistência e humanos, natureza e cultura, justificando, a partir de então, um enfoque onde os homens ocupam o centro da existência e, desdobramento natural, exerce sobre todos os seres uma relação de exterioridade e superioridade no sentido de dominação. Outrosmitos,quepoderíamosclassificarcomosecundários,dereforçoouorbitaissedimentamestapercepçãodaexistênciaatravésdaênfaseemoutrasnuancesnassociabilidadesautoritárias.Osmitosdodilúvio,datorredeBabel,deCaimeAbel,eoutrosmais,alimentamomitoprincipalaoredimensionaremcertosaspectosdeste,afirmandoumaformadesociabilidadeentreDeuseoshomens,entreoshomenseanaturezaeentreospróprioshumanosnaqualahierarquização,aautoridadeeopodersãoapresentadoscomoelementosprimordiaisparaaexistência.Dequalquerformaumcoraçãoeumcérebromísticosconstituemumterrenopropícioparadisseminaçãodatranscendência,venhaelasobqualquermanifestação;substituaDeusporleisdahistória,Estado,dever,humanidade,justiçaououtraabstração,eascoisaspermanecerãoasmesmas.Notextosagradoostermoschavesemaisrecorrentesresultamnaelaboraçãoedisseminaçãodeumasociabilidadeautoritária:“Reidosreis”,“Senhordossenhores”,“Deusvingativo,ciumentoeiracundo”,“Deusdosexércitos”entreoutrosquesedesdobramnoestabelecimentoderelaçõesbaseadasnodomínio,napuniçãoenocastigo,napremiaçãoenaglorificação.Ascoisasnãomudamoconteúdoquandoadivindadedenossasociedadepassaaserapresentadacomo“Deusdeamor”,“piedoso”,“misericordioso,“infinitamentebom”,ououtrotermoequivalente,poisoabandonopeladivindadedasatitudesmarcadamentedurasdeumperíodoadotandooutrasbrandasebondosasapresenta-secomoumamudançasemcausa,semmotivo,legitimandooarbítrio.AprópriaidéiadeDeusinstaura o absoluto uma vez ele não precisar ser “bom”, “fiel”,“justiceiro”, “zeloso” ou outro qualificativo. É o TodoPoderoso e ponto final. O que passa disto são exercícios de contorcionismos no pensamento propostos pelos teólogosafimdeludibriaredesvanecerasinquietações. Todacosmologiainstaura,deumaformageral,umtipodesociabilidade.Amaneiracomopercebemosaexistênciainauguraomodocomonosrelacionamoscomtodososseresvivos,comnossoplanetaecomosdemaishumanos;nesteúltimoconjuntoamaneiradebalizarmosnossosrelacionamentoscompovoslongínquos,próximosedenossaíntimafamiliaridadepassaporumaformataçãodadapelosmitos,porumacosmovisão.Omodocomopensamosestáintrinse-camenteligadoacomosentimos,aomesmotempoemqueomodocomosentimosdependediretamentedecomopensamos;pensamentoesentimentooferecemosreferenciaisatravésdosquaisselecionamososestímulosquenoschegamatodoinstante,numprocessocontínuodecriaçãoderealidades.Nossoolhar,sobretudo,aonossoredorencontra-semoduladoporumconjuntocomplexodeelementososmaisvariadospossíveis.Nossasmaneirascomportamentaispossuemreferenciaisfundamentaisnosconceitoseafetosaprendidoseapreendidosnomeioenoscoletivosondenosiniciamosculturalmente.Opavordamortecultivadopelareligiãocristã,porexemplo,nãoimpedeaexperiênciadafinitude;impedeantesaexperimentaçãoplenadavida;omedodemorrernãogeraimortalidademassimmortos-vivos!Nestepontosurgemosmal-amados,osressentidos,osrecalcados;ofielabraçaumcódigodecomportamentopordemaisrígido;suasrelaçõespessoaisecoletivassãoestabelecidasapartirdebalizasinstauradorasdoabsoluto.Poroutroladoavidaépercebidacomodiretamenterelacionadaaonúmerodediasderespiraçãoedemanutençãodasfunçõesprimáriasdeumorganismo;aformacomoesteperíodosepassanãoédemodoalgumlevadoemconsideração.Destamaneiraseinstauraumtipodesociabilidadebaseadanosacrifício,nador,naangústia,nosofrimento. Oamoreasexualidade,particularmentenatradiçãojudaico-cristã,sãoobjetosdeumregramentomortal,ocasiãopropíciaparaoestabelecimentodeumaprofundamisériaexistencial.Osfascismosdetodososmatizesprecisamdesteterrenoparaflorescer,comtodovigor,individualidadesincompletas,deformadas,castigadas;sãoestasasmatérias-primasfundamentaisparaoestabelecimentode“governosfortes”!Sãopessoasestilhaçadasafetivaepsicologicamentedispostasàpráticadadelaçãosistemáticaouesporádica,condiçãosinequanondetodosostotalitarismos.Osgovernosautodenominadosmodernostêmemuníssonocultivado,deumamaneiracalculada,sociabilidadesfundadasnaalcagüetagem;umasociedadedealcagüeteséacicutaoferecidadisfarçadaemvinho.Todasasinstituiçõesdassociedadesmodernasobjetivaminocularnosindivíduosaconsciênciadeserum“cidadão”livreonde,atravésdenovoscontorcionismosemistificações,aliberdadeétotalmentenegadaportantasregula-mentaçõesecódigos.Asinstituiçõesnãofuncionam?Seusdireitosnãosãorespeitados?Nãohásegurança?Asaúdeeaeducaçãosãoprecárias?Osalárioéinsuficiente?Apolíciaéviolenta?Osgovernantessãocorruptos?DE-NUN-CI-ARéagrandeemaravilhosasaídaapontadapelosditadoresdeplantão!Arealizaçãodacidadaniaémanifestaquandooindivíduo,pasmem,“denuncia”àProvidênciapolítica;damesmaformaarealizaçãodoserdofielsedáaorecorrer,eaoconfiar,plenamenteàProvidênciadivinatodososseusproblemas,todaasuavida! Os mitos religiosos ao lado das superstições filosóficas e dos preconceitos cientificistas findam por engendrar individualidades místicas e irresponsáveis. Baseado em religião, quer em ideologia, filosofia ou alguma escola teórica, todo o pensamento fechado em simesmoreinstalaoabsoluto,otranscendental.Aidéia de um ser supremo, seja ele Deus, Pátria, leis da história, Humanidade, Ciência, Estado, Inconsciente, estruturasprofundas,ououtraabstraçãoqualqueranuladosindivíduosapossibilidadedeumaaçãoresponsáveleconsciente,enquantoestesseencontraremsoboarbítriodeumaentidadetodo-poderosa,aquemdirecionamacausaeofimdetodaaexistência.Osindivíduossetornampessimistas,fatalistaseresignadosaoadotaremqualquerdasseitascomoreferencialparasuasrelações.Istoporqueacrençanumsersuperior,pairandosobretodosesobretudo,fundatiposderelaçõessociaisepessoaisreproduzindoestaperspectivademodoaconduzirosfiéisàprocuradesuperioresentresi.Édesnecessáriodizerseresteoterrenoadequadoparaaadoçãodeatitudesdeadaptação,reproduçãoemanutençãodasrelaçõeshierarquizadas.Estastêmcomorequisitofundamentalocultivodaobediênciaporumconsiderávelestratosocial.Insubmissão,indisciplina,irreverênciasãoposturasinconciliáveiscomumasociedadeondeasrelaçõesentrepessoasecoletividadessãoverticalizadas. Oserobedienteépassivoeirresponsável;passivopornãoexerceraimaginaçãoecriatividade,limitando-seapersistirnumcircuitoestímulo-respostaou,quandomuito,exercitandosuaimaginaçãonoestreitocampobalizadoporumaverdadeoficial(umlimitanteenãoummilitante).Irresponsávelporqueaocumprirordensacha-semoralmenteirrepreensívelanteasconseqüênciasdesuasatitudes.Destaforma,podetranqüilamentejogarbombasempopulaçõescivis,apertarumbotãodedescargaelétricanumapessoapresaaumacadeira,desviarrecursospúblicos,administrareauxiliaro“bomfuncionamento”dosnovoscamposdeconcentração(asilos,quartéis,manicômios,presídios...),enfim,realizarqualqueratividadeordenadapelosseus“superiores”(nãoéesteotermo?). Omedoéosentimentoaorientarasaçõesdomístico, do crente em seres ou entidades supremas. “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria”, reza o texto sagrado, sem alertar os fiéis ser este temor extensivo atudorelacionadoerelacionávelaeste“Senhor”.Este,porsuavez,tomaaformaoradechefedasessão,oradopatrão,oradopaioudamãe,oradoprofessor,oradopolicial,oradaPátria...OindivíduotemerosoesperadeDeus,doEstado,deinstituições,dapolícia,da“justiça”aresoluçãodeseusproblemas.Oensinooficial,afamília,osindicato,aigreja,oambientedetrabalho,otrânsito,cultivam,porentresuasfinalidadesmaisexplícitas,onarcóticodapusilanimidade.Também,nachamadasabedoriapopularencontra-seinstaladoofermentodotemor:“Mandaquempode,obedecequemtemjuízo”,dizumdosditados,sedimentandorelaçõesdedominaçãocomosendonaturaise,maisqueisto,inevitáveis,necessárias.Estepensamentoaoladodomaisbadaladoainda“cadamacaconoseugalho”,formaumaduplamedonhaprocurandoinocularnosindivíduosapredisposiçãoàobediência,avontadedeservireomedodesofrerpuniçõesecastigos.Seestetipodepensaresentirédisseminadonapopulaçãoemgeral,comênfasenostrabalhadores,entreosdirigentes,poroutrolado,cultiva-sealógicadadominação.Assimtemosentreoschefesumditadoorientando-osagritaremsemprecomosubordinado,poiscasoochefenãosaiba,àsvezes,porqueestágritando,ooutrosaberásempreoporquêdeestarsendoinsultado. Todosesteselementosconjugadosresultamnaexistênciadeumaformaderelaçãosocialbaseadanomandoenasubserviência;hápessoaspredispostasparadominareoutraspredispostasparaobedecer.Cultivam-se,destamaneira,pendoresparaaobediênciaemunseavertigemdomandoemunspoucos.Istoseestabelecedeumamaneirarelacional:oconjuntodasociedadepossui,regrageral,poucossegmentosorientadospara o domínio, e os demais, ou a quase totalidade destes, inclinados à obediência; isto significa também existir a mesma dinâmica no interior de cada um destes segmentos. A lógica do mando e da obediência se coloca como uma forma de ver o mundo e de se portar diante das situações rotineiras como também das inusitadas. Assim, todo o conjunto das relações de um indivíduo de qualquer dos segmentos sociais vai se realizar tendo como pano de fundo orientador das suas atitudes símbolos e signos culturais, processos e mecanismos do poder instauradores de hierarquias. Na medida em quealguémouumevento,queentrenocamposensorial de um indivíduo das chamadas classes dirigentes, procurando interagir com ele ou instando-o a adotar alguma ação, será correspondido ou não, desta ou daquela forma, a depender da situação dos campos culturais implicados. Sealgunsentendemseroniilismo,odesencan-tamento,acrise,opessimismo,umpós-modernismo,ououtraainda,acaracterísticamaismarcantedenossaépoca,acreditoseraCOVARDIAamarcamaisdestacável(edetestável)dacivilizaçãoocidental.Sóumasociedadedecovardespossibilitaosurgimentodosfascismosnasversõesdasmaisdiversas(socialismodeEstado,nazismo,totalitarismo,teocracias,democracias,imperialismos).Apenascovardescontumazesconseguemseenganarepassaravidasemagir(entendidonaconcepçãoplenadoverbo),vegetando,esperando,esperando... a posição correta dos astros, um salvador, o terceiro milênio, a vitória de seu partido ou de seu candidato, um grande líder mundial, um sistema de governo perfeito, racional e justo,

o advento do super-homem, acertar na sena acumulada, que seja chamado para o show do milhão, a outra vida, a batalha final, a solução final, umapromoção, que o marido se toque,

que a mulher se toque, o reconhecimento geral do gênio que é,

o contato dos ets, outra capicua, a segunda vinda de cristo ou outra coisa qualquer. Esta espera sem fim não

acontece impune nem inocentemente, uma vez que guarda em si a manutenção de uma sociabilidade sinistra porque disseminadora de relações verticais, insensibilidade nas reações e um modo de vida hierarquizante. NossaépocaseriajustamenteconceituadacasofosseestabelecidootermoCOVARDIAcomosíntesegeraledefiniçãocabaldetodososavanços...paratrás!Detodasasconquistas...degrilhões!Detodasasvitórias...doarbítrio!FicariamuitomaisadequadaumaobratratandodoséculoXX,esobretudodenossosdias,comoTEMPOSDECOVARDIAouAERADACOVARDIA.Nempós-moderno,nempré-moderno,nemmoderno,nemdesencantamentodomundo,nemcrisedosparadigmas,nemniilismoconseguemexprimirmeusentimentoaoolharparaaspérolaslegadasparatodosnóspelosesforçadosaltruístas,salvacionistas,bondososestadistasecaridososreligiosos.Todooprocessosocialtemdesembocadonaelaboraçãodeindividualidadesfracas,disciplinadas,domadas,místicas.Orumotomadopelasinstituiçõesvigentestraduzoestabelecimentodevontadesdeformadas,estasabandonamumavibraçãoativapassandoparaumcircuitodepassividade,oudeumavontadeativa...deservir!Todaaprogramaçãomidiática,exemplocontemporâneodemeiosdeconstruçãodeimaginário—naturalizacenasdelutassangrentas,morte,hierarquias,assassinatos,carnificinas;acomeçarpelasprogramaçõesinfantis,trabalhandonestatantoanaturalizaçãodaviolênciacomoumadifusãosistemáticadetermosmilitaristas.Omundodasfábulasinfantisespelhaumasociabilidadefundadanoautoritarismo,procurandofixarnasmentesimberbesumacosmologiadetipomística.Reis,princesas,monstros, verve magos,bruxas,seresfabulosos,mulheresfrágeisouextremamentecruéis,sãooshabitantesdomundodasfábulasedaslendasestabelecidas,sedimentandosutilmenteasrelaçõesfundadasnoprincípiodeautoridade.Reverência,temerosidade,pusilanimidade,covardia,enfim,sãooselementosconstituintesdamatériadossereshumanossobregimedisciplinar;esteéoterrenoadequadoefavorávelaoestabelecimentodeprojetosdedominaçãoecontrole.Adisciplinaridadeeodomínioreproduzemavelhaescravidãonegra;adiferençadaescravidãomodernasedeveaofatodehojeaescravidãosermaisamplaenãorestritaapenasanegros;comotambémaofatodestaescravidãosermaiseficaznamedidaemqueaquasetotalidadedaspessoassevêcomo“livre”aomesmotempoemqueatribuiàexistênciadeumgoverno—democrático,socialista,teocráticooudeoutravariação—estaprerrogativa. resumo abstract OscuidadoscomosprocedimentosThecarewiththeproceedingsappliedinsocialusadosnaspesquisassociaistêmprodu-researchhasproducedassorteddebatesandzidodebateseorientaçõesasmaisorientations.Manytheoreticalperspectivesdiversas.Váriasescolasteóricaspointoutdifferentwaystodealwiththeso-apontamdiferentesmaneirasdetrata-called—object“ofresearch.Florentinodementodochamado—objeto“daCarvalho,inhiscriticismoftranscendence,pesquisa.FlorentinodeCarvalho,emtreatedthissubjectinaparticularmanner.suacríticaàtranscendência,abordouBuildingarelationalperspectiveinactionand este tema de uma forma bem particular. reflection, where the nomad movement Elaborando uma perspectiva relacional disrespects borders placed among na ação e na reflexão, onde movimento knowledges and between them and life; we nômade desrespeita fronteiras fixadas also see an anthropophagical manner of entre os saberes e entre estes e a vida; appropriation being established; savage vemos também ser instalado neste attitude in opposition to domestication of processo um modo antropofágico de thought, feelings, bodies. Finally, indiscipline apropriação vivencial; atitude selvagem as existential attitude, diluting hierarchies, opondo-se à domesticação dos establishing sociabilities to escape from pensamentos,sentimentos,doscorpos.centralisms,fromsedentariness.Enfim,indisciplinacomoposturaexistencial,diluindohierarquias,instau-randosociabilidadesemfugadoscentralismos,dossedentarismos.

conversas com um abolicionista do sistema penal entrevista com

LoukHulsmanéprofessoreméritonaUniversidadedeRotterdamemembrodediversosforosinternacionais–dasNaçõesUnidas,doConselhodaEuropaedasSociedadesdeDireitoPenaleCriminologia.Hulsmanéumabolicionistapenalquedesestabilizanãosóodireitocomoopróprioabolicionismo.DesconcertaoDireitoaosacudirascertezaspensadasemtornodelegalidadeseilegalidades.ÉProfessordeDireitoPenale,simultaneamente,defendeasuaextinção,afirmando,entreoutrascoisas,nãohavernaturezaontológicadocrime.Convulsionaoabolicionismopois,nãorestringesuaperspectivaàextinçãodasprisõesmasafirmaapossibilidadedequeosproblemastragadospelaesferacriminalsejamresolvidosnoâmbitodoDireitoCivil,ressaltandoqueumasociedadesempenasjáexiste.Praticaoabolicionismoinvestindoemduasfrentes:oabolicionismosocialeacadêmico.HulsmandivulgaoabolicionismonojardimdesuacasaemDordrechtnaHolanda;naUniversidadeeemváriaspartesdoplaneta. Nestaentrevista,divididaemduaspartes—asegundaserápublicadanopróximonúmero—concedidaà verve JacquelinedeCelis,comquemmantémumaparceriaabolicionistaintensa,explicitaqueseuabolicionismoprovémdeespaçosdiversos,imbricadosnassituaçõesconcretasdesuavida.DeseusproblemasconcretosasrespostasdiretasencontradasfizeramHulsmandeslizarrumoaoAbolicionismo.Acontecimentotecidoemsuaprópriasuperfície,simultâneoàsuainvenção.Hulsmanéumconviteàinquietudedoabolicionismo,distante,muitodistante,dasutopiasqueconvivemtãobemcomaspráticasconsoladoras.E,comoeleprópriogostadeafirmar,emmeioaumsorrisoalegre,oabolicionismofazbemàsaúde. EstaentrevistafazpartedolivrodeLoukHulsmaneJacquelineBernartdeCelis,PenasPerdidas:osistemapenalemquestão.RiodeJaneiro,Luam,1993.TraduzidoporMariaLuciaKaram,encontra-seesgotadoaguardandoumanovaedição. SaleteOliveira situações e acontecimentos Jacqueline Bernat de Celis — Então, quem é você, LoukHulsman? Louk Hulsman — Sou professor da Universidade de Rotterdam, há quase 18 anos. Lembro-me muito bem de como isso aconteceu. Um dia, alguém que eu conhecia só de nome me telefona, me diz que quer me falar sobre a nova Faculdade de Direito... Foi em 1964. No ano anterior, duas novas Faculdades tinham sido criadas, uma de Direito e uma de Ciências Sociais, que viriam se somar à antiga Faculdade de Economia. No primeiro ano, não se dá Direito Penal. Mas, para o segundo ano, era preciso um professor. Não sei porque, eu disse sim, sem hesitar. —Vocênãofezumconcurso?Estaéumamaneiranormal desetornarprofessornumauniversidadeholandesa? — Sim, as nomeações, na maioria das vezes, se fazem em função do curriculumvitae da pessoa.

— O que você havia feito anteriormente, que o recomendavaparaocargo?

— QuandomeofereceramacátedradeDireitoPenal,euestavanoMinistériodaJustiça.Alémdisso,presidia,naépoca,oComitêEuropeuparaProblemasCriminais,emStrasbourg,doqualfizpartedurantemuitosanos.AntesdepertenceraoMinistériodaJustiça,trabalheinoMinistériodaDefesadosPaíses-Baixos,ondeingresseilogoqueconcluímeusestudosdeDireito.Durantemaisdedoisanos,atravésdesteMinistério,participei,emParis,dostrabalhosdoComitêInterinoparaaComunidadeEuropéiadeDefesa,demodoque,hámuitotempo,eujáhaviaadquiridoumaboapráticaemrelaçõesinternacionais.

—Estasprimeirasfunções,semdúvida,nadatinhama vercomosproblemasdosistemapenal... — Sim,semdúvida.Trabalhei,emParis,numprojeto de Código Militar Europeu e na preparação de um Regulamento Europeu de Ajuda Mútua Judiciária, que, na verdade, não deram em nada, pois a França se recusou a assiná-los... Me engajei neste trabalho, lhe dediquei muitas energias, e fiquei bastante frustrado na época, ao ver que tanto esforço, tanto vaivém entre Paris e os Países-Baixos, não tinham servido para nada. Sem dúvida, foi essa uma das razões que me fez passar para o Ministério da Justiça...

— E antes de ser enviado a Paris?

— Trabalhei em meu país, durante três anos, no ServiçoJurídicodoMinistériodaDefesa.Omaiscurioso, quando penso nisso, é a espécie de vocação que, desde

o começo, levou a que eu me insurgisse contra a maneiradesumanacomqueseaplicamasdecisõespenais.DeimediatotivequemeocuparcomquestõesrelativasaoDireitoPenalMilitar.OServiçoondeeuestava,dentreoutrasatribuições,sepronunciavasobrepedidosdegraçaelivramentocondicionaleeumesentiamuitomalemterqueresponderaestasdemandassobasorientaçõesdemeuschefes,quemepareciamincrivelmenteseveras.“Não,não”,diziameles,quandoeuqueriaconcedergraçaoulivramento;“vocêdeverecusar”.ODepartamentoPessoaltambémtomavadecisõesdisciplinares,algumasdasquaismerevoltavam.E,jovemcomera,eunãohesitavaemcorreratrásecobrardosresponsáveis.Aumdeles,quedecidirarevogarumbenefíciocomefeitoretroativo,interpeleisemcerimônia:“Oquevocêfariasefossepessoalmenteatingidodestamaneira?”Enquantoisso,euprocuravaummeiodeconseguirumaevoluçãodapolíticadelivramentoscondicionaisquefossefavorávelaoscondenados. —Naturalmente,eraumsonhoimpossível... — Não totalmente. Com o tempo, consegui dar uma inclinação mais liberal à política de livramentos condicionais. Aprendi muito cedo — e esta foi uma das grandes descobertas da minha vida — que, mesmo de certos postos bem modestos, é possível sacudir as burocracias, desde que, naturalmente, haja um empenho profundo e se esteja bem preparado tecnicamente. Sem dúvida, também fui favorecido pela sorte. Eu estava num posto bastante interessante. Ao meu Serviço vinham, para consulta, todas as questões econômicas ou as não estritamente militares. Por outro lado, todos os projetos elaborados pelos outros Departamentos passavam pelo Ministério da Defesa antes de ir para o Conselho de Ministros. Quando cheguei, todos os outros membros da equipe estavam absorvidos com o problema da Indonésia. Nesta época, havia a guerra da Indonésia e era preciso preparar a transmissão da soberania. Isto dava um trabalho enormeàspessoasdomeuServiço.Demodoqueeraamim,orecém-chegado,queseencaminhavamasquestõesmais‘corriqueiras’...que,nemsempre,erambanais!EuestavanoServiço,hánãomaisdedoismeses,quandochegou,porexemplo,umprojetodeleisobreenergianuclear.Ora,eunãosabianadasobreenergianuclear!Mepus,então,atrabalharnesteprojetocomomaiorcuidado.Meutrabalhofoiapreciadoecomeçaramaterconsideraçãopormim.Isto,decertaforma,medeuumamoedadetroca:precisavamdemim,tecnicamente,parafazerumtrabalhoconsideradoimportantenatradiçãodoServiço;comisso,chegadaahora,pudereivindicarmenosrestriçõesnaconcessãodelivramentoscondicionais.Alémdisso,aprendioutrospequenostruques,atravésdosquaistambémpudeexercerminhainfluência:porexemplo,naocasiãodasnotastrocadaspelosMinistérios.ParaqueumamatériapassassenoConselhodeMinistros,eraprecisoqueosMinistrossepusessemdeacordo.Assim,seumMinistérioquisesseganhartempo,omeupoderiaserexigente,oquelevariaoprimeiroaterinteresseemaceitaroquereivindicássemos,paraqueamatériapassasse.Comestepoderemretardarouaceleraroprocesso,epodiavercertascoisas...Decertomodo,noMinistériodaDefesa,tive,antesdaconsciência,umaespéciedepráticaabolicionista... —Estassuasexplicaçõesmostramumaimagembastante inquietantedaformadeaprovaçãodeprojetosdelei! — E de sua elaboração! Durante este período da minha vida, vi muito claramente como as leis são produzidas: geralmente feitas por reles funcionários e emendadas precipitadamente e por compromissos políticos; não têm absolutamente nada de democráticas e, dificilmente, são fruto de uma coerência ideológica. Pior ainda: são editadas na ignorância da diversidade de situações sobre as quais vão influir... Mas, este desnudamento de uma realidade sem correspondência com os princípios ensinados não passou de uma etapa na descoberta de que, em nossas sociedades, no fundo, nada funciona segundo os modelos que nos foram propostos.Paraexplicaristo,porém,seriaprecisovoltar bem mais atrás em minha história pessoal... —Sevocêpudessefazê-loseriainteressante,namedida emquesuaexperiênciapoderiaserreveladoraparaoutras pessoas. — Talvez seja. Pois bem, durante longo tempo, acreditei que aquilo que ensinava era realidade: uma determinadateologiamoral,porexemplo;ouaideologia do Estado protetor da pessoa. Mas, diante de certos acontecimentos, me dei conta de que nada disso se sustentava.

— De qual moral você fala?

— Eu cresci numa região dos Países-Baixos onde reinava, de forma absoluta, a doutrina católica oficial

— aquela pré-Vaticano II. Inculcavam-nos a estranha idéia de que havia umas pessoas eleitas e outras não. Na ideologia escolástica, tudo é ordenado por Deus e quaisquer definições são dadas de uma vez por todas. Então, há pessoas escolhidas por Deus, que pertencem aoCorpoMísticodeCristo,aoPovoEleito;eháosoutros que estão de fora.

—Vocênãoestáexagerando?AgentelênoEvangelho: “Euvimbuscaresalvaroqueestavaperdido”! — De forma alguma. Sempre me ensinaram quesomente aqueles que são batizados estão com Deus. É certo que a noção de batismo ampliou-se um pouco. Consideram-se como batizados aqueles que tiveram desejo de sê-lo. Também se inventou o batismo de sangue. Mas, foram extensões de um princípio estrito, pelo menos no que se refere ao ensinamento que recebi. Não falo no Evangelho; falo de uma certa corrente da Igreja, a corrente especificamente jurídica, aquela que forjouafórmula“foradaIgreja,nãohásalvação”.Umhomemcomomeusantopadroeiro,aquemachoatébemsimpático,Luís,reideFrança—nãoqueriafazeraguerra...Mas,fezadeTúnis.Quandoselêoqueeleescreve,fica-seconfuso.Segundoele,nãosedeveriafazeraguerracontraosingleses,porqueosinglesestambémsãosereshumanos.Mas,eraprecisofazeraguerracontraosárabes,porqueelesnãosãonada,nãopertencemaoCorpoMístico...Dizia-se:“épena,maséassim;elessãoperdidos”.Erampessoasque,detodomodo,nãopodiamcompreenderosentidodascoisas...Porqueascoisastinhamumsentidoqueapenasoseleitospodiamcompreender;aliás,emgrausdiversos,conformesuaposiçãohierárquica,entendidoquesomenteoPapaviatodaaverdade,emfunçãodeseuvínculodiretocomDeus...Entãoeuviviainquieto,sempremeperguntandosenãoiriaparaoinferno,pois,durantemuitotempo,acrediteinoinferno.Seráqueeunãoiriapararlá?Euqueria,aomenos,sabê-lo,einventavaumasespéciesdejogosparaobterumaresposta:seeuchegaraocruzamentoantesdetercontadoatétanto,vouparaoinferno;senão,nãovou...Todoojurídicojáestavaali!Faleipublicamentedistohánãomuitotempo.Mencioneialgunsproblemasdeconsciênciaquetiveporcausadepenitênciasquepodiamserfeitasequevaliamumtempoamenosnopurgatório,parasimesmoouparaoutroqualquer.Erapossívelganhar60dias,rezandotaloração;eindoàigrejanoDiadeTodososSantos,qualquerumpoderiasertotalmenteperdoado...Aindamelembrodeumcerto1o de novembro... Fazia um tempo lindo! Será que eu poderia ir brincar, ou deveria cumprir esta penitência que dava a absolvição total? Tantas almas gemendo no purgatório! Como passear nos bosques, se eu poderia salvá-las? —Comovocê,finalmente,saiudestainquietude? — Durantemeuúltimoanodeinternato—vivimuitosanosnumcolégiointerno—estudeiteologiamoral,porminhaprópriainiciativa,poisnãofaziapartedoprograma. Então, comecei a não acreditar mais no que contavam, havia, de fato, uma grande distância entre o que ensinavam e minha experiência. Aí, comecei a forjar minha própria religião. A princípio foi extremamente difícil obter informações diferentes daquelas que a Igreja transmitia. Num dado momento, consegui me apoderar da Bíblia. Tal leitura foi como dinamite. Subitamente, encontrei ali, inclusiva nos Evangelhos, toda espécie de material contrário ao sistema e mesmo à liturgia que nos faziam seguir e que, aliás, me agradava... De fato, era difícil sair dos marcos impostos, pois, não só não davam livros críticos na classe em que eu estava, como, além disso, no contexto católico da região onde eu vivia, não havia a menor possibilidade de encontrar noutros lugares, seja em bibliotecas ou livrarias, qualquer literatura contrária às idéias da instituição Igreja. Nesta etapa da minha vida, realmente senti a dominação totalitária de um sistema institucional que fechava as portas a qualquer outro modo de pensar. Entretanto, a dúvida ia começar a se desalienar. —Comoassim? — Escapardoconformismopermiteoacessoaumuniversodeliberdade.Mas,nemsempreéfácillargaroestablishment,embora,àsvezes,issodêprazer.Algunsacontecimentosmeajudaram.Aguerracivilespanhola,porexemplo,foiumaetapaimportante.Naregiãoondeeuvivia,osjornaiseramtodosfranquistas.Comumatalimprensa,eutambémacabavaficandointeriormentecontentequandoFrancotomavamaisumacidade,quandoseuexércitoavançava.Mas,em1938,comeceiateracessoaoutrasfontesdeinformaçãoe,derepente,mevimuitopoucoorgulhosodemeussentimentos.Percebiquetinhasidototalmenteenganadopelosistemaondeeutinhaestadoencerrado.Agoraqueliaoslivrosdosrepublicanosedaquelesque,naFrançaenosPaíses-Baixos,tinhamparticipadodalutacontraFranco,medavacontadoerroprofundoemqueeuhaviamergulhadoe minha vergonha crescia... Jamais fui à Espanha antes da morte de Franco, pelo trauma profundo que vivi naquela época. Este episódio me marcou bastante. — Também foi neste momento que você começou a se interessarsobreosprincípioslegitimadoresdoEstado?

— Foram a ocupação, a resistência e a guerra que, para mim, desmistificaram o Estado. Num dado momento, como eu usava uma identidade falsa para não ir trabalhar na Alemanha, fui preso pela polícia holandesa — a polícia do meu país! — e enviado para um campo de concentração. Eu já tinha constatado que todo o aparelho estatal holandês funcionava sob a ocupação alemã como se nada tivesse acontecido; os altos funcionários permanecendo em seus postos e continuando a produzir leis. Agora, eu percebia que as leis e as estruturas teoricamente destinadas a proteger

ocidadãopodem,emdeterminadascircunstâncias,sevoltarcontraele.Ouseja,descobriafalsidadedodiscursooficialque,deumlado,pretendeseroEstadonecessárioàsobrevivênciadaspessoase,deoutrolado,olegitima,revestindo-odarepresentatividadepopular.Descobriquetinhasidoenganadopelodiscursopolítico,damesmaformaqueforaenganadoporminhaeducaçãoescolásticaeinduzidoaoerropelomeumeioapropósitodaguerranaEspanha.Umceticismoprofundotomoucontademim,finalmentemeimpedindodeadmitirqualquersistemaacabadodeexplicaçõesgerais,quenãopudesseserverificado. — Este tipo de filosofia deve ter feito de você um professorbemdiferentedomodeloconvencional...

— Evoluí neste sentido. Devo dizer que depois de aceitar, muito espontaneamente como já disse, a responsabilidade da cátedra de Direito Penal que me propuseram em 1964, tive um momento de estupor.Como me posicionar? É bem verdade que, por ocasião dos encontros do Comitê Europeu para Problemas

Criminais, conheci especialistas das ciências criminais de inúmeros países; eu já tinha uma idéia do que eram os sistemas penais em diferentes contextos, pelo menos na Europa, e já tinha alguns contatos com criminólogos avançados. Estas relações me ajudaram a ultrapassar o enfoque jurídico dos problemas. Por outro lado, estive presoduranteaocupaçãoalemã,eacondiçãodedetento ficou gravada no mais fundo de mim como uma questão em aberto. Também é certo que aprendi com Van Bemmelen, meu professor na Universidade, a me posicionar criticamente em relação aos sistemas existentes: numa época em que os professores de Direito Penal geralmente se limitavam a fazer desta disciplina, estranhamente considerada menor, uma simples técnica legalista, ele lhe dava um enfoque de criminólogo e soube fazer com que eu me apaixonasse pelo que ensinava, a tal ponto que, com meu curso concluído, em alguns meses tornei-me seu assistente na Universidade... Mas, tudo isso que me impelia a aceitar opostonãomedavaosconhecimentosespecíficosparametransformarnumdocente,pelomenosnaconcepçãoclássicadocargoqueeuaindaadotava.Eumesentiamuitopobre,muitomalpreparadoparaestanovatarefa.Eunãosabia,porexemplo,nadadehistóriadoDireitoPenalenãoviacomomelançarnoensinodeumsistemasemterumaidéiaclaradoqueohaviaprecedido,desuasorigens,desuaevolução.Eutambémmecolocavaaquestãodametodologia:parachegaradaroqueeuacreditavaserumensinodestenome,seriaprecisorepensartodasascategorias.Mevi,assim,mergulhadonahistóriaenapedagogia...Porém,umasurpresameesperava.Àmedidaqueeuliaasobrasmaisimportantessobreoensinoemgeralesobreoconceitodehumanidadenoensino,iadescobrindoqueeutinhatidoumavisãoapriorísticatotalmentefalsasobreopapeldoprofessor.HáumaobradeBloombastanteesclarecedorasobreosdiferentesníveisdasatividadescognitivas.Noqueconcerneaoaspectocognitivodoensino,eledistinguecinconíveis:nível1)conheçootexto,possorepeti-lo;nível2)compreendootexto;nível3)possoaplicarosconceitos;nível4)analiso;nível5)possofazerasíntese.Então,disseparamimmesmo:seclarificoeorganizo,meencontronestenívelsuperiordeanáliseesíntese;mas,sedoutudoprontoparaospobresestudantes,elesficarãosemprenoníveldo‘conhecer’oudo‘compreender’—oqueestoumedispondoafazerétotalmenteaberrante.Decidi,assim,nãodaraosestudantesasidéiasprontaseacabadas,clarasecompreensíveis,quetinhamsetornadoasminhas,masapenaslhesfazerchegarelementosdereflexãoquelhespermitissemencontrarseuspróprioscaminhosemsituaçõescomplexas.Seriamelesquefariamasanálises,procurariamasínteseetirariamsuasconclusõespessoaissobreosproblemasqueevocaríamos... —AotomarposseemsuacátedranaUniversidade,você já era abolicionista? — Não propriamente. Na realidade, foi na Universidade que a idéia mesma do abolicionismo tomou corpo em mim. Percebi que, a não ser por um acaso excepcional, o sistema penal jamais funciona como querem os princípios que pretendem legitimá-lo. —Pois,comoprofessordaUniversidade,vocêteriaque justificá-lo? — Écertoque,emgrandeparte,aUniversidadetemumaatividadedejustificaçãodosistemaestatal.Mas,aomesmotempo,elafavoreceumaatividadecrítica.AUniversidademepôsemcontatocomapesquisaempíricaecomenfoquesoutrosquenãoojurídico.Nestesentido,foiexatamenteelaquemepermitiuchegaraumanovavisãoglobaldosistemapenaleafirmarminhaposiçãoabolicionista... Eu diria ainda que, afinal de contas, se as ciências sociais me levaram a esta posição foi porque, praticando-as, descobri que elas não davam o tipo de

verve resposta que eu esperava. Elas me ensinaram que o ‘saber’ científico, em última instância, passa sempre pelo ‘vivido’, que, em nenhuma hipótese, pode ser substituído, ao contrário do que eu erroneamente acreditava. Nesse sentido, foram as ciências sociais quemerevelaramaimportânciadovividoe,igualmente, me levaram a pensar que, ao favorecerem uma melhor compreensão deste mesmo ‘vivido’, podem ter uma feliz incidência sobre ele. Paralelamente, elas foram, pouco a pouco me fazendo aparecer diante dos meus olhos o nonsense do sistema penal, no qual justamente o vivido quase não tem lugar, nonsense este que algumas pesquisas empíricas iriam me ajudar mais diretamente a descobrir. —Vocêpôdedemonstrarononsensedosistemapenal? — Vocêveráemquemedida.Nocomeçodomeucurso,memantivedentrodeumaperspectivamaisoumenostradicional,tratandodecolocarlimitesracionaisparaaexperimentação.Mas,aomesmotempo,euqueriadarespaçoparaminhavisãoglobaldosocial,davida,paraasconclusõesqueeuhaviaverificadopessoalmente.Umapesquisasobreomododesentenciarmedeuumaoportunidadeúnica.Apartirdestapesquisa,desenvolviummodelonormativonoqualsetratavadeoperacionalizarosprincípiosamplamenteaceitosporjuristasecriminólogos,segundoosquaisépossívelproferirumasentença‘justa’(proporcionalidadeentreapenaeodelito,subsidiariedadedosistemapenal,informaçãoexatasobreoimputado,etc.).Umdosmeuscolaboradorescolocouomodelonocomputadore,quandoresolvemostrabalharcomeleemcimadeproblemasconcretos,chegamosaumaexperiênciaassombrosa—perguntávamos:“emtalcaso...enesteoutro...qualéapenacorrespondente?”Eamáquinasemprerespondia:“nenhumapena”.Jamaissereuniramtodasascondiçõesparaqueotribunalpudesseimporumapenajusta,nosmarcosdosistema!Istofoiem1970. — NãofoinoanoemqueDenisChapmanpublicou,naInglaterra,seufamoso‘estereótipododelinqüente’?Vocêfoiinfluenciadoporeleepeloscriminólogospelosamericanos?

— Não,euaindanãoosconhecia.Eufazia,porcontaprópria,experiênciasdesociologiaempíricaquecomeçara,umpoucoportodaparte,demaneiraindependente.SómaistardeconheciostrabalhosdeDeniseconvidei-oasejuntarameugrupodepesquisasobredescriminalizaçãodoConselhodaEuropa...Então,atravésdaqueleestudoemtornodosentencing,percebiserquaseimpossívelqueumapenalegítimapossasairdosistemapenal,dadaamaneiracomoelefunciona.Saltavaaosolhosquetalsistemaoperacomobasenairracionalidade,queeleétotalmenteaberrante.Nestemomento,descobriterasoluçãoparaumaindagaçãoprofunda,queeumefaziadesdeajuventudeequeforadeixadasemresposta.Desdeminhaadolescência,eumeperguntava,aapropósitodacivilizaçãoromana,porqueaquelaspessoasfaziamdependersuasdecisõesdovôodospássaros,oudoaspectodasentranhasdeavessacrificadas.Estaindignaçãonãotinhameabandonadonemmesmodepoisdaobtençãodobacharelado.Trateideesquecê-la,dizendoque,afinaldecontas,osromanosestavammuitolongedenós.Mas,adúvidatinhaficadoguardadanumcantodemimereapareceu,porocasiãodeumaestadadealgumassemanasemRoma.Aimagemqueeutinhaconstruídodacivilizaçãoromanaretornouaomeuespíritoetiveasensaçãodenãoterdecorridomuitotempodesdeosromanosdaantigüidade,dequeelesnãodeviamserassimtãodiferentesdenós,edequetodanossavida,emcertamedida,estavaaindacheiadesuasidéias...etambém,umtantoparadoxalmente,tiveasensaçãodequepoderiaserdeoutraformanummomentodado,dequeotipodecivilizaçãonaqualvivemospoderiaserdetidoumdia...Entretanto,aindanãotinhaconseguidoresponderàlancinantequestãosobreasavesesuasentranhas...FoinaUniversidade,naquelemomentoderevelaçãodononsensedosistemapenal,queencontreiarespostapara

aperguntequemeperseguia.Compreendi,derepente,queoquefazemoscomoDireitoseparececomqueosromanosfaziamcomseuspássarosesuasaves.ViqueoDireito,ateologiamoral,ainterpretaçãodasentranhas,aastrologia...nofundo,funcionamdamesmaforma.Sãosistemasquetêmsualógicaprópria,umalógicaquenãotemnadaavercomavidaoucomosproblemasdaspessoas.Emcadaumdestessistemas,diziaeu,fazem-sedependerasrespostasdesignosquenadatêmavercomasverdadeirasquestõesdadas.Paranós,arespostaestánoDireito;paraosromanos,estavanasentranhas;paraoutros,elaseachanaastrologia,masomecanismoéomesmo...Nomeucurso,costumocompararopensamentojurídicoocidentalaosflippers,estasmáquinasqueexistemnosbaresefazembrilhartodosostiposdeluzes...Estejogotemsualógicaprópria.Naturalmente,seélivreparadizer:seder1000,eumecaso;seder800,aceitoaqueletrabalho...podemostirarnasortedecisõesquevamostomar,masnãonosenganemos:éprecisoqueestejamosbemconscientesdequeestamosobedecendoaumalógicaespecial. — Foi neste exato momento que você disse: é preciso abolir esse sistema irracional?

— Nãohouveummomentoespetacularemqueaidéiabruscamentebrotasse.Anecessidadedoabolicionismofoiseimpondogradualmente.Paralelamente,àsminhasexperiênciasempíricasnaUniversidade,eurecebiainformaçõesdeoutrospensadoresepesquisadoresquemeajudaramemcertospontosdepartida.Notadamentecomaleituradealgumasobrasdehistória,percebique,emtodaparte,semanifestaumaespéciedemovimentocirculardeondenãosesai.Ossistemasseencontram,aquieacolá,emdiferentesestágios,massemprevoltamaomesmoponto,eistoocorredeformasemelhanteemtodosospaíses...Sãooscírculosquesemovem...OlivrodeThomasMathiesen,Politicsofabolition,teveum

grandepapelnestaetapademinhasreflexões,quandoeujáestavatotalmentemaduro.Hámuitascoisasimpressionantesnestelivro,escritodeumjeitotodopessoal...ÉumpoucocomoaBíblia.Tambéméinacabadoe,paramim,esteaspectocontamuito.EutinhatambémograndeRelatórioemquatorzevolumesdaPresidentialCommissiondosEstadosUnidos:Challengeofcrimeinafreesociety.Paraquemquercompreenderoqueéosistemapenalenoqueeleestáseconvertendo,esteinformeéluminoso.Entretodososaspectosconsideradospelasinúmeraspesquisasquecompõeesteenormedocumento,trazendoumacombinaçãodedadossobreosistemapenalsemprecedentes,háumaanálisequemostraclarametnecomoseformaacadeiadedecisões.Estaleituratambémmeprovocouumturbilhão.DevomuitoaindaaOrtegayGasset,mesmotendoqueretroceederbemlongeparareencontrá-lo,aostemposdeminhajuventude.Guardeiumaimagemimportante:adequeconstruímossistemasabstratosparanossentirmosemsegurançacomocivilizaçãoetrabalharmosparaaperfeiçoarestessistemas;mas,oselaboramoscomtantosdetalheseascondiçõesparaasquaisforamcriadosmudamtantoque,comotempo,todaestaconstruçãonãosevemaisparanada.Adistânciaentreavidaeaconstruçãotorna-setãograndequeestaacabadesmoronando... — Vocêestásugerindoqueosistemapenaléumaconstruçãoabstratatãodistantedarealidadequedeverádesmoronarsozinha?Narealidade,infelizmente,estesistemanãodánenhumsinaldequeda.Dáatémesmovontadededizer:aocontrário!Diantedaavalanchedenovasleis,cadavezmaisrepressivas,quevêmsendopromulgadasnomundointeiro,diantedetantas“ComissõesdeRevisãodoCódigoPenal”que,umpoucoportodaparte,seprestamarevigorarosistema,talvezsedevesse,aocontrário,estarpessimista... — Do ponto de vista pessoal, não sou radicalmente pessimista.Querodizerque,semserdeumotimismoirreal,tenhorazõesparateresperanças.Mas,paraapreenderestasrazõese,aomesmotempo,compreendercomopuderealizarestaminhatravessiaparaoabolicionismo,talvezsejaprecisoqueeutratedeinformaroquesepassoucomigonumnívelmaisprofundo,sairdocampodosfatos,dosacontecimentosquemarcaramminhavida,paratentaralçarasexperiênciasinteriores.Determinadascircunstânciaslevaramaqueeuassumisseresponsabilidadenestecampo.Istofoioqueacabamosdever.Mas,certasexperiênciasprofundas—evidentementeligadasaosacontecimentosqueteceramatramadaminhavida—influíramsobretodaminhamaneiradepensar.Sãoestasexperiênciasasfontesocultasdeminhaverdadeiraatitudeemrelaçãoaosistemapenal.Apósumadeterminadacrisepessoal,atravessadaháunsquinzeanos,tomeiconsciênciadofatodequeminhaexplicaçãodomundoeaexplicaçãoquedoudemimmesmosãoprocessosparalelos,comoduasfacesdeumamesmamoeda.Istodeveserverdadeiroparacadaumdenós— oacessoanossasprópriasangústiaseanossosprópriosdesejosinfluisobrenossacompreensãodomundoevice-versa:utilizarmosoqueaprendemosdoexteriorparaadecodificaçãodasexperiênciasinteriores. — Você quer dizer que, para assumir sua posição abolicionista do sistema penal, você mergulhou no mais profundodesimesmo?

— Sim, é isso! A evolução da minha visão de mundo

— e, portanto, do meu olhar sobre o sistema penal — é necessariamente paralela à minha evolução pessoal interior.

— Neste caso, teremos que marcar uma segunda conversa,parapartirmosrumoàdescobertadasinstâncias mais secretas de sua posição abolicionista.

abram as prisões dispersem as tropas A coerção social já teve seus dias. Nada, nem reconhecimento de uma falta cometida nem contribuição à defesa nacional, podem forçar um homem a abrir mão de sua liberdade. A idéia de prisão e a idéia de quartéis são lugares — comuns hoje: estas monstruosidades não chocam mais. A infâmia repousa na calma daqueles que contornaram a dificuldade por diversas abdicações físicas e morais (honestidade, doenças, patriotismo). Uma vez que a consciência tenha se recuperado do abusoquecompõepartedaexistênciadestasmasmorras — aoutrapartesendoadegradação,adiminuiçãoqueelasengendramnaquelesquedelasescapam,assimcomoosláaprisionados;eexistem,aoqueparece,algunsloucosquepreferemacelaouacaserna—umavezqueessaconsciênciaéfinalmenterecuperada,nenhumadiscussãopodeserreconhecida,nenhumaretratação.Nuncafoitãograndeaoportunidadederesgatá-la,portantonãofaleemoportunidade.Deixeosassassinoscomeçarem,sequiser;apazpreparaparaaguerra,taispropostas escondem somente os mais profundos medos ou os desejos mais hipócritas. Não nos deixe ter medo de perceber que estamos esperando, que estamos convidandoàcatástrofe.Catástrofe?Estaseriaapermanência de um mundo onde o homem tem direitos sobre o homem. A sagrada união diante de facas e metralhadoras. Como este argumento desqualificado pode ainda ser usado? Envie os soldados e os réus de voltaaoscamposdebatalha.Liberdade?Nãoháliberdade para os inimigos da liberdade. Não seremos cúmplices dos carcereiros. OParlamentovotaporumaanistiamutilada;aclassequeseformanapróximaprimaverapartirá;naInglaterraumacidadeinteiratemsidoimpotenteparasalvarumhomem;soube-se,semgrandesurpresa,quenosEstadosUnidosaexecuçãodevárioscondenadosfoiadiadaparadepoisdoNatalporqueelestinhamboasvozes.Eagoraquejácantaram,podemmuitobemmorrer,pelacerimônia.Nasguaritas,nascadeiraselétricas,aesperamortal;vocêosdeixaráperecer? abram as prisões dispersem as tropas InLaRevólutionSurrealiste,número2,janeiro1925.TraduçãodeAndreDegenszajneAnaCernov,pesquisadoresdoNu-Sol.

a escola pública numa perspectivaanarquista1

Instrução Pública e suas relações com o Estado Ahistóriadaeducaçãomostra-nosque,demodogeral, a instrução quase sempre foi, em maior ou menor grau, um assunto mais próximo da sociedade que do Estado — salvo,talvez,nasburocraciasorientaisanalisadasporWeber.Aeducaçãofoi,duranteamaiorpartedahistória,umassuntodoâmbitoprivado,enãodopúblico.AingerênciadoEstadonasquestõesdeeducaçãocomeçaaganharvultoapartirdoséculodezoito,conco-mitantecomaidéiadodesenvolvimentodesistemasnacionaisdeeducação,ligadosaosprocessospolítico-sociaisdeconsolidaçãodosEstadosnacionaiseuropeus,instânciasqueculminariamcomosistemadeinstruçãopúblicainstaladocomaRevoluçãoFrancesaequeseestenderiadepoispelomundo. * DoutoremFilosofiadaEducação,ProfessorAssistente-DoutornoDepto.deFilosofiaeHistóriadaEducaçãodaFE-UnicampeProfessorTitulardaFaculdadedeFilosofia,HistóriaeLetrasdaUnimep,daqualéoatualdiretor. As raízes da educação pública encontram-se, porém, alguns séculos antes. Numa obra clássica sobre o tema, “História da Educação Pública”, Lorenzo Luzuriaga aponta quatro diferentes perfis dela que se sucedem historicamente: a educação pública religiosa, a estatal, a nacional e a democrática. Enquanto a primeira, que vicejou entre os séculos dezesseis e dezessete tendo por base a Reforma Protestante, tinha como objetivo explicito a formação do bom cristão através da disseminação da alfabetização para a leitura da Bíblia na língua nativa — apresentando já, portanto, um caráter nacionalista —, a segunda, que floresceu durante o século dezoito baseada nos ideais do Iluminismo visava à formação do súdito, tanto o militar quanto o funcionário; marcada que era pelo despotismo esclarecido, constituía-se numa educação autoritária, de caráter disciplinar, mas também intelectual. Agrandeviradaquemarcaagênesedainstruçãopúblicaquenosinteressamaisdepertoacontece,segundoesseautor,aindanoséculodezoito,estendendo-setambémpeloseguinte;aRevoluçãoFrancesaéagrandedesencadeadoradoterceirotipodeeducaçãopública,anacional,quetemporobjetivoaformaçãodocidadão,constituindo-senumainstruçãocívicaepatrióticadoindivíduo,comumcaráterpopular,elementareprimário.Oquartoeúltimotipo,aeducaçãopúblicademocráticaé,aindadeacordocomLuzuriaga, o desenvolvimento natural da anterior, marcada pelo crescimento da participação popular nas tomadas de decisão, processo que se estende do século dezenove ao vinte. Esse quarto e último tipo de educação pública teria por meta a formação do homem completo, independentemente de sua posição econômica; apresenta um caráter humanizador e aculturador, procurando levar um maior nível ao maior número de homens possível. Através desse brevíssimo esboço, podemos perceber que a origem da instrução pública repousa no movimento de Reforma Protestante, tendo em Martinho Lutero um dos seus principais expoentes. Ainda que religiosa — a escola como lugar da “guerra contra o demônio” — a educação pública preconizada por Lutero já mostra preocupações sociais, como a necessidade de instruçãoparaaprovisãodedeterminadosprofissionais que não podem ser formados na mais completa ignorância. Obviamente, essa escola mantém fortes interesses classistas, pois não seriam os mais humildes homens do povo que tornar-se-iam jurisconsultos, médicos, professores, párocos... A eles bastaria os rudimentos da leitura para o contato purificador e pacificador com as escrituras. Esseperfilclassistaepoucodemocráticodaeducação pública incipiente perdura por um bom tempo. Na Alemanha, por exemplo, em fins do século dezessete, o sistema de ensino previa três níveis de escolas: a. escolas primárias: de caráter estritamente religioso, eram destinadas ao povo em geral e as aulas eram ministradas em alemão;

b. escolas latinas (ou secundárias): de caráter humanista, eram destinadas aos burgueses, com aulas em latim;

c. escolas superiores (universidades): de caráter profissional e eclesiástico, baseadas na religião reformada.

Essa necessidade de uma educação que abrangesse a totalidade da população, obedecendo, porém, às especificidades de cada classe social foi defendida também por aquele que foi, quiçá, o maior teórico da educação no período, o morávio Jan Amós Comenius. ComoprocessodesecularizaçãodoEstadoeformaçãodosEstados-naçõeseuropeus,aeducaçãopúblicareligiosaganhacadavezmaisoscontornosdeumaeducaçãoestatal;comooEstadocomeçaaregulamentareaexigirapresençadascrianças—emesmoadultos — nas escolas, começa também a delinear o aparelho educativo de acordo com seus interesses próprios. A influência do Estado na educação cresce principalmente na Alemanha, de certo modo ainda sob influência de Lutero e de suas escolas dominicais, esse profundo esforço de alfabetização popular para acelerar sua conversão, ainda que se distanciando sensivelmente do projeto pedagógico-religioso do monge protestante.SoboreinadodedoisFredericos,osKaisers Frederico Guilherme I e Frederico Guilherme II, implementa-se um sistema estatal de ensino, com vistas à formação de competentes soldados e bons súditos, que seriam os pilares de um Estado prussiano forte e engrandecido. Esse sistema germânico já preconizava a laicização da escola, paralelamente a sua obrigatoriedade: “todo pai tem o dever de mandar seu filho à escola”. Se o primeiro Frederico aproveita-se da estrutura dasescolasreligiosas,reformando-asaseumodoatravés de sucessivas leis de ensino, seu sucessor, Frederico Guilherme II, vai promover a total secularização da escola, tornando-a plenamente estatal, embora não abandone o ensino de religião, agora porém submetido aos interesses do Estado. Também, em França, cuja educação estava principalmente em mãos de congregações religiosas, dos jesuítas em especial, a educação estatal começa a ser alvo de significativos esforços governamentais, ainda no século dezoito, impulsionada pelos ideais iluministas, pleiteada por pensadores de vulto, como Voltaire ou Diderot, por exemplo. Paralelamente à implementação de um sistema estatal de ensino que tornasse a educação parte da esfera pública e não apenas da privada, mas afastandose dos interesses unicamente religiosos, desenvolviase a discussão em torno da necessidade de desenvolverse um ensino nacional, que tivesse por finalidade gerar na população o sentimento do civismo e do patriotismo, possibilitando a consolidação do Estado-nação através de laços mais fortes que os estritamente políticos. Tambémessadiscussãoéfomentadaealimentadapelos filósofos iluministas; mas mesmo Rousseau, um outsider do Iluminismo, mostrando o caráter da época, anuncia, em suas “Considerações Sobre o Governo da Polônia” que só um povo livre pode ter uma educação nacional, ao mesmo tempo em que é ela própria quem garante a liberdade deste povo. A conjunção desses dois processos — progressiva ingerência do Estado nas questões de educação e constituição de uma educação cívica que desenvolvesse osensodenacionalidade—éagranderesponsávelpelos primitivosdelineamentosdosistemadeensinopúblicoqueperduraaténossosdias.Suagênesedá-seemfinsdoséculodezoito,comaRevoluçãoFrancesa;nessemomentohistóricoepolítico,aeducaçãoestataldodespotismoesclarecidoiluministabaseadonaformaçãodobomsúditodoEstadoperdearazãodeser,tomandoseulugaranecessidadedepreparar,atravésdainstruçãopública,ocidadão,aquelequedeveparticiparativamentedavidadesuanação.SeaeducaçãopúblicaestatalnasciacomoresultadodoprocessodesecularizaçãodoEstado,essanovamodalidadeaparececomoresultadodesuaprogressivademocratização. Nãopodemosimaginar,entretanto,queesseprocessoémecânicoesimples;aocontrário,éresultadodetumultuadasdiscussõesereivindicaçõesquepermearamosdiversosmomentospolíticosdaRevoluçãoFrancesa.Estãojápresentescomoqueixaspopulares(doTerceiroEstado)nos“CahiersdeDoléances”osregistrosdasqueixasdirigidasaosEstadosGerais.ComomostraAntoineLéon,muitasreclamaçõeseramdirigidascontraainstruçãoeminentementereligiosaoferecidaaoscamponeses,emboraalgunsdosredatoresjulgassemoportunaessasituação,pois“aignorânciadessaordembaixaénãosomenteútil,comonecessária,parapreenchereproveratodosasnecessidadesdasociedade...”2 Esses“Cahiers”sãoextremamenteheterogêneos,porumladodevidoàsdiferençasregionaise,poroutro,devidoàprópriaconstituiçãodoTerceiroEstado,compostoportodaasociedadefrancesacomexceçãodanobrezaedoclero:dosburguesesalijadosdosdireitospolíticosaosdespossuídosdetodaordem.Assim,sãomúltiplasasqueixasemuitasasexigências,dasmaisdiversasordens.DuranteoprocessodaRevolução,essasquestõesvãoserexaustivamenteexaminadasetraba-lhadas,comasdiscussõessendoembaladasdeacordocomomomentopolítico;muitasposiçõessãoassumidaseabandonadas,noprocessodecriaçãodeumsistemaestatalenacionaldeensinoquesecoloquedeacordocomospreceitosda“DeclaraçãoUniversaldosDireitosdoHomemedoCidadão”,adotadapelaAssembléiaConstituinteem26deagostode1789. Na Assembléia Constituinte, Mirabeau e Talleyrand foram as figuras que mais se destacaram em matéria de educação; o segundo chegou a redigir um “Relatório e Projeto de Decreto”, que apresentou à Assembléia em 1791 e onde sistematiza suas idéias sobre a educação e como a Revolução deve caminhar nesse aspecto específico. Segundo ele, a nova Constituição — que institui uma nova sociedade — exige um novo sistema de educação, uma educação que seja a garantia da liberdade, pois “os homens declaram-se livres; não se sabe,porém,queainstruçãoampliasemcessaraesfera da liberdade civil, e só ela pode sustentar a liberdade política contra todas as espécies de despotismo?”3 A educação é, ainda, vista como a possibilidade da igualdade de fato. Se o relatório de Talleyrand toca em pontos importantes para a consolidação da instrução pública, como sua necessária universalidade nos mais diversos aspectos, a garantia da liberdade e da igualdade etc., deixa de tocar em um ponto fundamental, a obrigatoriedade deste ensino. Dada a intransigente defesadaliberdade,aobrigatoriedadedoensinotambém não estaria presente no próximo relatório sobre a educação, desta vez apresentado por Condorcet, em 1792, já a uma nova instância da Revolução, a Assembléia Legislativa. Condorcet inicia seu relatório definindo já o caráter da educação revolucionária: sua publicização, sua universalidade, sua capacidade de promover a igualdade. Mesmo não impondo a obrigatoriedade do ensino, Condorcet está preocupado com sua abrangência, e procura instituir a gratuidade, pelo menos em alguns níveis, como forma de fomentar a maior assiduidade possível do maior número de cidadãos; se a Constituição já previa a gratuidade do primeiro dos quatro níveis da instrução, propõe ele que essa gratuidade seja estendida para todos os níveis, como formade,aogarantirodesenvolvimentodashabilidades dos mais pobres, possibilitar à nação uma maior prosperidade. Semnosaprofundarmosnosmeandrospolítico-sociaisdesteprocessodeconstruçãodosistemapúblicodeensinoemFrança,éimportanteressaltarque,seaRevoluçãoFrancesanãochegapropriamenteainstalarumsistemapúblicodeensinoemsuacompletude,forneceasbasespolíticasesociais,teóricasepráticasparaqueeleseconsolideaolongodoséculodezenoveemtodaaEuropa.NaperspectivadeLuzuriaga,éessesistemadeensinonacionalqueevoluiparaoatualsistemadeinstruçãopúblicaqueconhecemosnoséculovinteeaoqualeledenominademocrático,porcontem-plar,alémdetodasascaracterísticasjácitadas,agratuidade,oquepossibilitasuaextensãoatodasascamadasdapopulação,independentedesuasrendasespecíficas. Esses tópicos representam a base do projeto liberal de educação, com seus principais cânones, a defesa da educação como meio de ascensão social e fonte de igualdade, motor do progresso individual e da humanidade e base do civismo. Além disso, tanto o verve relatórioTalleyrandquantoodeCondorcetdefendiamauniversalidadedoensino,emboraoprimeirofalassenelareferindo-seaoconteúdodainstruçãoeosegundo,pensandoemsuaclientela.Nestaperspectiva,édeextremaimportânciaquepercebamososobjetivosimplícitosdapublicizaçãodoensino.OpróprioCondorcet,aomesmotempoemquepropunhaagratuidadeemtodososníveisdainstrução,estabeleciatambémseuestritocontrolepeloEstado,emdoisníveis:primeiro,fazendoaseleção,contrataçãoealocaçãodosprofessorese,segundo,indicandooslivrosemateriaispedagógicosaseremutilizados.Seissovisaagarantirauniversalidadeeuniformidadedoensinoemtodaanação,temtambémocaráterimplícitodocontroleideológico:oEstadonãoabremãodeescolheredeterminarquemvaitrabalhar,ondevaitrabalhar,com o que vai trabalhar e como vai realizar esse trabalho. Considerações sobre a relação Estado e Educação no Brasil As relações do Estado com a educação no Brasil são por vezes obscuras e freqüentemente ambíguas. Sem dúvida,aprincipalquestãoqueperpassaessasrelações é a da publicização ou privatização do ensino, que hoje encontra eco nas propostas que se auto-intitulam “neoliberais” e advogam a desestatização das escolas, abrindo-as plenamente à iniciativa privada. As contradições deste neoliberalismo são apontadas e suas considerações desmontadas, tanto pelo aspecto teórico quanto pelo prático, na exposição que Demerval Saviani realizou durante a 6ª Conferência Brasileira de Educação, intitulada “Neoliberalismo ou pósliberalismo? Educação pública, crise do Estado e democracia na América Latina”. Após demonstrar que, tanto histórica quanto conceitualmente, a educação pública é a regra geral do liberalismo, considerando-se que o Estado deve ser o seu organizador e o seu gestor, o educador conclui que, longe de ser neoliberal e moderna, essas posições hoje apregoadas melhor se caracterizariam pelos epítetos “pós-liberal” e “pósmoderna”, com toda a carga de ambigüidades e dissolução conceitual que eles acarretam. Essa discussão entre nós não é, entretanto, nova. Ela permeia toda a história da educação no Brasil, da colônia até nossos dias. Para situá-lo brevemente na tentativa de sua compreensão, tomaremos alguns momentos básicos onde ela aparece de forma mais explícita. O primeiro momento que nos chama a atenção é, ainda durante o período colonial, aquele das reformas pombalinas, aguçando as rivalidades entre o Estado português e a Igreja, particularmente os jesuítas, na segunda metade do século dezoito. Sabemos da importância dos jesuítas para o estabelecimento de um sistema de educação no Brasil. Chegados ao país meio século após seu descobrimento e umadécadaapósafundaçãodesuaCompanhiadeJesus, esses padres tinham a função original de converter os índios, levando a eles a fé cristã. Entretanto, a vocação jesuítica para a educação que se cristalizaria teoricamente no famoso “Ratio atque Instituto Studiorum Societas Jesu”, promulgado definitivamente em 1599 e na prática nas escolas de todos os níveis que estavam criando em várias partes do mundo, fez com que eles se dedicassem, também no Brasil, à educação em geral e não apenas à catequização dos índios. O primeiro colégio jesuíta no Brasil foi fundado ainda em 1550, apenas um ano após sua chegada, na então sede do governo, a capitania da Bahia. A este, vários se seguiram, oferecendo cursos dos níveis mais elementares até o superior, com o ensino de Artes, Humanidades e Teologia, principalmente. Com a consolidação destas escolas, os jesuítas começaram a reivindicar a extensão dos privilégios das escolas da metrópoleparaasdacolônia.Nossucessivosdebatesqueseseguiramnabuscadoreconhecimentodestescursos,umaquestãofoiimportanteparaadelimitaçãodoslimitesdopúblicoedoprivadonaeducaçãobrasileira,aquelaqueficouconhecidahistoricamentecomoa“questãodosmoçospardos”,postoqueessesseviramimpedidosdeestudarnoColégiodaBahia. Vencidasessasdificuldades,asescolasjesuítasflorescerame,semexagero,dominaramplenamenteaeducaçãocolonialatéasegundametadedoséculodezoito,quandoprincipiaoassimchamadoperíodopombalino,dadaaaçãopolíticadoMarquêsdePombalemPortugal,quetevenaexpulsãodaCompanhiadeJesusumadesuasaçõescentrais.SãoconhecidososmotivoseosatosdePombalemsuatentativademodernizaçãoeindustrializaçãodePortugal;deter-nos-emosaquiapenasnosefeitosdaexpulsãodosjesuítasparaosistemadeensinobrasileiro. Asaídadosjesuítasdacolôniasignificariaacompleta desarticulação do sistema educacional escolar; sem jesuítas, não haveria escolas no Brasil. O Estado metropolitano, aberto que estava para a modernidade européia, incorpora partes de discursos sobre a ação do Estado na educação e resolve ocupar o vácuo que seria deixado com a saída dos jesuítas, pelo menos no que diz respeito ao controle e gestão administrativa do sistema escolar. Tal ação do Estado dá-se, primordialmente, através do “Alvará Régio de 28 de junho de 1759, em que se extinguem todas as Escolas reguladas pelo método dos jesuítas e se estabelece um novo regime. Diretor dos Estudos, Professores de Gramática Latina, de Grego e Retórica”. Esse documento oficial, ao decretar fechadas todas as escolas jesuíticas no território colonial, faz uma dura crítica ao método do “Ratio Studiorum”. Feitas as críticas e extintas as escolas, cabe à Coroa que instale um novo sistema de ensino, e é exatamente essa a linha pela qual segue o mesmo “Alvará Régio”. Comumaaçãointensiva,oEstadoportuguêsassumedefinitivamenteocontroledaeducaçãocolonial.Acriaçãodafigurado“DiretordosEstudos”deixabemclara,nomesmo“Alvará”,aintençãodaCoroadeuniformizaraeducaçãonaColôniaefiscalizaraaçãodosprofessores—desdejáporelanomeados—domaterialdidáticoporelesutilizado—tambémdevidamente“recomendado”nomesmodocumento—demodoaquenãohouvessechoquedeinteresses—istoé,quenãohouvessenenhumoutropoder,comoeraodosjesuítas,aafrontarasdeterminaçõesdaCoroa. FoidequasetrintaanosotempodequeoEstadoportuguêsnecessitouparaassumirocontrolepedagógicodaeducaçãoaseroferecidaemterrasbrasileiras;dacompletaexpulsãodosjesuítasedodesmantelamentosistemáticodeseuaparelhoeducacional,dosmétodosaosmateriaisdidáticos,atéanomeaçãodeumDiretorGeraldosEstudosquedeveria,emnomedoRei,nomearprofessoresefiscalizarsuaação.AeducaçãonoBrasilpassaaserumaquestãodeEstado.DesnecessáriofrisarqueestesistemadeensinocuidadopeloEstadoserviaaunspoucos,emsuaimensamaioria,filhosdasincipienteselitescoloniais. Um segundo momento importante para a compreensão das relações Estado versus Educação no Brasil é novamente um período de rupturas políticas e sócio-culturais. Após o grande impacto das reformas pombalinas, é quando o Brasil declara sua independência política de Portugal que a educação novamente é lançada para a linha de frente das discussões. Tratava-seagoradanecessidadedaformaçãodequadros administrativos, da constituição de uma nova elite burocrática que substituísse a administração lusitana. Tal preocupação do agora estado imperial brasileiro acabaria por consolidar como sua principal realização a Academia de Direito do Largo de São Francisco, após intensos debates parlamentares que delinearam os contornos do projeto. O Estado, obviamente, tomou as devidas precauções para o controle do ensino oferecido pela Academia. LuísAntônioCunhaapontaquenesseperíodo,emquepeseoprocessolargamentedifundidoanívelmundialdepublicizaçãoesecularizaçãodoensino,noBrasilaeducaçãoprosseguiasobinfluênciadareligião,dadaaaliançaconstitucionaldaIgrejaCatólicacomoEstado.Alinhageraleraadaregulamentaçãodoensinoestatal,deixandooaparelhoparticular—quecomasaídadosjesuítasperdeuquaseatotalidadedesuaimportância—funcionandoporsuaprópriacontaeordem.Oensinoestatal,porsuavez,estavadivididoemduasesferas:anacionaleaprovincial.Anacionaleraresponsávelpelosníveisprimárioesecundário,nacorte,epelonívelsuperioremtodoopaís;jáaprovincialrespondiapelosníveisprimárioesecundárionasprovíncias. Vemos, assim, que o ensino estatal brasileiro ficava circunscrito quase que apenas ao ensino superior, embora sua influência se estendesse aos demais níveis, dada a necessidade de seleção para o ingresso em sua escolas. Tal fato gerou diversos manifestos e movimentos em nome da liberdade de ensino, no qual os representante das escolas particulares reivindicavam a não regulamentação pelo Estado, discussão que arrastou-se sem maiores conseqüências práticas por longotempo.Destemodo,aeducaçãoestatalcontinuava atendendo a uma minoria, ainda bastante longe dos ideais de publicização, gratuidade e obrigatoriedade do ensino básico que já grassavam pela Europa. A preocupação com a publicização do ensino básico vai disseminar-se em um terceiro momento, o do advento da república. Embalado que foi pelos ventos de “modernidade” europeus, de cunho eminentemente positivista, o ideário republicano incorporou a defesa do ensino básico como responsabilidade do Estado. Certamente mais por ver no Estado o promotor necessário da ordem social que seria o único caminho para o progresso do que por julgar que fosse esse um direito básico do cidadão; republicanos liberais e esclarecidos, entretanto, como foi o caso de Caetano de Campos que exerceu importante ação na educação pública em São Paulo. defendia o caráter humanitário ecívicodaeducaçãopública,afiladocomosdebatesque já um século antes animaram as Assembléias durante a Revolução Francesa. Aaplicaçãodoideárioliberal-positivistadosrepubli-canosbrasileirospassavaporumasólidaaçãodoEstadonocampoeducacional;entretanto,seriaumcontra-sensoinibirouproibiraaçãodeparticularesnaeduca-ção.AaçãodoEstadojustificava-se,porém,dadaainsuficiênciadosesforçosprivadosparasuprirtodaademandaporescolasdapopulação.OEstadodeveriareservar-se,poroutrolado,odireitodefiscalizaçãosobreasescolas,paragarantirumaaçãodidático-pedagógicaeficaz,tantonasescolassobatutelaquantonasescolasmantidaspelainiciativaprivada. Não podemos imaginar, porém, que esse período que acabaria sendo caracterizado pelos historiadores da educação como o de “entusiasmo pela educação” foi marcado apenas e tão somente por uma efetiva e direta ação do Estado na educação, o que essa ação se deu de modo “desinteressado” e sem pressões populares. Por trás do “entusiasmo” republicano, embalado pelo positivismo e pelos ideais da burguesia esclarecida européia que viam na educação o caminho da civilidade e da cidadania, estavam as pressões e reivindicações populares, que apareceriam cristalizadas nos discursos e publicações do incipiente movimento operário brasileiro, fruto dos primeiros esforços de industrializaçãodopaís. Fundamentais para esse processo e exemplos sintomáticos das reações populares mais esclarecidas à ação governamental no âmbito educacional fora as ações dos socialistas na virada do século e dos comunistas a partir da década de vinte; o hiato de duas décadas foi preenchido por uma ação hegemonicamente anarquista no movimento operário brasileiro que, como temos visto, pauta-se por um afastamento tático e metodológicodoEstado,inclusivenaquestãoeducacional. Os socialistas parecem partilhar com os liberais positivistasseu“entusiasmopelaeducação”;osmotivos, porém, são outros. Se os primeiros vêem na educação o caminho da construção da cidadania, da participação política numa sociedade liberal que é marcada pela diferença de classes, embora a “igualdade de oportunidades” seja tomada por princípio, os outros a têm como um veículo necessário para a tomada de consciência destas diferenças sociais e a conseqüente opção por sua transformação. Enquanto os liberais querem com a educação preparar pessoas que possam bem servir à comunidade e tomam o Estado como seu necessário organizador e controlador, os socialistas exigem do Estado que o dinheiro arrecadado com os impostos seja revertido em benefícios básicos para a população em geral, especialmente para os menos favorecidos, sendo a educação um desses benefícios. OquefazemossocialistasélevaraoextremoaconcepçãodeEstadodosliberais,cobrandosuacoerênciaeconsistência.SeoEstadotemafunçãodeadministrarcomjustiçaosesforçossociais,garantindoaigualdadedeoportunidadesealiberdadedeação,devenecessariamentegarantiraeducaçãopública,laicaegratuitaparatodosenãoparaalgunsprivilegiadosapenas.Esteéomotedodiscursosocialista,queapareceemdiversosartigospublicadosnaimprensaoperária. Areivindicaçãodaeducaçãopúblicabásica,nãoapenasparaascrianças,mastambémparaostrabalhadoresdesejososdeinstrução,apareceprimeira-mentecomoumatentativademinorarasituaçãodemisériaepenúriadaclasseoperária,oqueéexigirnadamaisnadamenosdoqueaefetivaaçãodoEstadoliberalrepublicanonocumprimentodosseusprincípios.Numsegundomomento,porém,ocarátereminentemente político e contestatório da reivindicação educacional socialista fica claro, mostrando a extremização dos princípios liberais, que levariam à dissolução mesma desta sociedade. A hegemonia anarquista no movimento operário brasileiro durante as duas primeiras décadas deste século, se significou um importante avanço para a instrução da classe trabalhadora significou, também, um retrocesso nas reivindicações operárias e populares por um ensino público a cargo do Estado. Tais reivindicações voltariam a ganhar força no cenário político na década de vinte, após a fundação do PCB em 1922; partindo da divulgação dos avanços da educação na União Soviética e de seus novos métodos de ensino popular, os comunistas chegaram à formulação de uma política nacional de educação. OprocessodeimplantaçãosistemáticadaescolapúblicanoBrasilapareceentãocomoresultadodereivindicaçõesoposicionistaseaçõessituacionistasque,partindodepressupostoseobjetivosdíspares,concordamcomanecessidadedeconsolidaçãodeumaparelhoestataldeensino.Talprocessonãoésimplesnemtampoucohomogêneo;asaçõesdoEstadoflutuamaosabordomomentopolítico.Emmomentosdeditadura,comoasdoEstadoNovoeamaisrecente,doRegimeMilitar,vemosaçõesincisivasdoEstadonosentidodereformaraeducaçãoparapossibilitarumcontrolemaioremaisprofícuo;emoutrosmomentos,governosdeorientaçãoumpoucomaisprogressistaagemnosentidodebuscarumamaiordemocratizaçãodoensino,oquenemsempresurteosefeitosdesejados. No período mais recente de nossa história, as contradições ganham vulto: se do processo de democratização da sociedade parece aos poucos surgir também uma escola mais democrática, aqueles que fazem plantão na defesa de um suposto neo-liberalismo advogam uma ingerência cada vez menor do Estado na educação, abrindo-a paulatinamente à exploração pela iniciativa privada. Acontece que muitas vezes esses neoliberais, quase inimigos do Estado, tomam-no de assalto — não para destruí-lo, realizando o velho sonho anarquista, mas supostamente des-regulamentar a sociedade, tornando-a mais livre—eem lugar de desenvolver políticas públicas no campo da educação cuidam de desmantelar e sucatar o pouco que existe. Essa tensão entre o público e o privado na educação brasileira atravessa toda a república e permanece na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. Fala-se agora em duas modalidadesdeescolas:aspúblicaseasprivadas,sendo que essas últimas se subdividem em lucrativas e não lucrativas. As não lucrativas, por sua vez, podem ser comunitárias ou confessionais. Essa distinção entre as modalidades das escolas privadas tem o objetivo claro de permitir a alocação de recursos públicos para entidades privadas que trabalhem com a educação. Seria um absurdo que o Estado injetasse recursos públicos numa iniciativa privada funcionando no contexto do mercado e apta, portantoaauferirlucrosdestaatividade;poroutrolado, se a escola, mesmo sendo gerida pela iniciativa privada não se coloca o lucro como fim último, mas sim uma atuação no sentido da promoção do indivíduo e da sociedade, que mal haveria em ela receber uma contribuição dos cofres públicos para a realização desta atividade comunitária ou mesmo filantrópica? Asescolasditasconfessionais,ouseja,ligadasauma congregação religiosa, têm o impedimento teórico de visar ao lucro; outras instituições de caráter “filantrópico” também não teriam nele sua razão de ser; é verdade, entretanto, que poucas são as escolas privadas que não se encaixariam em nenhuma dessas modalidades constitucionalmente previstas, se nos afastamos do âmbito da educação infantil pré-escolar, onde elas dominam, posto que só mais recentemente a ação do Estado tem se intensificado nesse nível de ensino, através das EMEIs — Escolas Municipais de EducaçãoInfantil. Aaçãodosdefensoresdasescolasprivadasébastanteclara:desqualificaroensinopúblico,impondoaqueleoferecidonainiciativaprivadacomopadrãodequalidade. Nãopodemospensar,entretanto,queesseprocessoaconteceàreveliadoEstado.Nasúltimasdécadas,temosassistidoaumaaçãodoEstadonaáreadaeducaçãoque,veladamenteesemgrandesalardes,tempactuadocom osucateamentodosistemapúblicodeensinoeabertoespaçosparaaatuaçãodainiciativaprivada.ComesseprocessooEstadoexime-secadavezmaisdesuasrespon-sabilidadescomaeducação,emboraelasejaumafiguraconstitucional.Areflexãopareceseraseguinte:setemosumensinoprivadodeumaqualidadetalqueainiciativapública—burocratizadaeineficiente—nãotemmesmocomoacompanhar,porquenãooficializaraeducaçãocomoesferaprimordialmenteprivada? Asconseqüênciasdestasações,sejamdoEstado,sejamdegruposprivatistasporeletoleradas—eatéestimuladas,emalgunscasos—sentimosatéhoje,estejamelasaindaemvigorounão.Éverdadequecomaredemocratizaçãodopaísapartirdosanosoitentatemosvistodiversasadministraçõesmunicipaiseestaduaisprogressistascomprometidascomaqualidadedoensinopúblico;osresultadoseficazesdestasadministrações,entretanto,nãosetêmfeitosentircomaintensidadedesejada. Osadministradoreseeducadoresprogressistasnessaincipientedemocraciaacabamporservítimasdomesmoinstrumentoqueoslevaaopoderepossibilitasuaação:ovoto.Umaaçãosérianocampodaeducação,traduzidanamelhoriadossaláriosecondiçãodetrabalhodosprofessoresenamelhoriadascondiçõesequalidadedeensinonãosãosentidassenãoamédioelongoprazo;nãotrazem,poisresultadosimediatosaoníveldevotosnumapróximaeleição.Jáaconstruçãodeprédios—lembremosdosCIEPsedosCIACs—se

verve não traz efetivas contribuições para a melhoria da qualidade do ensino, é muito mais visível para os eleitores e portanto fonte mais segura de votos. A questão das relações do Estado com a educação no Brasilestá,pois,muitolongedeencontrarumasolução. Por uma educação pública não estatal Quando falamos em educaçãopública, pensamos, de forma quase que imediata, em educação fornecida pelo Estado, como se entre as duas expressões houvesse um laço, invisível e indissolúvel; mas será que conceitualmente podemos reduzir a educação pública apenas àquela fornecida pelo Estado? NummovimentoqueganhoumaisênfaseduranteasdiscussõesquenortearamaredaçãodaConstituiçãoFederalpromulgadaem1988equeseagitounovamenteemtornodasdiscussõessobreaLeideDiretrizeseBasesdaEducaçãoNacional,aprovadaemdezembrode1996,algunsgrupos—bastanteheterogêneosemsuacomposição—defenderametêmdefendidoatravésdeseuspoderososlobbiesqueaeducaçãopúblicanãopodeserresumidaàeducaçãoestatal,masenglobariaaindaoutrasmodalidadesdeensino.Umexemplotípicoseriaaparceladasescolasconfessionaisquedefendemparasiprópriasoepítetodeescolascomunitárias,porpautarem-seemreaisinteressessociais—calcadosnachamada“opçãopreferencialpelospobres”daIgrejaLatino-americana—enãoemmerosinteressesfinan-ceiroseempresariais,comoasescolasprivadaspropria-menteditas. À parte dos verdadeiros e honestos interesses sociais destas escolas, que em alguns dos casos realmente existem, não podemos deixar de explicitar que por trás desta simpática autodenominação passa, sorrateiramente, o interesse de conseguir acesso às verbas que o poder público destina à educação que, se não são no montante que seria minimamente desejável para suprir nossas necessidades, também estão muito longe de serem desprezíveis. Assim, as ditas escolas comunitárias também receberiam verbas estatais que, a princípio, deveriam ser encaminhadas apenas e tão somente àquelas escolas cuja manutenção e gerência é função direta do Estado. Para a questão que é de nosso interesse e deixando de lado o juízo ético-político sobre essas escolas comunitárias, essa sua ação (ou seu discurso, pelo menos) é importante e profícua, pois coloca em xeque a exclusividade do Estado em oferecer uma educação que seja pública, isto é, voltada para todos e para os interesses comuns. Se outros grupos sociais e/ou instituições também podem desenvolver um processo educacional público, será mesmo necessária essa onipresente e onipotente mediação do Estado? Hoje vemos a educação, antes de tudo, como uma função do Estado, assim como a saúde; a iniciativa particular, no caso da educação, deve funcionar apenas nonívelcomplementaroudeescolhaideológicadospais. Esta escolha é, porém, bastante limitada, pois os currículos, atividades etc. são todos definidos, regulamentados e fiscalizados pelo Estado.4 Mas por que é precisamente esta a visão socialmente dominante entre nós? SeestudamosaquestãoconceitualdoEstadomodernoeagênesedainstruçãopública,ficaclaroqueaeducaçãocomofunçãodoEstadoéumfenômenohistórico,bemdefinidoebemcaracterizado;podemosprecisarcomo,quandoeporquesurgiu,comosedesenvolveu,comosedáofuncionamentodosvínculoscomoEstado,aqueinteresseselaesteveeestávinculada,quaisforamseussucessoseseusfracassoseporqueelessederam. Uma das funções determinantes na gênese histórica da instrução pública, talvez mesmo a mais importante, foi a da promoção da nacionalidade. Em um contexto bemespecíficodaEuropadaépoca,tratava-sedeincutir napopulaçãoumsentimentocívicodenacionalidadequefortalecesseoslaçoseminentementepolíticosquepossibilitavamaconstituiçãodosEstadosnacionais.Umapopulaçãolargamenteignorantequepoucoounadaconseguiaenxergaralémdesuaestreitíssimaesferasocialprecisavavercresceremsimesmaumsensodeabrangênciaquasequeimpensável:camponesesquenadaconheciamalémdasterrasemquetrabalhavamedaspoucaspessoascomquemtinhamcontato,aldeõesquemuitoraramenteconseguiamultrapassaroslimitesdavilaprecisavam,derepente,conseguirintuirlimitesgeográfico-territoriaisepopulacionaismuitoalémdesuascapacidades,parapoderabarcaremsioconceitodenaçãoeodenacionalidade.Aconceituação,porém,nãoeraobastante:eraprecisocriarlaçosafetivos;oindivíduoprecisariasentir-separteintegrantedanaçãoparadefendê-la,seprecisoatécomaprópriavida.Semdúvidaalguma,acriaçãodelaçossociais,profundamenteentranhadosnosindivíduos,criariauma“amarração”muitomaisforte.PodemosaquitraçarumaanalogiacomateoriadopoderdeLaBoétie:quantomaisdisseminadoentreosindivíduososentidodanacionalidade,maisfortetorna-seaNaçãomesma. Nestecontexto,urgiaqueaquelesindivíduos,emsua maioria iletrados e ignorantes, desenvolvessem uma maior capacidade de abstração e conceituação, o que só seria possível através da instrução, à qual eles só poderiam ter acesso caso as condições fossem enormemente facilitadas. A educação pública tinha, pois, no momento de sua origem, uma função política específica e importante a cumprir — significava a manutenção e o crescimento do próprio Estado — além de, é claro, acalmar os ânimos das massas que reivindicavam melhores condições sociais de vida. O processo que acontece tardiamente no Brasil é análogo a este, embora mudem bastante as especificidades; a importação das idéias, porém, tanto do lado dos trabalhadores, cada vez mais influenciados pelo crescentefluxodeimigraçãoeuropéiaquetraziaparacáas“visõesdamodernidade”,quantodoladodosrepublicanosque,profundamenteembebidospelopositivismoeuropeu,vislumbravamumdestinode“ordemeprogresso”ondeaeducaçãoépeça-chave,garanteaimplantaçãodenossosistemadeinstruçãopública,muitoemboraosinteressesdoEstadosejamoutros. Voltando ao momento presente, não são poucos os que afirmam que o país vive hoje uma crise de nacionalidade, e que urge que despertemos o sentimento cívico napopulação.Acampanhaganhaamídiadeformanada subliminar, mas intensamente: a grande imprensa, o rádio e a televisão pululam de discursos cívicos e nacionalistas; não bastando isso, novelas começaram, nos últimos anos, a tratar o tema e até mesmo o marketing assume uma feição cívica, com o nacionalismo sendo usado para vender de sabonetes a serviços bancários. Numa outra face da moeda, empresários abandonam seus interesses privados para assumir, na feição pública, uma imagem de “defensores da pátria”, de preocupados e comprometidos com a situação político-social do país.5 Correndo o risco de sermos crucificados pelos defensores do “pensamento politicamente correto” — essa outra pérola da modernidade! — cabe aqui que enfrentemos o problema com a profundidade conceitual que ele merece. Devemos, pois, colocar a questão: precisamos realmente desse sentimento de nacionalidade? Ou, aprofundando ainda mais: tem algum sentido para nós o nacionalismo? Paraassegurarapretendidaprofundidadedaresposta,faz-seimprescindívelquebusquemosoapoiodafilosofiadaculturanumaobrafundamentaldeGilbertodeMelloKujawski,ACrisedoSéculoXX.Nessaobra,eleanalisaacrisecontemporâneacomo,antesdetudo,acrisedamodernidade,apoiadoumpoucomaisemOrtegayGasseteumpoucomenosemJuliánMarías.Nessaanálise,elenosmostraqueumdosconceitoscânonesdamodernidadeéexatamenteoconceitodeNação,eorteguianamentedemonstraqueasnaçõesnãonascemnemdaunidadelingüísticanemdasfronteirasterritoriaiscomunsmas,aocontrário,queessasduascaracterísticassãodecorrentesdopróprioatoorigináriodeumanação:opactopolítico.Essepactoéumatocotidiano,refeitoerecriadoacadainstante,lançando-se,comoutopia,aofuturo.Apósdemonstrarqueaidéiadenaçãorepresentaumavançoastronômicoemabstração,secomparadacomapolisgregaouaurbsromana,nasquais,dadaalimitaçãonotamanhopopulacionalhaviaumrelacionamentoface-a-faceentreosindivíduose,portanto,umainstituiçãopolíticamaisdireta,eleafirmaqueanação,aocontrário,éaconstituidoradosindivíduos. Para manter essa abstração constituinte dos indivíduos é preciso, porém, que eles a recriem permanentemente através do pacto; a estabilidade temporal de uma nação reside na re-criação contínua, ad infinitum, de sua instabilidade. Daí o fato de a educação ser de suma importância na construção e manutenção de um projeto nacional. Não se constrói uma nação, assim como ela não pode viver, sem o concurso direto de toda a população, e a educação vai justamente criar e animar os laços de civismo que constituirão o orgulho da nacionalidade — algo puramente artificial e abstrato, portanto. Assim, se realmente pretendemos fazer deste país uma nação,6 a educação e a mídia terão importância capital.MaséaquiqueafilosofiadaculturadeKujawski vem em nosso apoio: faz sentido a defesa da construção de um projeto nacional para o Brasil hoje? O que o filósofo orteguiano vai demonstrar é que a América Latina em geral e o Brasil em particular “perderam o bonde da modernidade”; essencialmente, nósnuncafomosmodernos,poisascondiçõeshistóricoculturais de nossa região estiveram sempre muito distantes das condições européias, o palco por excelência da modernidade. Deixando de lado a pluralidade de conceitos que sustentam a modernidade e atendo-nos apenas a um deles, o de nação, podemos afirmar, com toda certeza, que os países latinoamericanos jamais se constituíram em nações como aseuropéias,assimcomoosEstadosUnidosdaAmérica nada mais são do que uma federação de cinqüenta Estados.7Mas,hoje,comacrisedacontemporaneidade,apróprianaçãoestáemcrise;opossíveldesenvolvi-mentopolíticodasatuaisnaçõesdevedar-senosentidodeumasupranacionalidade,comadiluiçãodopoderdosEstados-nações.8 Deste modo, a crise da modernidade não é a nossa crise, assim como a busca de uma nova alternativa política, mais abrangente, para os Estados-nação nãoé, necessariamente a nossa busca. É neste contexto que levamos uma certa vantagem sobre a Europa: por não sermos modernos, é muito mais simples para nós superarmos a crise da modernidade, achar nosso caminho próprio e particular, como também afirmava, partindo de um outro referencial, o francês Félix Guattari, ao explicar que a criatividade européia está morta, e que a esperança da humanidade hoje reside na inventividade do assim chamado Terceiro Mundo.9 Podemos, sem dúvida alguma, engajarmo-nos no projetodeencontraramodernidade,adespeitodoatraso histórico e da busca que se assemelharia a correr atrás de um crepúsculo que a cada instante mais e mais prenuncia o anoitecer, e aí a construção de um projeto nacional será de extrema importância e a educação pública terá seu papel cívico a desempenhar, de forma determinante. Mas qual seria o sentido de buscar uma fórmula histórica que se “desmancha no ar”, parafraseando Marx? Mas, se mais sabiamente, optarmos por dedicarmonos socialmente a um projeto inovador e transformador em sua singularidade, teria então sentido o papel que tradicionalmente se atribui à educação pública? Não deveria ser ela profundamente reformulada, passando a ser construída comunitariamente, com o trabalho e o engajamento responsável dos indivíduos, em consonância com o caminho escolhido que, pensamos, deveria ser o do desenvolvimento de uma nova vivência comunitária, que resgatasse para a ação política a dimensão da ampla participação popular? Fechada esta contextualização histórico-conceitual, podemosretomar,agoramelhoramparados,oproblema da educação pública como função exclusiva do Estado e perguntar: se não existem já as bases históricas que dariam sentido para um amplo sistema de educação pública estatal, o que leva parcelas tão significativamente esclarecidas e engajadas da população a reivindicá-la tão intensamente? Em meio à multiplicidade de sentidos que permeia toda situação concreta, duas circunstâncias aparecem como as principais e determinantes a suscitar tal reivindicação. De um lado, é significativo o fato de a sociedade estar imersa na ideologia liberal, tão competentemente trabalhada e distribuída pela burguesia nos últimos séculos. Essa ideologia liberal está de tal modo entranhada no imaginário social e na consciência individual do homem contemporâneo, que mesmo os críticos do liberalismo acabam por desenvolver, em última análise, um esquema de pensamento que é análogo ao do liberalismo; isto é, não existe um novo paradigma de pensamento, mas variações positivas e negativas de um mesmo paradigma. Sartre argutamente afirmou a mesma coisa em seu QuestãodeMétodo, ao definir o marxismo como a filosofia insuperável de nosso tempo; dizer que enquanto não forem superadas as condições históricosociais que deram origem ao marxismo não surgirá uma nova filosofia, é afirmar que o marxismo, apesar de expor e desmontar a lógica do capital, continua, em última instância, a desenvolver a mesma lógica.10 A lógica implacável do liberalismo instalou em cada um de nós, como corpo social, a idéia de que o Estado é o provedor da sociedade; sem Ele nada somos, sem Ele,

o grande Senhor Civilizador, somos feito bárbaros em luta pelo fogo. Assim, acostumamo-nos à cômoda situação de termos um “indivíduo coletivo”, superior a nós mas que, no final das contas, é constituído por nós mesmos, que amavelmente assume por nós as nossas responsabilidades,comoadeeducaràsnossascrianças. Não nos debruçaremos aqui sobre os traços psicanalíticos do ser humano que o levam a fugir de suas responsabilidades, de resto já bem explorados por investigadores da psiquê humana como Erich Frömm ou Wilhelm Reich, por exemplo, ou mesmo por filósofos como o próprio Sartre anteriormente citado;11 basta-nos assinalar que, inconscientemente, preferimos deixar por conta do Estado a tarefa de educar do que tomá-la para nós, com todas as responsabilidades que isso significaria.

Deoutrolado,asegundacircunstânciaqueanunciávamosdizrespeitoaofatodeoEstadotertomadogostopelaatividadedaeducação.Semsombradedúvida,

o “indivíduo coletivo” que se exprime na abstração do Estadotomouconsciênciadopoderosoinstrumentoque tão inocentemente foi colocado em suas mãos e, não maquiavelicamente — o que significaria uma ação consciente na perspectiva valorativa —, mas como resultado de sua própria lógica interna, de seu modo de ser, arvora-se em Senhor Civilizador, Pedagogo-Mor das Massas Incultas que, sozinhas, estariam destinadas a perecer.

Em outras palavras, experimentamos dois fatos complementares que se reforçam reciprocamente: os indivíduos fogem à sua responsabilidade deixando a educação a cargo do Estado e passando a exigi-la deste; este, por sua vez, toma gosto pela idéia e não quer mais abandoná-la, fiscalizando mesmo as atividades educacionais que se colocam fora de seu raio de ação ou, pelo menos, tentam construir-se à sua sombra. O fato é que o fenômeno ideológico é muito mais amplo e, portanto, tem uma importância maior do que aquela que deixa antever certo reducionismo marxista. Para além da falsificação do real e da “câmara escura” que inverte a realidade, a ideologia pode e deve ser compreendida, em horizontes menos estreitos, como fenômeno encarnado no cotidiano da existência concreta. Não estamos negando a importância da Ideologia Alemã, que é magistral na análise do fato estrito que ela própria se coloca como objetivo, mas apenas afirmando que outras análises, como as de Max Weber ou as de Wilhelm Reich na Psicologia de Massas do Fascismo, por exemplo, podem nos trazer uma visão muito mais abrangente do fenômeno. Se escaparmos de nossa cegueira habitual, conseguindo ao menos vislumbrar a multiplicidade do real, poderemos entender a importância que a educação assume para o Estado, como os anarquistas, dentro de sua relativa ingenuidade, perceberam e denunciaram já há tanto tempo. SetomamosaideologiacomopartedoaparelhoreprodutordoEstadoedaestruturasocialqueelegerencia,percebemosqueaescolaé,aindahoje,umpoderosoveículoideológiconasmãosdoEstado,emboraestejacadavezmaisperdendoterrenoparaosmeiosdecomunicaçãodemassa.12 Como a educação não acontece apenas no contexto da instituição escolar, não é nenhum absurdo prever que o Estado cada vez mais se utilize da mídia, não só como veículo de informação ideológica, mas também como veículo de educação ideológica, o que já está implícito em alguns projetos de ensino à distância desenvolvidos pelo tecnicismo da década de setenta,13 cujo exemplo mais próximo hoje provavelmente esteja representado nos Telecursos e mesmo nas Telesalas. Deixando de lado os futurismos, hoje a escola ainda é um veículo importante para levar a amplas camadas da população, em idades em que são mais facilmente influenciáveis, a ideologia que o Estado quer ver disseminada entre a população. Alguémpoderiaobjetarque,nocasobrasileiro,odescasoqueoEstadovem,hádécadas,apresentandocomrelaçãoàeducação,refutariaessatese.Entretanto,essesupostodescasodoEstadoétambémumaaçãopolíticaeideológicamuitoclara:oferecerumaeducaçãodebaixaqualidadeoumesmonãooferecervagasemquantidadesuficienteparaatenderàsnecessidadesdapopulaçãomaiscarenteédeixá-las,cadavezmais,àmercêdeumveículomaisdinâmiconadifusãoideológicaemenoscrítico,porserapenasreceptivoque,acadadia,chegaaummaiornúmerodelares,atelevisão.Nãocaiamosaqui,porém,nodiscursodemodédevernatelevisãoa“monstracondenada,afenestrasinistra”,14 pois é óbvio também seu conteúdo positivamenteeducativo,desdequebemutilizado.Ofato é que o aparente descaso do Estado com a educação pública pode mascarar um interesse muito grande em dar ao povo uma ilusão de educação; ainda em meados do século passado, Proudhon afirmava que a educação das massas não passava de rudimentos: “O que querem para o povo não é a instrução; é simplesmente uma primeira iniciação aos rudimentos dos conhecimentos humanos, a inteligência dos signos, uma espécie de sacramento de batismo intelectual, consistente na comunicação da palavra, da escrita, dos números e das figuras, mais algumas fórmulas de religião e de moral. O que lhes importa é que, ao ver estes seres que o trabalho e a mediocridade do salário mantêm em uma barbárie forçada, desfigurados pela fadiga cotidiana, curvados sobre a terra, as naturezas delicadas que constituem a honra e a glória da civilização possam constatar, ao menos, nestes trabalhadores condenados ao penar, o reflexo da alma, a dignidade da consciência e que, por respeito a eles mesmos, não precisem envergonhar-se demais pela humanidade.” 15 Alémdocaráterdedisseminaçãodaideologia,constituindo-senoaparelhodeEstadoquegaranteareproduçãodaprodução,poderíamosagregartambémàimportânciaideológicadaescolaparaoEstadoanoçãoweberianadequeaescolanãoéuminstrumentodedominaçãopropriamentedito,massimuminstrumentodelegitimaçãodadominação. Posto que concordemos, pelo menos em parte, com a importância ideológica da escola para a manutenção da instituição política do Estado e do sistema social que ela suscita, seja no aspecto da disseminação dos conteúdos e formas ideológicas, seja no aspecto da legitimação mesma da dominação, consideramos como absolutamenteinócuas—paranãotaxá-lasdeabsurdas — as discussões que desenvolvem-se no sentido de exigir socialmente a melhoria da qualidade, a maior democratização do sistema público de ensinoeasua atuação para o resgate da cidadania do povo brasileiro. Passaremos a discuti-las, começando pela última, dado seu caráter mais globalizante. Aquestãodaeducaçãocomopromotoradacidadaniaestá,também,intimamenteligadaàgênesehistóricadossistemasdeinstruçãopública.DuranteaRevoluçãoFrancesa,tratava-sedetransformarosúdito,queapenasobedecia,emcidadão,queteriaparticipaçãoefetivanosdestinosdanação;paranós,apósdécadasvivendosobregimespolíticosquepoucoounadarespeitavamosdireitosindividuaisesociais,trata-se,argumentamseusdefensores,deresgatarnapopulaçãoaconsciênciadeseusdireitosedeverespolítico-sociais.Mas,comobelosdiscursospodemperfeitamentemascararpráticassociaisinócuasouatémesmoimpossíveis,cabe-nosperguntar:acidadania,essa“noçãoligadaaostemposheróicos”,16 pode, realmente, ser construída ou mesmo resgatada através da educação? Primeiramente, precisamos colocar com muita clareza o caráter de historicidade do próprio conceito de cidadania; uma coisa era ser cidadão numa polis grega, outra muito diferente era o ser no calor revolucionário da França de fins do século dezoito, assim como outra coisa ainda é ser cidadão na sociedade contemporânea que pretendemos democrática. Procurando na filosofia política contemporânea o sentido da sociedade democrática, Patrice Canivez conclui que ser cidadão nessa sociedade é ser um “governante em potencial”.17 Uma educação para a cidadania na sociedade democrática consistiria, pois, em preparar cada indivíduo para que seja um possível governante dessa sociedade; em outras palavras, formar não indivíduos passivos, mas indivíduos potencialmente ativos, que podem entrar em ação a qualquer momento, de acordo com os desenvolvimentos políticos da sociedade. Esta noção poderia dar sustentação para uma certa visão “militantista”, que procura fazer da escola um local de proselitismo político; nada mais errado, na concepção de Canivez: a escola é o espaço da cultura, e nela a construção da cidadania deve dar-se neste âmbito. Baseada em Eric Weil, mostra que a escola não é o lugar da política, isto é, um espaço de militância, mas é um lugar essencialmente político, pois é nela que se assimila toda a base conceitual necessária para a ação política eficaz. 18 A educação do cidadão deve, pois, circunscrever-se muito mais ao campo da cultura do que ao da política propriamente dito, o que em nada diminui o seu caráter essencialmente político. Para a constituição de uma sociedade democrática, a educação do cidadão deve privilegiar o aprendizado e o exercício do diálogo, base daprópriademocracia. A relação da educação com a cidadania só tem sentido,então,setomadanumaspectobastanterestrito, delimitado pela historicidade da cidadania que ela vai promover; assim, não é o mesmo sistema público de ensino idealizado para produzir a transformação do súdito em cidadão durante a Revolução Francesa que vai produzir o cidadão ativo de uma sociedade democrática contemporânea. Dadas as características desse novo cidadão, seria interesse do Estado financiar um sistema de ensino que o produzisse? Discutiremos essa questão quando abordarmos o aspecto da democratização do ensino público, pois ambas estão muito intimamente relacionadas. Passemos à discussão do primeiro aspecto dos três que havíamos levantado anteriormente, o que diz respeito à reivindicação da melhoria da qualidade do ensino oferecido pelo sistema estatal de educação. Já ficou mais do que claro que o Estado percebe a necessidadedeofereceràsmassasumacertaeducação; sem dúvida, não a escola que queremos, mas a escola que Ele quer, embora na maioria das vezes os mecanismos de convencimento ideológico dos quais falamos funcionem perfeitamente, e sejam mais do que suficientes para garantir que aquilo que nós queremos — ou pensamos querer — seja exatamente aquilo que Ele quer. Assim, a escola pública que temos é a escola pública que o Estado nos quer financiar, seja ela legitimadora da dominação, seja ela o mecanismo distribuidor de um arremedo de educação que mantenha o povo em um estado de semi-ignorância e apatia político-social, pareça isso um descaso do Estado com a educação pública ou não. Areivindicaçãodeumaeducaçãopúblicadequalidade,destemodo,pareceencontrarlimitesmuitoestreitos;enquantoelasignificaroatendimentodeumanecessidadedoEstadoliberaldeproverosistemadeproduçãocomprofissionaistecnicamentemelhorpreparados,podeatéencontrareconosadministradoresdaeducaçãoestataleseratendida,virandomesmopontodepautadosdiscursosoficiais.Irmuitoalémdisso,porém,parece-nosimprovável.Umaeducaçãodequalidade,oquesignificariaproporcionaraoseducandoscondiçõesparaqueassimilemnãosóoconjuntodolegadoculturalhistoricamenteproduzidopelahumanidade,mastambémcondiçõesparaquesetornemmetodologicamenteaptosaproduzirelesmesmososabercientífico,afasta-sedemasiadodeumameracapacitaçãotecnológicaparaumsistemadeproduçãoumpoucomaisdesenvolvido.Ora,nãosejamosingênuos:umaeducaçãodestetipochoca-sefrontalmentecomosinteressesestatais,sejadedisseminaçãoideológica,sejadelegitimaçãodadominação;taleducaçãoimpossibilitariaoobjetivodadominaçãoideológicaedamanutençãodaordemsociale,maisainda,seriaelaprópriaumasubversãodessaordem,poiscolocariaemxequeosistemadeexploraçãoedistribuiçãodesigualdaproduçãosocial.Destemodo,seriaparadoxalesperardoEstadoumaeducaçãopúblicadequalidade,obviamentetomandoporprincípioqueadistribuiçãodessaeducaçãofossejusta,alcançandoamplascamadasdasociedadeenãoapenasumaelitedeprivilegiados,preparadaparaassumiroscargosdatecnocracia. Alguns eminentes educadores e filósofos brasileiros da educação, trabalhando na produção de análises e concepções dialéticas da educação, têm colocado a questão da qualidade do ensino; um bom exemplo estaria no da Pedagogia Histórico-Crítica19, que defende que a escola pública deve dar instrumentos às classes desprivilegiadas para que possam enfrentar a burguesia em pé de igualdade no processo da luta de classes. E este instrumental de luta estaria representado justamente no acesso a um ensino de qualidade, como o que vimos discutindo. Como concepção pedagógica que se propõe pensar dialeticamente a educação e a ação transformadora em seu contexto, a Pedagogia Histórico-Crítica é bastante coerente com seus princípios; mas tentando enxergar através dos monstruosos e abstratos olhos do “Leviatã” — um imenso olho formado por milhões de olhos, provavelmente diria Hobbes —, teria praticidade tal concepção pedagógica?, isto é, permitiria — e ainda mais, financiaria — o Estado tal educação? Não, não estamos propondo a volta às teorias críticoreprodutivistas da década de setenta, que cairiam no impasse da impossibilidade da ação educacional transformadora, mesmo porque tais teorias já foram desmanteladas por autores do calibre de Georges Snyders20 e pelo próprio Saviani; entretanto, se aceitamos as concepções filosófico-políticas do Estado aqui discutidas e estamos falando da escola essencialmente como unidade de um sistema públicoestatal de ensino, não que a luta de classes seja inexistente ou impossível no espaço social da escola, mas existem limites estreitos para a ação daqueles que procuram fazer da escola sua trincheira de lutas, seja em que aspecto for. Poder-se-ia objetar que o Estado somos nós, que ele é nada mais do que o representante e promotor da rousseauniana “vontade geral” e que cabe ao conjunto da sociedade fazer com que o Estado promova e implemente a educação pública que queremos. Retrucaríamos, então, com a própria pergunta que intitula este capítulo: seria necessária essa intermediação do Estado para a realização de nossos interesses sociais? Devemosreiterarquenãodiscordamosdofatodequeexistemnosistemaeducacionalpúblico-estatalbrechasquepodemosusarparaodesenvolvimentodeumprocessodeauxílioàtransformaçãodarealidadesocial — jáqueaescolasozinhaéincapazdemudartodaumaestruturasocial.OEstado,porém,continuaogerenciadordaeducaçãopública,eabsolutamentenadanosgaranteque,aqualquermomento,elenãovenhaaretomaroabsolutocontroledoprocesso,destruindoosesforçoscoletivosquebuscavamumamelhorianoensinodasclassespopulares,afrontandooprópriopoderdoEstado.Entretanto,seháocaminhodaaçãonasbrechas deixadas pelo Estado, há também uma multiplicidade de caminhos novos a serem criados, à margem da ação estatal... Mais interessante seria que buscássemos novas formas de fazer social, afrontando diretamente a instituição Estado, e não servindo-nos dela, habitando suas brechas como nossos milhões de miseráveis habitam as brechas no concreto dos grandes viadutos de nossas ricas metrópoles. Deixando um pouco de lado a questão da qualidade de ensino, à qual voltaremos adiante ao discutir o conjunto dos três aspectos problemáticos das reivindicações progressistas em relação ao sistema públicodeeducação,passaremosagoraaoaspectomais diretamente político dos três, o da democratização do ensino público. Esseaspectodivide-seemduasquestõesprincipais:deumlado,democratizaroacessoàescola,quesignificaestendê-laomáximopossível,atéabarcartodaapopulação;deoutrolado,democratizaravivênciapolíticanaescola,quesetraduzirianodesenvolvimentodeumprocessodeeducaçãocívica,deformaçãodeum“cidadãoconsciente”. Quanto à primeira questão, muito pouco resta a ser dito, pois democratizar o acesso à escola pública consiste, do ponto de vista lógico, na própria essência do sistema: se é público, deveria ser necessariamente dirigido a todos, a toda a população. Neste aspeto, é bastante questionável chamar de público um sistema de ensino que não consiga abarcar, na prática, a totalidadedapopulaçãoemidadeescolar,comoéocaso do sistema de educação brasileiro contemporâneo em que, antes mesmo de faltar qualidade, falta vaga para atender completamente à demanda. Já a segunda questão ligada a este último aspecto é mais profunda e mais complexa, oferecendo uma maior margem para discussão. Devemos, de antemão, enunciar a tese que será trabalhada, e que pode ser resumida na seguinte fórmula: “a extremização da vivênciaedagestãodemocráticanaescolapúblicaleva,necessariamente,aorompimentodestacomoEstado,assimcomoaextremizaçãodagestãodemocráticadoEstadolevaàsuaprópriadestruição.” A tese acima enunciada está diretamente ligada à questão da relação entre o poder e a democracia, que, tomada em seus princípios políticos e levada às últimas conseqüências, significa que a democracia só tem sentido no contexto da existência do poder que, por sua vez, pressupõe a existência da dominação; se não há domínio de uns sobre outros, não há poder e não é necessária a organização deste poder. Sendo a democracia uma das formas de organização do poder — aquela que, por princípio, tenta minimizar o seu exercício, dividindo-o entre o maior número possível de indivíduos —, se não há poder, temos a completa autonomia individual e aí já não há mais lugar para a própria democracia. Em outras palavras, levar a democracia às últimas conseqüências significa a destruição da própria democracia ou, se preferirem, também poderíamos dizer que a verdadeira democracia seria a extinção do poder personificado e, assim, só existiria democracia de fato no contexto da absoluta autonomia. Superando a discussão conceitual, dela podemos auferir que existe um limite muito definido para o discurso democrático e que se torna ainda mais nítido para a ação democrática, sendo que este limite é a própria razão de sua existência: levada até seus limites, a ação democrática implica na dissolução do poder e na destruição da própria democracia, ou na instituição da verdadeira democracia, mas aí a ação que leva até sua instituição não passaria de uma ação pró-democrática, ou mesmo pré-democrática... Sintetizando, a democracia — por mais absurdo e reacionário que possa parecer para a mentalidade liberal que, como afirmamos, encontra-se disseminada ideologicamente entre nós — só tem sentido enquanto expressão de um sistema de poder, de dominação, por mais que represente um abrandamento da própria dominação. Voltando ao contexto da educação, os discursos que se arvoram em “progressistas” lutam por uma maior democratização da escola pública. Depois de muita luta políticaesocial,semdúvidaalgumapresenciamosuma série de conquistas que, entretanto, colocam-se dentro de um limite muito específico, limite este que o Estado faz toda a questão de mascarar. A educação pública é democrática, ou pode sê-lo, até onde interessa ao Estado; não podemos, porém, nos enganar: assim que essa democratização colocar em risco suas instituições políticas — se é que ela pode chegar a tanto — ela será imediatamente desviada, abrandada ou mesmo extinta. Paracompreendermelhorestetrípliceaspectodaeducaçãopública—amelhoriadaqualidade,apromoçãodacidadaniaeademocratização—gostariadebuscarnofolcloreinfantilenafábula,esseimensodepositáriodoimagináriocoletivoquetemopoderde,atravésdasimplicidadedapalavra,desvendaraalmahumana,ametáforaperfeita:passeamosnobosque,enquanto“SeuLobo”nãovem...Brincamosdedemocracianaescola—semepermitembrincarcomessacoisatãoséria...—enquantoo“LoboEstado”nãoaparece;mas,setomarmos o“caminhodorio”,aquelequeospoderesinstituídos—ospais—nosalertaramparanãoseguir,seafrontarmos

o território de domínio do “Lobo Estado”, claramente demarcado, aí ele aparece, implacável...

Noconfronto,experimentamosduassituações-limite:ousomosdevoradospelo“LoboEstado”ouomatamos.Aconvivênciasóépossívelquandohabitamosterritóriosdiferentes(“estacidadeépequenademaisparanósdois!”),nãosendo,portanto,con-vivência. O que tentamos exprimir através desta pequena brincadeira metafórica é que, na vivência política no território do Estado, as ações progressistas encontram limites muito próximos. Não que elas não sejam possíveis,sãoatémesmolouváveis,emborasuaeficácia política, se as tomarmos em suas últimas conseqüências, seja dubitável. Jádeixamosclaroque,dopontodevistadaqualidade,aescolaquequeremos—falandonaperspectivadascamadasprogressistasdasociedade,quebuscamaigualdadeeajustiçasociais—nãoéaquelaqueoEstadocapitalistaquer;oassumirdodiscursodaqualidadedeensinopelasesferasoficiaissignifica,nolimitemáximo,abuscademelhorqualificaçãodetrabalhadores,exigidapelacomplexificaçãotecnológicadaindústria.ForçarsocialmenteoEstadoaofereceraescolaquequeremos,queseriauminstrumentoamaisnoprocessodelutapelatransformaçãodestasociedade,serialevaraumasituação-limiteemqueoconflitosópoderiaserresolvidoatravésdoconfronto,estandooEstadonumaposiçãotáticaprivilegiadapararesolvê-loaseufavor. Naperspectivadapromoçãodacidadaniaedademocratizaçãodoensinoque,emúltimaanálisepodemserreunidasnumaúnica,dadoqueapromoçãodacidadanianãosedariajamaisatravésdediscursomas,comovimosanteriormente,atravésdaassimilaçãodosconceitosbásicosparaacompreensãodavivênciapolítica,alémdoaprendizadodeumaaçãoque,senãoéestritamentepolíticanocontextomaisgeral,oéaonívelespecíficodaconvivênciaemumacomunidade,aprópriaescola,estandoaídecertomodorepresentadaasuademocratização,aquestãonãoémenoscomplexa.AssimcomoaextremizaçãodagestãodemocráticadaescolalevaaorompimentocomaestruturadepodersustentadapeloEstadocapitalistae,conseqüentementeaumnecessáriorompimentocomessepróprioEstado,arealizaçãodeumprocessoeducacionalquesejaresponsávelpelaformaçãodeumcidadãonorealsentidocontemporâneoqueapalavraalcança,edeumcidadãodefatoenãoapenasdedireito,representa,também,oacirramentodeumconfrontocomoEstadoque,enquanto provedor e gerenciador dessa educação, não teria o mínimo interesse em mantê-la nessas condições. Ao levantar essas críticas, que buscam o sentido último de uma educação pública e de suas necessárias relações com o Estado, não pretendo, de modo algum, defender a impossibilidade de uma ação políticopedagógica progressista no contexto do sistema público de ensino. Também não pretendo, como já foi frisado anteriormente, retomar as críticas produzidas no contextodasteoriascrítico-reprodutivistas,quederesto já foram superadas por teorias mais lúcidas e abrangentes. Meu objetivo foi trazer para a discussão uma perspectiva que, se não é nova, estava há muito esquecida, ou feita esquecer pela intensa repressão social e política. Os anarquistas procuraram sempre construir alternativas pedagógicas aos sistemas públicos de ensino, como forma de escapar das óbvias limitações de uma educação comprometida com o Estado, o máximo representante e depositário do poder social. Não, a mediação do Estado não é absolutamente necessária; os grupos sociais poderiam perfeitamente organizar e gerir os seus próprios sistemas de ensino, escapandodasperniciosasinfluênciasdestainstituição que, ao fazer-se o Mediador, constitui-se, na verdade, em Interventor, gerenciando a educação que ele julga necessária e desejável e não exatamente aquela que o grupo social deseja. Naperspectivadomodelosócio-políticodaoposiçãoEstadoversussociedade,podemosperceberque,emboraaqueledevaconstituir-senainstânciapolítico-administrativadesta,suaaçãodá-senosentidodemantereperpetuaressaestruturasocial;paraaquelesquesepropõeàsatividadesdetransformaçãodaestruturasocial,abrem-se,portanto,duasperspectivasdeação:trabalharcomasarmaspolíticasdopróprioEstado,sustentadosporumaconcepçãofilosóficaque,seafasta-seradicalmentedaquelaqueexprimeessaestrutura social, em última instância não abandona a lógica que estrutura essa concepção; tal parece ser a situação dos socialismos marxiano e marxista, que defendem o “assalto ao Estado” como arma para a transformação. A outra perspectiva seria buscar a transformação já nos próprios meios, assumindo armas de luta que não são as mesmas usadas pela estrutura social vigente; no caso específico, negando o próprio Estadodeantemão,enãoapenasapósatomadadopoder social, o que, em linhas gerais, caracteriza a situação do socialismo libertário, ou anarquismo. Nocontextoeducacionalemgeral,enodaeducaçãopúblicatambém,osconceitosanarquistasrepresentamumoutroparadigmadepensamento,poisafastam-setantodoliberalismoouneo-liberalismoquantodasvisõessocialistasdeinspiraçãomarxista.Assumiraperspectivaanarquistanãosignificanegaraeficiênciadenenhumadasoutras,massimatentativadeumcaminhodiferenteque,setrazdeterminadasinovações,nãodeixadeapresentartambémsuasdificuldades,como oassumirabertamentealutacontraoEstado,comtoda as conseqüências que ela deva trazer. Noparadigmaanarquista,aeducaçãopúblicanãoéenemdeveserumafunçãodoEstado,massempreumaresponsabilidadedacomunidade,dasociedade.Assim,cadagruposocialdeveseauto-organizarparaconstituirseusistemadeensino,definindo-lheosconteúdos,acarga-horária,ametodologia,osprocessosdeavaliaçãoetc.,semprenumregimedeautogestão. Aaçãopolítico-pedagógicanorteadaporesteoutroparadigmaimplica,claro,numaresponsabilidadeimensamentemaiordetodasociedadeeemmuitomaistrabalhoporpartedetodos,estejamdiretamenteenvolvidoscomaescolaounão.Talresponsabilidadeganhacontornosaindamaisabrangentesaolembrarmosqueestamos,todos,acostumadosaesperardoEstadopaternalistaaresoluçãodosnossosproblemas.Oparadigmaanarquistaapresentatambémosseusproblemas, talvez mais complexos até, mas problemas que devem ser encarados de frente, do mesmo modo que deixar a adolescência assumindo cada vez mais as responsabilidades pela maturidade da “idade da razão” tampouco é um processo simples e sem traumas, mas do qual não podemos jamais fugir... Notas 1 Este artigo retoma considerações desenvolvidas em minha tese de doutorado Autoridade e a Construção da Liberdade: o paradigma anarquista em educação, apresentada à Faculdade de Educação da Unicamp em 1993, e de textos já publicados em outras revistas. 2 DaRevoluçãoFrancesaaoscomeçosdaterceiraRepúblicainMauriceDebesse,HistóriadaEducação.SãoPaulo,Nacional,1977,p.338. 3 ApudLorenzoLuzuriaga,HistóriadaEducaçãoPública.SãoPaulo,Nacional,1959,p.44. 4 Asituaçãoideal,apresentadanotexto,temsidocadavezmaisdesestruturadanoBrasildosúltimosanos;comooEstadotemsidoincapazdeoferecereducaçãonaquantidade—paranemtocarnoaspectodaqualidade—dequeasociedadenecessita,abrecadavezmaisespaçoparaainiciativaprivada,comoformaderepararessadefasagem.Entretanto,praticaumafiscalizaçãomaisintensasobreasescolasparticulares—justificável,emalgunscasos—doquesobreassuaspróprias,imiscuindo-seinclusivenasquestõesdefixaçãodasmensalidadesereajustessalarialdosprofessores,comopudemosacompanharcotidianamentepelagrandeimprensa. 5 Seriacurioso,nãofossetrágico,percebermosooutroladodonacionalismo:axenofobiaeoracismoquealimentamasdiversasformasdefascismo,agorareeditadaspelosgrupelhosfascistóidesqueinfestamasperiferiasdasgrandescidades,tantonaEuropacomonoBrasil;nofundo,onacionalismoquealimentasuacovardeviolêncianadamaisédoqueresultadodeumprocessodecriaçãodeumsentimentoabstratode“nacionalidade”,criadoedesenvolvidoséculosatrás,comoobjetivodeunirospovosdedeterminadasregiões! 6 PodemoslembraraquideumacançãodeCaetanoVeloso,gravadaemseudiscode1987,queequacionamuitobemoimpassepolíticobrasileiro,dentreoutros,emversoscomoesses:“Equemvaiequacionaraspressões/doPTedaUDR/efazerdessavergonhaumanação?”(“VamosComer”). 7 GilbertodeMelloKujawski.ACrisedoSéculoXX.SãoPaulo,Âtica,1988, p. 114.

verve

8 Umexemplodessesblocossupranacionaissãoosblocoseconômicos,comoaComunidadeEuropéia,oMercosuletc.Poroutrolado,nãopodemosdeixardeassinalarasanálisesqueToniNegrieMichaelHardtdesenvolvememImpério(RiodeJaneiro,Record,2001). 9 Cf.,porexemplo,osensaiosdeRevoluçãoMolecular:pulsaçõespolíticasdodesejo,SãoPaulo,Brasiliense,1985,2ªed.ouosdeMicropolítica:cartografiadodesejo,comSuelyRolnik,RiodeJaneiro,Vozes,1986.NumapalestranaFAU-PUCCAMPnosidosde1985,Guattariafirmava,entusiasmado,queacriatividadeeinventividadejámortanaarquiteturaeuropéia,estavamaisquepresentenasfavelasbrasileiras,ondedoquase-nadaarrancava-seumteto,umahabitação... 10 AprópriaconcepçãodatáticapolíticadeMarxcorroboraessatese:emboraconsiderequesejanecessáriodestruiroEstadoparaconstruiranovasociedade(comunismo),eleafirmaanecessidadedeassumirocontrolepolíticodoEstadopara,depois,destruí-lo.Destemodo,atáticaaserusadacontraocapitalismoéamesmatáticadeleealógicadestatática,querintitule-sedialéticaouformalé,nofundo,amesma;decertomodoissoexplicitaoreceiodeassumiraesquizofreniadeumaoutralógica,completamentediferenteparaaoporàlógicaliberal/capitalista.ÉnessesentidoqueDeleuzeeGuattariabordamaesquizofreniacomoessencialmenterevolucionária,pordesterritorializarcompletamenteossentidosdocapital,emCapitalismeetSchizophrénie. 11 VerErichFrömm,OMedoàLiberdade,WilhelmReich,PsicologiadeMassasdoFascismo,dentreoutros,eemSartre,asrelaçõesentreliberdade,responsabilidadeeangústia,emOSereoNada. 12 Nadécadadetrinta,ReichafirmavanaPsicologiadeMassasdoFascismoqueaescolatomavacadavezmaisdafamíliaedaIgrejaafunçãodetransmissãoideológicaeformaçãodasnovasgerações,fatoqueconsolidou-senasúltimasdécadas,comopodemosconstatar.Hoje,amídiaeletrônicaeainformáticatomamcadavezmaisoespaçodaescola,eseuprogressivofortalecimentodevelevarrapidamenteaumanovahegemonianatransmissãoideológicaparaasnovasgerações. 13 Ver,porexemplo,LaymertGarciadosSantos,Desregulagens:educação,planejamentoetecnologiacomoferramentasocial,ondeéanalisadooProjetoSACI/EXERN. 14 CaetanoVelosonumversode“SantaClara,padroeiradatelevisão”(1992). 15 Apud Maurice Dommanget, Los Grandes Socialistas y la Educación, de Platón a Lénin. Madrid, Frágua, 1972, p. 268. 16 ExpressãoutilizadaporPatriceCanivezemEducaroCidadão?.Campinas,Papirus,1991. 17 PatriceCanivez,op.cit.,p.31. 18 VerCanivez,op.cit.,p.159. 19 VerDermevalSaviani,PedagogiaHistórico-Crítica:primeirasaproximações.SãoPaulo,Cortez/AutoresAssociados,1991,pp.70eseguintes.20 VerEscola,ClasseeLutadeClasses,deSnyderseEscolaeDemocracia,de Saviani. resumo Aescolapúblicaécomumentevistacomoumaescolaestatal.Masseránecessariamenteassim?EssamediaçãodoEstadoentreasociedadeeaeducaçãoserá,defato,necessária?Esteartigopretendemostrarquenão,explorandoaspropostasanarquistasdeeducaçãoparamostraraviabilidadedeumaescolapúblicanão-estatal.Paraisso,buscaasorigenshistóricasdaeducaçãopública,desvelandoseuseloscomaconstituiçãodosEstados-naçõeseuropeus,eemseguidaanalisaaspeculiaridadesdasrelaçõesentreEstadoeeducaçãonoBrasil.Finalizando,problematizaaquestãodademocratizaçãodaescolapúblicanoBrasildesdeadécadadeoitenta,fazendoacríticadaschamadasconcepçõesprogressitasedefendendoapossibilidadeumapproachanarquistadaquestão. abstract Thepublicschooliscommonlyseenasa”state‘school.Shoulditbenecessarilylikethat?Wouldthismediationofthestatebetweensocietyandeducationbereallynecessary?Thisarticleintendstoprovethecontrary,exploringtheanarchistproposalsforeducationtoshowtheviabilityofapublicschoolapartfromthestate.Inthisattempt,itsearchesthehistoricaloriginsofpubliceducation,revealingitstieswiththeconstitutionofEuropeannation-states,andthenanalyzestheparticularitiesoftherelationbetweenstateandeducationinBrazil.Finally,itquestionstheissueofdemocratizationofpublicschoolsinBrazilsincethe1980s,criticizingtheso-calledprogressiveconceptionsandaffirmingthepossibilityofananarchistapproachtothesubject.

escola-droga

OEstadonãoénadamaisqueoefeitomóveldeumregimedegovernamentalidademúltipla. Michel Foucault Imagine-se com dez anos de idade e aluno em uma sala de aula de quarta série do ensino fundamental; não se veja no passado, quando cursou a quarta série, mascomoumacriançahoje,numuniversoondecontam ‘vídeo games’, computadores, tênis da moda, as infindáveis sessões de marquetagem destinadas às crianças em que se transformaram os programas infantis na televisão, ‘pokemons’, o medo de seqüestros, etc1.Então,emsuasaladeaula—quenãomudoumuitoemrelaçãoàquelaemquevocêestudou,anãosertalvezosmateriaiseodesenhodamobília—aprofessora,ouprofessor,comoqueira,distribuiumafolhadepapelna * PesquisadordoNu-Sol.ProfessordoCentrodeEducaçãodaUniversidadeFederaldeSantaMaria,mestreemEducaçãopelaUFSCedoutorandonoPEPGemCiênciasSociaisnaPUC/SP.DesenvolvepesquisassobreestratégiaseducacionaisnãoescolarizadorasnoBrasilcontemporâneo. 165

qual vocês devem fazer uma redação com um tema que diz respeito à aula sobre drogas ministrada anteriormente. Assim, acima das linhas em branco da folha,diantedevocêestáotítulo:‘Euconheçoumviciado’. Antes de ‘sair’ de sua sala de aula, elabore rapidamente as linhas gerais da sua composição — lembre-se que tem dez anos: conhece alguém viciado em drogas? é algum parente, amigo, conhecido? como sabe que é viciado? viciado em quê? Este exercício que lhe propus eu mesmo o fiz quando chegou às minhas mãosumasfolhasfotocopiadasdoque,aprimeiravista, parecia ser um livro didático para crianças, devido ao grande número de ilustrações. As cinqüenta páginas não numeradas e sem referência bibliográfica, tratavam de um projeto chamado ‘Drogas? Tô fora!’ com o planejamento de cinco aulas de ‘Língua Portuguesa/ Educação para Saúde’. A redação referida acima é o exercício final sugerido como avaliação da primeira dessas aulas. A publicação na qual este material estava inserido2 foi encontrada numa escola de uma pequenacidade do interior de Santa Catarina. É um material bastante curioso e mereceria um artigo inteiro apresentando não só sua noção de drogas, mas também as estratégias de saúde a serem desenvolvidas junto a crianças das quatro primeiras séries do ensino fundamental3.Destinadoaprofessoresdoensinofundamentaltemporobjetivodesenvolverotematransversal4 “Saúde”. Recorrendo sempre a ilustrações — árvores, sóis brilhantes e muitas carinhas infantis nas mais diversas situações —, encaixadas no clichê do mundo infantil feliz, o material vai apresentando sua versão pedagógica da abordagem do uso de drogas. Assim, ao sugerir ao professor que faça alguns adesivos para serem distribuídos pela escola, um deles tem a frase: “Ao ir ao hospital, visite a enfermaria de pneumologia, não para ver como os enfimatosos [sic] vivem, mas sim, para ver como é que eles estão morrendo”. Ilustrando estafraseháumleitodehospital,comumcrucifixosobreacabeceira,edeitadosobascobertasummeninoexibeseurostotranqüilo.Noutrasugestãodeadesivos,emqueolivrocomenta“overdosedetranqüilizantes”,apareceodesenhodeummeninocomaspernaseoolhardesencontrados,comoqueembriagado.Aosugeriraoprofessorquecriecartazesaseremreproduzidos,logoemseguidarecomendaasfrasesoucartazesquedevecriar:“Eviteatentaçãodaprimeiradose”,“Drogaéumadroga”,“Eunãoentronessafria!”.Domesmomodo,abaixodasentença:“Crieumcartazalertandosobreoperigodoconsumodecigarros”,aparecejápronto o desenho de um cartaz, no qual se vê um menino de óculos escuros com três cigarros acesos ao mesmo tempo, tossindo muito, e a frase “Você está bem... perto daMorte.” Assim,entreasváriasimagensdecrianças—ouadultosinfantilizados?—fumando,bebendoálcool,chádecogumelo,cheirandolança-perfumes,imagensdeseringas,caveiras,sepulturascomumacarinhasorridentenalápide,emuitascarinhassorridentes,estelivrodasérie“Alfabetizaçãosemsegredos”vaiconstruindoumanoçãodedrogas,baseadanoconceitodeque“drogaétodasubstânciaque,introduzidanoorganismo,alterasuasfunções”.Adrogaaparecestreitamenteligadaàdegradaçãodavidaeàmorte,aomesmotempoemquepromoveumaespéciedesondagemdaíndoledoaluno:“Vocêaceitariaexperimentaralgumtipodedrogaparanãosercriticadopeloscolegas?Porquê?”;“Qualseriasuareaçãosealguémlheoferecessedrogas?”;“Casoalgumcolegaestivesseusandodrogas,vocêfalariacomafamíliadele?Porquê?”;“Oquevocêcostumafazerquandosesenteaflitoouinquieto?” Imaginar os possíveis efeitos do desenvolvimento do trabalho escolar com o título “Eu conheço um viciado”, deixou-me curioso a respeito do modo como o tema das drogas vem sendo tratado nas escolas. Umavezquetodasasescolasespalhadaspeloterritórionacional—sejamelasfinanciadaspeloEstadoouprivadas—sãoorientadaspelaLDB,cabe,antesdesabercomoessasescolasdesenvolvemumtemacomo odasdrogas,perguntaroqueoEstadodizsobreasdrogas. Uma tarde na biblioteca da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina rendeu quase oito quilos de fotocópias. Deste material tomei cartilhas, relatórios e pesquisas feitos por órgãos oficiais do Estado, mais especificamente pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), Casa Militar, Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) e pela Universidade de Brasília. Com este material tentei apreender a noção de ‘drogas’ que orienta as ações do Estado brasileiro. Com a outra parte, composta por cartilhas, programas de prevenção e folhetos elaborados por especialistas da área de educação, tento mostrar a correspondência do debate e dasestratégiasdeabordagemdaproblemáticadasdrogas nas instituições de ensino responsáveis pelo ensino fundamental. A organização do material em ordem cronológica — a partir, principalmente, da última metade da década de noventa — mostrou-se bastante esclarecedora do movimento pelo qual passa a noção de droga neste curto período. Em meados dos anos noventa a sociedade brasileira mobilizou-se a partir da promoção pelo Estado para diversos encontros, seminários e fóruns, a propósito da questão das drogas. Ao dar mostras claras de que não era uma doença circunscrita aos grupos de homossexuais e de usuários de drogas injetáveis — derrubando a noção moral e administrativamente confortável de grupo de risco —, a AIDS mostrou uma possibilidade concreta de larga contaminação de indivíduos pertencentes aos mais variados estratos sociais. Isso fezcomqueoEstado,cuidadosoemmelhorarasorteda população, elaborasse uma série de campanhas com a finalidade de conter o avanço da doença sobre os cidadãos. Os números referentes aos infectados chamavam especial atenção para o grupo dos usuáriosde drogas injetáveis. É dessa constatação que acontece a passagem da utilização de estratégias de controle da AIDS para o emprego de estratégias de prevenção integral tendo como coluna mestra a prevenção ao uso indevido de drogas. Para enfrentar a ameaça representada por uma possível explosão do contágio de AIDS por meio dos usuários de drogas injetáveis, e lidar diretamente junto à população, foram publicadas cartilhas, fitas de vídeo, e promovidos cursos para multiplicadores5. Estasestratégias,então,empregadaspeloMinistério da Saúde enfatizavam a política da redução de danos e dirigiam-se especificamente às populações em situação de risco, a saber: “profissionais do sexo, jovens socialmente marginalizados, presidiários, populações de rua, e usuários de drogas”6. O trabalho preventivo e educativo com essas populações não ficava como responsabilidade dos serviços formais de saúde, educação e serviço social, mas das emergentes organizações não governamentais7.Nestecontexto,adrogaétratadacomofenômenohistórico,reconhecendoque“oserhumanosempreconviveucomdrogas,edelasfezdiferentesusos,aolongodahistória.”8 Eéinteressanteverreferênciasagrandesnomesdaliteraturamundialeaousoquefizeramdedrogas‘perturbadoras’:FernandoPessoa—“hádoençaspioresqueasdoenças...”—,BaudelaireeoópioeAldousHuxleyesuasexperiênciascomamescalina;adrogacomosubstânciaque“transportavaoespíritoparaoutrosterritórios,paraoutrassabedorias”9. O problema do abuso de drogas, ainda nestes materiais do Ministério da Saúde, é situado dentro do espectro das drogas legais: “o panorama epidemiológico do Brasil (...) mostra a prevalência das drogas legais: elas representam mais de 90% dos abusos ou usos freqüentes praticados pela população. Seu custo social é altíssimo, ultrapassando de longe aquele das drogas fora da lei. Em termos de mortalidade, o abuso de álcool e fumo é responsável por cerca de 95% dos casos de óbito devidos a drogas, sendo que somente 5% são imputados às ‘outras drogas’, no seu conjunto”10. Éclaraaoposiçãoàsposturasradicaisdefendidaspelossetoresdaorganizaçãoestatalresponsáveispelarepressãoaousodedrogasilegais:“osexpoentesdaposturaantidroga,(...)nãoenxergamoóbvio:quea‘guerracontraasdrogas’éinoperante,equenuncahaverá‘vitóriafinal’,jáqueasdrogasfazemparte,desdesempredavidahumana.Masháaindamais:todasaquelasintervençõesquesepautamnaabordagemexclusivado‘dizernão’,sãocontraproducentesesurtemefeitoscontrários”11. A preocupação aqui não é criminalizar o uso de drogas, mas recuperar o dependente, que deve ser considerado como um doente12, dentro do ideal da reinserção social, pela via da reconstituição familiar13. É neste ponto “ideal” que ocorre a reintegração dos que se encontram em situação de risco. Ponto no qual esses sujeitos passam a estabelecer laços familiares, mesmo que tênues, no qual, automaticamente, as instituições formais passam a atuar. Reinseridos, reajustados, eles restabelecem contato com a rede formal de assistência à saúde, educação e serviço social. Ou seja, o isolamento, que é a condição que caracteriza as populações de risco, impede qualquer intervenção preventiva; portanto, qualquer ação neste sentido deve promover o restabelecimento dos vínculos sociais, num crescendo que vai da família à escola, aos grupos de auto-ajuda e à rede formal de assistência. Dentro deste conjunto de ações de ajustamento e de reinserção, a escola assume um papel de grande importância. Desta maneira, “freqüentar uma escola representa um referencial de cidadania e fortalece a identidade pessoal, tantas vezes abalada sob o impacto das adversidades sofridas. Devidamente instrumentalizada e com habilidade para segurar e direcionar o aluno, a escola é capaz de manter os jovens afastados da marginalização, mesmo com suas estruturas familiares precárias ou quase inexistentes”14. Em novembro de 1998, acontece o “I Fórum Nacional Antidrogas”, evento que inaugura um importante passo para a compreensão de uma noção de “drogas” utilizada peloEstadobrasileiro.Comoobjetivodeabrirumdiálogo entre a sociedade e o Governo Federal, e de ouvir as sugestões da sociedade, o Fórum, destinado exclusivamente às organizações não-governamentais15,reuniurepresentantesdosmaisdiversossetores.Aotodoforam30subgruposseparadosemquatrogruposdetrabalho:grupodeprevenção,detratamento,derepressãoeumúltimogrupochamadoglobal.Entretodosestessubgruposhavia,porexemplo,umsubgrupoparaopessoaldareduçãodedanos,outrochamadoPopulaçõesExcluídas,eaindaCriaçãodeEmpregos,Internação,ReinserçãoSocial,Mútua-ajuda,ComunidadesTerapêuticas,ModificaçõesLegislativas,ComunicaçãoeMarketing,etc.HaviatambémosubgrupoEscola,umdostrezesubgruposdoGrupoGlobal,juntamentecomoutroscomoFamília,LocaldeTrabalho,Mulheres,CriançaseAdolescentes,InstituiçõesReligiosaseoutros.Nodiscursoqueproferenaaberturadoencontro, o Presidente da República refere-se à escola da seguinte maneira: “Precisamos, no Brasil, ampliar a consciência do professorado, da gestão das escolas, mas, sobretudo, das famílias, com relação à questão das drogas”16. Esegueapresentandoumoutroladodaquestão:“mas,háooutrolado,digamos,propriamenterepressivo,daquestãodasdrogas.(...)Issorequerumtrabalhodeinteligênciaedeinformação.Nãoéapenasumtrabalhoderepressão,masédeconhecimentodastramasqueestãoportrásdaquiloqueapareceàprimeiravistaequeé,normalmente,oobjetodarepressão.Oobjetodarepressão,raramente,estádiretamentevinculadoàtramadesustentaçãodotráficodedrogas(...)Éilusãopensar que as informações, hoje, são monopólio do Estado.Pelocontrário.Hoje,tambémasociedadedispõe das informações. E, muitas vezes, até mais depressa e mais abundante do que o próprio aparelho de Estado”17. Consultandocuidadosamenteorelatório,ficammaisclarasfrasestaiscomo‘Issorequerumtrabalhodeinteligênciaedeinformação’ou‘Éilusãopensarqueasinformações,hoje,sãomonopóliodoEstado.’,ouainda‘Hoje,tambémasociedadedispõedasinformações’.O“subgrupoR2”—umdostrêssubgruposdo“grupoderepressão”—,responsávelpelotema“ParticipaçãodaSociedadenarepressãoaoTráfico-ProteçãoàTestemunhaeDefiniçãodoCampodeAtuaçãodasONGs”,emseurelatório“deudestaqueànecessidadedeestimular-seadenúncia;incentivar-seadelaçãopremiadaedeeditar-seleiestabelecendoregrasdeproteçãoàstestemunhas,concedendo-seàsONGsasmissõesdedarapoiopsicossocialaosfamiliaresdetestemunhasprotegidasefornecermoradiasprovisórias”18. Chamo atenção para a proximidade, a sinonímia mesmo, entre as palavras denúncia e delação. Nesse contexto de “participação da sociedade na repressão ao tráfico” a diferença possível é que a delação pode mobilizar uma rede de proteção à testemunha, todavia, perde sua diferença qualitativa ao produzir o mesmo efeito: ao chegar aos órgãos oficiais competentes, “por correio, telefone ou outros meios”19, transformam-se em informação, em trabalho de inteligência. As situações apresentadas até agora, enfatizando os discursos produzidos por órgãos e pessoas representantes do Estado, compõem uma galeria que tenta, mesmo que apressadamente, mostrar o largo espectro do que se diz, oficialmente, em relação às drogas. Desta variada flora discursiva, muitos espécimes são aproveitados para decoração, enquanto outros são produzidos e distribuídos gratuitamente à população e devorados vorazmente. O efeito ornamental de alguns discursos não deve, todavia, ser subestimado pois são estesquedãocorpoaumaimagemdeEstadoacolhedor, no qual o cidadão tem ampla liberdade de expressão. UmepisódioocorridonoFórumpermitecomeçaradelinearodiscursosobredrogasqueoEstadobrasileiroefetivamentefazfuncionar,quetemforçaevolumeparapreencheroslargoscanaisdaspolíticasdestinadasaosgrandescontingentespopulacionaise,aomesmotempo,fluidezesimplicidadesuficientesparapercorreroscomplicadosefiníssimoscanaisquepenetramnascomunidades,nasfamíliase,atéomaisíntimodavidadecadaum,aliondepercebe-seasimesmocomocidadão,comdireitosdeveresesujeitoaoassédiodoEstadoemvistadocumprimentodasleis. OsubgrupochamadoReduçãodedanoseportadoresdeHIV,teveumaparticipaçãoinesperadadepessoasligadasagruposreligiosos—FederaçãoBrasileiradeComunidadesTerapêuticas,AmorExigente,PastoraldeDependênciaQuímica/CNBB—eaoaparatopolicial,quecorrespondeua68%dosintegrantes;eramcontráriosàtrocadeseringasepropunhamaabstinênciacomoúnicaformadetrataraquestãodasdrogas.Osoutros32%erampessoasenvolvidasematividadesdereduçãodedanoseminstituiçõesgovernamentaisenão-governamentais.Foramproduzidos,assim,doisrelatórios,umincluindotrocadeseringaseoutroexcluindotrocadeseringas20. Esta reunião insólita de membros de ONGs, professores universitários, religiosos e policiais, põe em cena os principais atores do teatro da prevenção ao uso de drogaseexpõeoargumentodapantomima:gruposcom interesses realmente opostos — confrontando ciência e dogma religioso, estratégias libertadoras e medidas repressoras — unidos na promoção da impossibilidade de pensar a vida sem governo. Os diversos grupos ali presentes legitimam e conferem, pela sua diversidade e proveniências — militares, policiais, religiosos, advogados, agentes comunitários, assistentes sociais, professores, pesquisadores... — uma voz à sociedade. Seus relatórios — pedindo verbas; aperfeiçoamento de leis e regulações; integração entre agências federais, estaduais e municipais; aumento de pessoal qualificado, cursos de aperfeiçoamento; campanhas de prevenção; repressão policial; criminalização; descriminalização; reformulação de práticas pedagógicas; reinserção social, etc. — dirigem-se ao Estado e reforçam seu qualificativo de democrático. Escola e droga A partir das recomendações do I Fórum Nacional Antidrogas, foi organizado, pela Secretaria Nacional Antidrogas e pela Universidade de Brasília, o curso “Prevenção ao Uso Indevido de Drogas: diga sim à vida”. Este curso visava “contribuir para a formação de profissionais ou de membros da comunidade em geral devidamente qualificados para atuar na prevenção ao uso de drogas”21. Os conteúdos elaborados por especialistas tinham por objetivo “oferecer informações consistentes (...) de maneira clara e fundamentada em literatura atualizada”22. As estratégias de ensino empregadas neste curso — oferecido gratuitamente a trinta mil futuros trabalhadores da missão de prevenir contra o uso indevido de drogas — surpreendem ao ressuscitar a instrução programada23. Enquanto os conteúdos eleitos para o programa seguem a já consolidada liturgia dos cursos de prevenção às drogas — definição de droga, classificações das mesmas (naturais, sintéticas, psicotrópicas, lícitas e ilícitas —, classificação dos usuários (experimentador, recreativo, funcional e dependente), uma listagem das drogas e seus efeitos e estratégias de prevenção — a instrução programada, rediviva, causa a impressão de que o que importa aprender são os conteúdos expressos no programa,quandooqueestáseprocessando,éumamor verve tecimento da capacidade de pensar e de querer, do exercício da vontade. A descrição de um desses exercícios presente na apostila do curso não vai deixar dúvidas sobre o que estou dizendo: sob o título “autoavaliação” está a sentença “Complete as lacunas utilizando a palavra-chave adequada:”, segue então um conjunto de doze palavras que devem ser colocadas nas lacunas existentes nas frases de ‘a’ a ‘f’, imediatamente após as frases aparece o mesmo conjunto de palavras só que desta vez colocadas na ordem em que devem aparecer nas lacunas das frases acima. “AUTO-AVALIAÇÃO Completeaslacunasutilizandoapalavra-chaveadequada: Palavras-Chave experimentador controlada motivação habitual consciência ocasional abusivo tranqüilizantes pessoa comportamento dependência droga

a) As drogas psicotrópicas são substâncias capazes de alterar o ________________ das pessoas. b) Mesmo certas drogas chamadas lícitas podem ter sua comercialização ______________ por leis. É o caso dos _____________ . c) O uso indevido de certas drogas lícitas é uma questão importanteemrelaçãoàsaúdedapopulaçãoporquepode causar _____________ . d) Existem tipos diferentes de usuários de drogas. O usuário ____________ é aquele que experimenta um ou mais tipos de drogas sem dar continuidade ao uso, enquantoousuário___________fazusofreqüente,podendoocorrerprejuízosàvidaprofissionaloufamiliar.Hátambémochamadousuário___________queseutilizadadrogaesporadicamente,numasituaçãoespecial,comonocasodosbebedoressociaiseousuário____________cujoconsumoadquirepapeldedestaquenasuavida,acarretandosériosprejuízosprofissionais,sociaisefamiliares. e) O triângulo básico do consumo de drogas é representado pela _____________ pela ____________ e pelo contexto sócio-cultural. f) Existem diferentes _____________ para o consumo de drogas como a obtenção do prazer ou a modificação deliberada do estado de _____________ . Gabarito: a) comportamento b) controlada; tranqüilizantes c) dependência d) experimentador; habitual; ocasional; abusivo e) pessoa; droga f) motivações; consciência”24. Osmateriaisdidáticosutilizadosnasescolasseguemaliturgia,acimareferida,doscursosdeprevençãoàsdrogas.Eesteéumdosfiosdiscursivoscomqueaescolateceateiadaprevenção,umateiaquearrastaconsigotodasortedesançãomoralizadora:“Todousodedrogaséarriscado!”25; “(...) Não significa eximir o consumidor ocasional (mesmo criança ou adolescente) da aplicação da pena da lei,...”26; “Solte todas as suas angústias para aquelequepatrocinousuavida,queELEoajudaráalevar avante seus projetos. [...] Assuma seu papel de cidadão e mude sua vida como você gostaria...”27; “O consumo de drogasdeveserconsideradocomoumsinaldedestruição da vida em termos de saúde e de valores...”28 . Uma boa visão da rede tecida pela prevenção no ensino escolar é dada pelo sumário com “subsídios de prevenção integral para o educador”, constante do “ProgramadePrevençãoEducaçãoeVida”realizadopela Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina. A partir da identificação da gravidade do problema das drogas, este programa compõe uma grande e complexa seqüência de vinte cinco temas29 organizados em planos de aula com os ítens: objetivos, desenvolvimento do tema, atividades da clientela (alunos). Entretodasessasopçõesadisposiçãodeprofessoresealunos,aescolainstituiumtipodeliberdadeaoqualseremos,sejánãoestamos,acostumados:aliberdadedeescolherentreumconjuntorestritoeestabelecidopreviamentedeitenspostosàdisposição,quedesembocamsemprenanormalizaçãoenoajustamentodossujeitosdemodoacaberemconfortavelmentenafiguradocidadãolivredentrodohorizontedelimitadopelasleisepelamoral. Agora sim, sinto-me falando de drogas. Refiro-me ao efeito narcotizante dessas intervenções, dessas aplicações diárias, pacientes, constantes, desde a mais tenra idade, de drogas que abalam a vida ao produzi-la morna, prevenida, segura e que têm como princípio ativo o “saber sem vontade”30. Arremato o vislumbre, que espero que este texto tenha proporcionado, da pedagogia que interessa ao Estado brasileiro na atualidade, com a seguinte declaração do Ministro da Educação, ao comentar os desvios de verbas do Programa Federal Bolsa-Escola e a importância da “participação social nas deliberações públicas”: “é importante que tenhamos pessoas como o vereador Otto Barroso, responsável pela denúncia de fraude no município de Jutuabá (MG). O aumento da participação social nas deliberações públicas significa a radicalização da democracia. Certamente surgirão pessoas, atentas como ele, capazes de identificar problemas e denunciá-los. [...] Desde julho o Ministério da Educação vem investigando denúncias de irregularidades na destinação de recursos. Trezentas denúnciaschegarampormeiodotelefone0800-616161, e estão sendo apuradas”31. A denúncia como forma de participação social e exemplo de radicalização da democracia, sublinhada pelo Ministro, dá idéia da eficiência de uma espécie de pedagogia da delação — com programas, conteúdos e técnicas didáticas — que vem sendo largamente implantada no país. Basta atentar para os programas vespertinos de televisão nos quais o principal argumento são as denúncias da população feitas por meio de telefones gratuitos. Os meios de comunicação de massa mais importantes — televisão, rádio, imprensa, internet e escola —, e também o Governo Federal, têm dado mostras de seu empenho em educar o povo dentro dessa perspectiva, por assim dizer, democrática. Inventa-se no Brasil um povo que sente que decide, quando delata. Olhando os créditos das publicações oficiais que utilizei neste ensaio, encontrei vários nomes nas comissões de consultoria, equipes de elaboração, colaboradores, especialistas... Adriano, Nelita, Sueli, Gilson, Maria, Almeli, Lídia, Saulo, Fernando, Ione, Marisa, Flávia, Carlos, Eliseu, José, Izilda, Clarinha, Ruy, Rosane, Shirley, Juçara, Araí, Mileide, Gey, Ana, Dóris, Liana, Márcia, Thérèse, Aluísio, Waleska, Alício, Aracy... são alguns nomes de pessoas que, como qualquer um de nós, freqüentaram escolas, estudaram segundo as determinações da LDB, tornaram-se profissionais e agora fazem aparecer a expressão do Estado em palavras. Assim, Como sabemos muito bem, “o Estado não tem entranhas, e não simplesmente no sentido de que não tenha sentimentos, nem bons nem maus, mas que não tem entranhas no sentido de que não tem interior. O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalidade múltipla.”32

verve

Notas 1 Estalistadesituaçõesquecercamumestudantebrasileirodedezanosemborapareça‘típica’ébastantelimitada,pode-seterumanoçãodistolembrandoque,em1990,60%dasunidadesescolaresdoBrasileramescolasmultisseriadas,ousejaescolasquereúnem,simultaneamente,emumamesmasaladeaulaesobaresponsabilidadedeummesmoprofessorasprimeirasquatrosériesdoensinofundamental,cf.CássiaFerri.Classesmultisseriadas:queespaçoescolaréesse?Florianópolis,1994,p.152.DissertaçãodeMestradoemEducação-CentrodeEducação,UniversidadeFederaldeSantaCatarina.Comistoquerolembraragrandeparceladosalunosbrasileirosnestafaixaetáriaquenãotemacessoacomputadores,nãoconhece‘vídeogames’,nãotemtênisdamodaesequerenergiaelétricaemsuascasas,ouseja,arealidadedosestudantesdopaísémuitovariadaedesigualnãopodendosertomadacomopadrãoaclassemédiadoscentrosurbanos,atéporqueclassemédianoBrasil,comcasa,carroecomputador,émuitopoucagente. 2 Maria Radespiel. Alfabetização sem segredos: temas transversais. Contagem, Editora IEMAR, 1998. 3 Ensinofundamentaléadenominaçãoquesubstitui,nanovaLeideDiretrizeseBasesdaEducaçãoNacional(LDB),LeiFederaln.9.394de20/12/1996,aantigadenominaçãodeprimeirograudaLDBanterior,LeiFederaln.5692de11/08/1971.Oensinofundamentalrefere-seàsoitoprimeirasséries(maisrigorosamenteaosquatroprimeirociclos,correspondendocadacicloaduasséries)daeducaçãoescolarecorrespondeaoensinoobrigatórioexigidopeloEstado,cf.Brasil.SecretariadeEducaçãoFundamental.Parâmetroscurricularesnacionais:introduçãoaosparâmetroscurricularesnacionais.Brasília,MEC/SEF,1997. 4 Temastransversais,sãoumasériedecincotemas(ética,saúde,meioambiente,orientaçãosexualepluralidadecultural),instituídospelanovaLDBparaoensinoescolar.Nãoconstituemdisciplinasepodemserdesenvolvidosdentrodequalquerdisciplina,commaioroumenorgraudeaprofundamento,segundonecessidadesquepodemvariarquantoafaixaetáriadosalunos,especificidadesregionaisoudemandasdecadagrupo.Brasil.SecretariadeEducaçãoFundamental.Parâmetroscurricularesnacionais:Apresentaçãodostemastransversaiseética.Brasília,MEC/SEF,1997. 5 Brasil.MinistériodaSaúde.SecretariadeAssistênciaàSaúde.Coordenação-GeraldoPNDST/AIDS.Drogas,AIDSeSociedade.Brasília,CoordenaçãoGeraldeDoençasSexualmentetransmissíveis/AIDS,1995,p.3. 6 Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populações em situação de risco. Ministério de Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasília, out. 1995, p. 22. 7 Idem, p. 22. 8NeriFilho.“Preconceitoseconceitossobredrogasin:Drogas,AIDSeSociedade.Brasília:CoordenaçãoGeraldeDoençasSexualmenteTransmissíveis/AIDS,1995, p. 28. 9 Idem, p. 29. 10RichardBucher.“Drogasnasociedade”in:MinistériodaSaúde.SecretariadeAssistênciaàsaúde.Coordenação-GeraldoPNDST/AIDS.Drogas,AIDSeSociedade.Brasília:CoordenaçãoGeraldeDoençasSexualmenteTransmissíveis/AIDS,1995,p.35. 11 Idem, p. 48. 12 Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populações em situação de risco. Ministério da Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasília, out. 1995, p. 08. 13 Idem, p. 27. 14 Ibidem, p. 28. 15 IFórumNacionalAntidrogas(Brasília:1998).RelatóriodoIFórumNacionalAntidrogas,27a29denovembrode1998.Brasília,SENAD,1999,p.05. 16 DiscursodopresidenteFernandoHenrique,naaberturadoIFórumNacionalAntidrogasin:RelatóriodoIFórumNacionalAntidrogas,27a29denovembrode1998.Brasília,SENAD,1999,p.08. 17Idem. 18 RelatóriodoGrupodeRepressãoin:IFórumNacionalAntidrogasin:RelatóriodoIFórumNacionalAntidrogas,27a29denovembrode1998.Brasília,SENAD,1999,p.40. 19 Idem, p.42. 20 IFórumNacionalAntidrogasin:RelatóriodoIFórumNacionalAntidrogas,27a29denovembrode1998.Brasília,SENAD,1999,pp.17-24. 21 Eliane Maria Fleury Seidi (org). Prevenção ao uso indevido de drogas: diga SIM à vida. Brasília, CEAD/UNB, SENAD/SGI/PR, 1999, vol. 01, p. 04. 22Idem. 23 Instruçãoprogramadaéumconjuntodetécnicasdeensinobaseadasnasteoriasdacomunicaçãoemqueoalunoéencaradocomoumdispositivoreceptordeinformaçõesinputqueprocessando-aspodedevolvê-lasaomeio,output;aanálisedaqualidadedainformaçãoprocessadapermiteavaliaraaprendizagem.Umadasnovidadesdissotudosãoosmateriaisautoinstrucionais,elaboradosporprogramadoresespecializados,quesegundoalendapermitemaoalunoaprenderconteúdosescolaressozinho,semaintervençãodoprofessor.Postaemmarchanosanossetenta,ainstruçãoprogramadafoiapanacéiapedagógicadaDitaduraMilitar,adquiridaporpreçosaltoscomacelebraçãodoacordoMEC/USAID,quandoaeducaçãopúblicapassouaserestratégiadesegurançanacional. 24 Cf.ElaineMariaFleurySeidl(org.).Prevençãoaousoindevidodedrogas:digasimàvida.Brasilia,CEAD/UnB;SENAD/SGI/PR,1999.Vol.1,pp.20-21.

verve

25 CarlosdosSantosSilva.Drogas!Seeuquiserpararvocêmeajuda?RiodeJaneiro,AutoreseAgentesAssociados,1977.3ªed.,p.17.26 Idem, p. 8.

27 SecretariaMunicipaldeEducaçãodeCriciúma.Criciúmacuidandodasuasaúde:diganãaoàsdrogas.Curitiba,BaseEditora,p.13. 28 Governo do Estado de Santa Catarina. Previda, programa prevenção educação e vida: subsídios de prevenção integral para o educador. Florianópolis, Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Desporto, p. 11. 29 Família;Adolescência;Sexualidade;DST;AIDS;Relacionamento;Amizade;Religiosidade;Valores;MeiosdeComunicação;PoderdeDecisão;ProjetodeVida;ParticipaçãodoJovemnaConstruçãodaHistória;EducaçãoAmbiental;EducaçãoparaoTrânsito;TrabalhoeLazer;RecomendaçõesGerais;AbordagensdePrevenção;DrogasPsicotrópicas;Automedicção;Âlcool;Tabagismo;DrogasVoláteis;Maconhae,finalmente,Cocaína. 30 MaxStirner.OFalsoPrincípiodeNossaEducação.SãoPaulo,Imaginário,2001.31 FolhadeSãoPaulo,01/01/2001. 32 Michel Foucault. “Fobia al Estado” in La Vida de los Hombre Infames — ensayo sobre desviación y dominación. Madrid, La Piqueta, 1990, p. 308. resumo abstract Uma problematização do apelo, cada vez A problematization of appeal, increasmais efetivo e insistente, para que a ingly effective and insistent, to make sociedade participe das decisões society participate in government‘s governamentais por meio de denúncias decisions through denouncing is the final é o ponto de chegada deste trabalho. A destination of this work. It is possible, partir disto pode-se falar de uma espécie based on these elements, to speak of a de pedagogia da denúncia levada a certain type of pedagogy of denounce termo pelos principais meios de comuni-carried out by the mass media œ cação œ televisão, rádio, jornais e rede television, radio, newspaper and school escolar. A abordagem das drogas legais system. The approach given to legal e ilegais encaminhada por órgãos e and illegal drugs by governmental representantes oficiais do Estado agencies and official representatives of brasileiro é apresentada aqui como the Brazilian state is presented as an exemplo do modo de funcionamento de example of the way governmental estratégias de governamentalidade. strategies operate.

criticamosmaisduramenteumpensadorquandoeleofereceumaproposiçãoquenosédesagradável;noentanto,seriamaisrazoávelfazê-loquandosuaproposiçãonoséagradável Nietzsche

antimilitarismo e anarquismo

Se fizermos a qualquer pessoa a pergunta se ela é favorável à guerra, acreditamos que não haverá uma sóquerespondaafirmativamente.Noentanto,qualquer estudo, mesmo não aprofundado, demonstra que nos últimos 50 anos o militarismo cresceu de tal forma no mundo que com exceção do que resta das sociedades primitivas não há uma só sociedade organizada que não esteja fortemente militarizada. O problema é tão complexo e tão vasto que apenas podemos apontar alguns aspectos básicos para serem debatidos. Vamos dividir o tema em três partes para facilitar a análise, ainda que em seus aspectos mais gerais: o soldado profissional em sua estrutura organizacional moderna; o militarismo e a indústria de armamentos e o movimento anarquista em face dessa realidade. Evidentemente durante nossas análises não poderíamosdeixardeenfocaroaspectocríticoanarquista. * JaimeCuberoparticipoudareativaçãodoCentrodeCulturaSocialdeSãoPaulo,nosanos80.Aglutinouanarquistaselibertáriosesetornoureferênciaparamilitantesepesquisadores,acolhendo-noscomgenerosidade,humorecontundência(NotadosEditores).PalestraproferidanaUniversidadeEstadualdoRiodeJaneiroemAgostode1991. 183

Em todos os países, sem exceção, as forças armadas acumularam um poder gigantesco que se projeta em todo o emaranhado político da sociedade contemporânea, apesar de um forte conflito interno de interesses; e parecerem impraticáveis as ditaduras militares à moda antiga nas modernas sociedades industriais. Os controles políticos passam por outras instâncias. Os profissionais da violência mudam no ritmo da constante transformação da tecnologia de guerra, emboraaimagemqueopovotemdosoldadoprofissional seja anacrônica. As pessoas, inclusive as politizadas, preferem permanecer desinformadas e de um modo geral vêem os oficiais superiores das forças armadas como pessoas que tomam decisões políticas e muitos gostariam de ver seus filhos seguindo a carreira militar, principalmente nos EUA, porque uma elite, dentro da profissão, detém o poder real e potencial de exercer controle sobre o comportamento dos outros. A partir do século XIX, as instituições militares de países industrializados tornaram-se organizações integradas com uma elaborada estrutura hierárquica quando a concepção do estado-maior se torna uma necessidade administrativa. Há uma alteração no fundamento da autoridade e da disciplina, uma mudança de dominação autoritária no sentido de manipulação, persuasão, explicação e especialização, apesar da organização militar continuar rigidamente estratificada pelas condições de comando na guerra. A mudança lenta e contínua, o caráter técnico da guerra moderna, exigindo soldados altamente qualificados, faz com que, em qualquer equipe militar complexa, um importante elemento de poder passe a residir em cada membro que deve prestar sua contribuição técnica. Mas sendo o princípio organizacional autoritário a dominação — a emissão de ordens diretas sem que se dê suas razões —, o oficial profissional é um disciplinador. Como toda organização de grande escala hierarquizada burocratiza-se, a instituição militar moderna não escapa à regra. Apartirdocomeçodesteséculo,odesenvolvimentomilitartecnológicotornou-setãoamploquesepodefalardeumarevoluçãoorganizacionaldasforçasarmadas,assimcomohouveumarevoluçãoorganizacionalnaproduçãoindustrial,comaentradadearmasebalísticosnucleares,todotipodefogueteseaviõessuper-sofis-ticados,ainformáticanousodequasetodasasarmas,aguerraquímica,etc.Asforçasarmadasparecemtersetransformadonumgigantescocomplexodeengenharia.Hoje,oprofissionalmilitarsedividenostrêspapéis,oheróiglorioso,oadministradoreotecno-logista,semperderoplanodahierarquiaedaauto-ridade.UmexemploéoRegulamentodeContingênciasparaoExércitoeaMarinhadoBrasilde100páginascom315artigos,muitosdivididosemparágrafosquedevemsercumpridosàrisca.OcapítuloIcomeçacomossinaisderespeitoassim: “1) Todo militar deve aos seus superiores obediência e respeito como tributo à autoridade de que se acham investidos pela lei. 2) As provas de disciplina devem ser manifestadas em todas as circunstâncias de tempo e lugar, por atitudes e gestos precisos, rigorosamente observados. 3) A espontaneidade e a correção dos sinais de respeito são índices seguros do grau de disciplina de uma corporação militar, bem como da educação profissionalemoraldosseuselementos,poissóhomens de músculos flexíveis e bem educados moralmente são capazes de cumprir com perfeição, elegância e boa vontade esta parte do dever militar. 4) Nas escolas, navios, corpos de tropas e estabelecimentos militares ou navais, deve haver maior empenho em que os sinais de respeito regularmentares se transformem em atos reflexos, mediante cuidadosa instrução e continuada exigência”. Do artigo 288, que ocupa quase uma página, sobre cerimônias de compromisso destacamos o seguinte: “O oficial presta em voz alta e pausada o seguinte compromisso: Perante a bandeira e pela minha honra, prometo cumprir os deveres de oficial do Exército e dedicar-me inteiramente ao serviço da Pátria”. Toda uma ideologia contribui para a formação psicológica do profissional militar: a idéia da pátria, o culto e as cerimônias com a bandeira, os hinos, honras aos oficiais superiores, honras funerais, as insígnias, etc. São elementos de um ritual que conforma a submissão e a lealdade ao poder constituído, seja qual for e a própria hierarquia. O subordinado se humilha ante o seu superior e humilha o seu inferior, do chefe supremo até o recruta sobre quem cai o peso da deformação que o sistema faz da condição humana. O recruta não tem a quem humilhar. Mas, modernamente, a tecnologia da guerra é tão complexa que a mera disciplina autoritária não é garantia para a coordenação de um complexo de especialistas. A ação é cada vez mais dependente da eficiênciadecadamembrodogrupodoquedaestrutura disciplinar autoritária. Mas como as ações se fundamentam em violência e crise extrema, as organizações militares se reservam o direito de exercer sanções drásticas contra o seu pessoal. As tensões da vida militar não conduzem à perpetuação da velha ordem como tal, mas à perpetuação de extenso ritualismo e crises de rigidez organizacional. Asforçasarmadastêmcrescidorelativamentenomundo,numaproporçãomuitomaiorqueocrescimentodapopulação.Alémdostreinamentos,aprofissio-nalizaçãosignificaincorporação“numesquemadeferro”edoutrinação.Porprincípio,todoprofissionalmilitarestáobrigadoàhonra.Supõe-sequeahonraassegurealealdadeparacomacarreira.Hojeemdiaháumaprogressivaincapacidadedahonraderesolverastensõesnoseiodaprofissão,apesardosesforçosparatornarcompatívelodesempenhoeaespecialidadetécnica com o código de honra e a busca de glória. Os comportamentos mais surpreendentes se manifestam. No dia 14 deste mês, a rede SBT de televisão, em seu noticiário internacional anunciava que o governo dos EUAexpulsaraemtornodemilmilitareshomossexuais, das três armas, que “aprontaram” na Guerra do Golfo. Alguns setores do movimento gay protestaram informando que isso de nada adiantaria uma vez que o número de homossexuais nas três armas ultrapassa a casa dos cem mil. Segundoasdefiniçõesdahonramilitar,osoldadoprofissionalestá“acimadapolítica”.Emqualquersociedadeautoritáriaestaracimadapolíticasignificaqueooficialestácomprometidocomo“statusquo”.Oconservadorismomilitarproclamaserimprescindívelapropriedadeprivadacomobasedeumaordempolíticaestável,ouapropriedadevinculadaaoEstado,comonospaísescomunistas.Eédadoutrinamilitarqueasguerrassãoinevitáveis:queanaturezadohomemfazcomqueaviolênciaorganizadasejaoárbitrofinalentreasnações.Assim,asguerrassãoessencialmenteaçõespunitivas.Seaguerraéinevitável,justifica-seamáximaeficiênciatécnicaorganizacional.Aaçãomilitaréplanejadaparafacilitarumatotalincorporaçãopolíticaousimplesmente“punir”osforadalei.Exemplo:aguerrarecentedoGolfoPérsico.Ousodaforçanasrelaçõesinternacionaisfoialteradodetalmaneiraquehojeparecemaisapropriadofalarmosdeforçaspoliciaisquemilitares.Oestabelecimentomilitartransforma-senumaforçapolicialcontinuamentepreparadaparaagir.NoamChomsky,numartigosobreasquestõesqueenvolveramaGuerradoGolfo,expressabemopapeldosEUAcomoatualexploradordo“virtual”monopóliodomercadodesegurança,comomeiodeobterconcessõeseconômicasdeoutrospaísesporserviçosprestadoscomopoliciaisdealugueldomundointeiro. A ascensão do administrador militar, significa um maior esforço dos oficiais para se manterem a par das correntesintelectuais.Suaatitudeemrelaçãoàatividadeintelectualéambígua,porquesuafunçãoconsisteemproporcionarsoluçõesespecíficasparacomplexosproblemasadministrativoseorganizacionais.Citemosautilizaçãodaantropologia.Informaçõesantropológicasforamobtidasparasilenciar,porviaaérea,aldeiasasiáticastantoquantoautilizaçãodedadosantropológicosparaassassinarliderançascomunitáriasnaÂsia. Masograndeproblemadomilitarismo,amaissériaquestãoaserencaradaequesóomovimentoanarquistacoloca,estáalémdaestruturadaorganizaçãomilitar.Porquefracassamtodasasconferênciasdepaz?Nãotêmefeitotodososmovimentosdejovensdetodoomundopelacessaçãodasintervençõesarmadas?Muitagentenestemundoépacífica.Lutacontraaguerra.Masograndeemaispoderosoinimigodapazestána“indústriadamorte”,ograndecomplexoindustrialmilitar.Aseconomiasdospaísesdoprimeiromundo,principalmenteosEUA,sãoaltamentemilitarizadas.Osdonosdasgrandesempresas,dasgrandescorporações,bancos,inclusive,maisdoquequalqueroutrogruposocialdetêmosefetivosinstrumentosdopoderpolítico,ocupamposiçõesestratégicasnogoverno,efazemapolíticaemnomedetodaanação.Essesgruposacumulamlucrosexorbitantes,fabulosos,naindústriadearmamentos.Fomentamasguerras,friasequentes,limitadasouamplas,manifestamasintervençõesmilitaresesãoresponsáveispelosriscosqueameaçamahumanidade.Avidanorte-americanaassumiuofeitiodeumanaçãoemguerrapermanenteeodesarma-mentopravalerseriaumaruínaeconômicaemtermoscapitalistas.OpoderosoparqueindustrialdebensdeconsumoqueserveàimagemexternadosEUAtornou-seumgigantescocomplexoindustrial-militar.Osindustriaisdamorteexercempoderosaesinistrainfluêncianomundodehoje.Nomundocapitalistanãoháconciliaçãoentreoidealdepazeasededelucrosdessesmonopólios,dessasmultinacionaisdamorte,que nunca se satisfazem. Atualmente, em torno de dez milhões de pessoas trabalham na indústria da armas e munições dos EUA. Todoorelativoconfortodessagenterepousanosacrifício de soldados e na dizimação de povos estranhos a eles. Daí, as conseqüências desastrosas, que se estendem para países dependentes da esfera do dólar. Daí, o aviltamento dos preços de exportação desses países, controlados que são pela demanda da indústria norteamericana. Osgruposqueauferemlucrosdearmamentosedaguerratêmresponsabilidademaiorpelasituaçãotensacomquetodaahumanidadesedefronta.Elescontamcomacolaboraçãodeeconomistasacadêmicosedeinstituiçõesoficiais,paraelaborartécnicaseconômicasparaaperfeiçoaraeficiênciadomilitarismoeparasolidificaropapelporeledesempenhadonaeconomiaglobal.Hoje,aassociaçãodeinteressesquelucramcomosarmamentoséofatormaisimportantenapromoçãodacorridaarmamentista.NumaaquisiçãodeUS$30bilhõescorrespondentesaequipamentos,suprimentos,eserviçoscompradospelasforçasarmadasepelaComissãodeEnergiaAtômicadosEUA.OslucrosforamdeUS$13,3bilhõesantesdataxaçãoedeUS$6,4bilhõesdepois,considerandoumimpostoderendade52%1. Os lucros obtidos na indústria eletrônica e na exploração de novos metais para uso militar são fantásticos, para uma demanda criada pelo avanço tecnológico. As universidades participam intensamente nas pesquisas e na preparação de pesquisadores caracterizando um dos mais sombrios aspectos que o professorMaurícioTragtenbergchamoude “delinqüência acadêmica”. As grandes corporações, através de seus prepostos no governo, pressionam permanentemente pelo aumento de verbas para o Departamento de Defesa dos EUA.ExemplotípicoéodogrupoRockfellerquando,tendo Nelson Rockfeller como Conselheiro Presidencial e Presidente do Conselho, publicou relatório sobre segurança internacional. Com Henry Kissinger, como relator e diretor do projeto, advogava com êxito o aumento crescente no consumo de armamentos. O grupotemmuitosinvestimentosnaindústriadearmas. Grandes organizações bancárias têm investimentos na indústria bélica e no exterior, investimentos em petróleo, etc. O Chase Manhattan Bank, a Casa de Morgan — a mais famosa de Wall Street —, o City Bank, etc. Está claro que a comunidade financeira nada fará para deter a marcha progressiva dos militaristas e dos que se beneficiam dos armamentos em direção ao Estado militarista e à guerra. Depois da grande exibição de força e tecnologia que foiaGuerranoGolfoPérsico,em17dejulho,foiassinado o acordo sobre o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start) que prevê o corte de 30% do arsenal nuclear de longo alcance. O acordo, um documento de 700 páginas, que ainda deverá ser ratificado pelo Congresso norte-americano e pelo “Soviete Supremo”, da União Soviética, diz selar o fim da guerra fria. Para acreditar seria necessário desconhecer totalmente o retrospecto dos acordos de paz. O primeiro acordo de controle de armamentos nucleares foi assinado em 1968, onde EUA, União Soviética e Inglaterra se comprometiam a suspender a transferência de armas nucleares para outros países. Desse primeiro acordo ao último assinado este ano, ao todo, foram 14 acordos. Todos sabem como foram cumpridos. Os arsenais de guerra cresceram assustadoramente após cada acordo. Apesar da propaganda e do alcance do alarde da mídia sobre esse último acordo assinado numa reunião de cúpula, os EUA ainda ficarão com nove mil armas nucleares estratégicas (admitindo-se que o acordo fosse cumprido) e a União Soviética com sete mil (mísseis intercontinentais com ogivas atômicas), muito mais do que em 1982 quando se iniciaram as negociações para o acordo Start. A verba para o Departamento de Defesa dosEUA,aprovadaemdezembrode1990,foideUS$3,9 trilhões. O orçamento militar da URSS é gigantesco. O próprio Gorbachev admitiu que mais de 40% dos recursos soviéticos são destinados à indústria militar. Osgrandesprodutoresdearmas,naatualidade,estãovoltadosparapaísesdoterceiromundo,quelutamporadquirirtecnologianessaárea.Ocomérciodearmasnãoestánasmãosdos“mercadosdamorte”isolados,mastambémnasmãosdosgovernos.Asvendasaoexteriorimpedemàsindústriasdearmamentosdesofrerflutuaçõesdasencomendasdematerialmilitarealiviaroorçamentodedefesadopaísdeorigem.Comumfaturamentodebilhõesdedólares,asvendasdearmassãoumabençãoparaabalançacomercial.Assim,quandoosEstadosentramemconflitocomumpaísdoterceiromundo,elelutacontratanques,aviõesounaviosqueelesmesmosvenderam.FoiocasodaInglaterraduranteaGuerradaMalvinasedosaliadosnaGuerradoGolfo,umincentivoparaoaumentodosarsenaisdoterceiromundo. Alguns países, como o Brasil, embora de terceiro mundo são produtores de armas e até grandes exportadores. Com total apoio das Forças Armadas vem se preparando para ingressar na era das armas nucleares. Segundo declaração do Ministro, a Marinha inicia o submarino nuclear até 1992; o programa nuclear da Aeronáutica se desenvolve no Instituto de Estudos Avançados, subordinado ao Centro Técnico Aeroespacial, em São José dos Campos; o projeto do Exército, que já gastou US$ 49 milhões, é desenvolvido pelo Centro Tecnológico do Exército, em Curitiba, e trabalhacomoelementochaveparaaproduçãodabomba atômica. A humanidade gasta com armas, em menos de três horas, o equivalente ao orçamento total concedido pela Organização Mundial da Saúde à luta contra a varíola. Em cinco horas, o total que a UNICEF (órgão das nações unidasparaajudaàinfância)destinaanualmenteacriançasnecessitadas.Emdozehoras,umaquantiaqueseriasuficienteparaerradicaramaláriaeenfermidadesendêmicasem66países.Todosospaísesdomundopoderiampagarsuadívidaexternaselhesfossemconcedidoseminvestimentosprodutivosumdécimodototaldespendidocomarmas.Osrecursosdestinadosemmédiaportodosospaísesdomundoàinvestigaçãomédicaconstituemoequivalenteàquintapartedosaplicadosaoestudoedesenvolvimentotecnológicodosetormilitar.Estassãoalgumasdasconclusõesqueumgrupodeeconomistasecientistas,integrantesdeorganizaçõesdedefesadosdireitoshumanosdivulgaram.Segundoasestatísticasdivulgadashá,nospaísessubdesenvolvidos,atualmente,emmédia,umsoldadoparacada250habitanteseummédicoparacada3.700.Paracadacemmilhabitantesdoplaneta,556soldadose85médicos.Gasta-seatualmenteporano,comcadasoldado,US$19.300enquantoqueosfundospúblicosdestinadosàeducaçãosãodeUS$380acadacriança.Ocustodeumcaça-bombardeiroé,emmédia,equivalenteaonecessárioàconstruçãoeequipagemde75hospitaisdecemcamascadaum.Ovalordos27mísseisqueosEUAinstalaramemterritóriosdepaíses-membrosdaOrganizaçãodoTratadodoAtlânticoNortepagariaoinvestimentoemmáquinasagrícolassuficientesparaassegurar,emquatroanos,auto-suficiênciaalimentaraospaísespobres. Osanarquistastêmaconvicçãodequenumasociedadecapitalista,sejadelivremercado,sejadecapitalismodeEstado,omilitarismojamaisseráeliminado.OnacionalismoexacerbadoqueinformatodaideologiadoEstadonacionalmoderno,fonteesustentaçãodeprivilégios,exploraçãoeopressão,emqualquersistemapolíticoquenelesefundamente,tambémsustentaomilitarismo,quesealimentadamesmaideologia.Étradiçãodomovimentoanarquistacombater o militarismo. A luta contra a instituição militar, face às suas características atuais, não pode ser isolada da grande luta pela transformação da sociedade.CombaterocapitalismoeoEstadoéamelhor maneira de combater o militarismo. Libertar as consciências com análises críticas, objetivas, com clareza, mostrando que o problema é muito maior, que vai muito além da farda. Alutavemdelonge.Em1868,oCongressoInternacionalSocialistadeBruxelas,adotaporunani-midadeumaresoluçãoemqueosoperárioseramexortadosatornaraguerraimpossívelpormeiodegrevegeral.Mascontrariandoaproposta,quandoDomelaNienwenhuls,grandemilitantedoanarquismo,propôsnoCongressoInternacionalSocialistade1891,emBruxelas,eem1893,emZurique,querecomendassemagrevegeralearecusademarcharparaaguerra,comomeiodeevitarguerrasameaçadoras,amaioriarejeitouaproposição.Apenas,emZurique,osdelegadosdaAustrália,daFrança,daHolanda,edaNoruegaquiseramaindacontinuaralutasocialistarevolucionáriacontraaguerra.QuandonoprincípiodoséculoXXumaguerramundialameaçavaospovos,DomelaNieuwenhuls,juntamentecomJanvion,Almereyda,IvetoteJourdanconvocaramumcongressoInternacionalAntimilitaristaem1904,emAmsterdam,queserealizouentre26a28dejunhodomesmoano.Haviadelegadosdeváriasregiõesmineiras,querepresentavam116000operários.ComrepresentantesdoscompanheirosdaBoêmia,daFrança,daHolanda,daÂustria,dePortugaledaItália,fizeram-segrandesdemonstrações.Posteriormenterealizaram-sevárioscongressosquederamorigemaoBureauInternacionalAnti-Militarista,B.I.A.,comsedenaHolanda,congregandoasdiferentesorganizaçõesanti-militaristas,tantoanarquistascomosindicalistas.EsseBureaufoifundadonumcongressoInternacionalrealizadoemHaia,emmarçoeabrilde1921,comaseguintedeclaraçãodeprincípios:“OB.I.A. contra a guerra e a reação, composto por organizações anti-militaristas revolucionárias, tem por objetivo trabalhar internacionalmente contra o militarismo. A fim de tornar impossível a guerra e a opressão das classes trabalhadoras, esforça-se por desenvolver no espíritodostrabalhadoresaconsciênciadoseudecisivo poder econômico” “Empreende propaganda de greve geral e recusa em massa do serviço militar”. “Preconiza a cessação imediata de todo o fabrico destinado à guerra e a não participação no militarismo”. “Esforça-se por tornar inúteis as armas e os navios de guerra”. “Rende homenagem a todos aqueles que se recusam individualmente a todo o serviço militar”. “Opõe-se de forma veemente contra qualquer tentativa de nova dominação exercida por intervenção armada contra um proletariado que tenha rompido com o jugo capitalista”. “Opõe-se veemente contra todas as formas de exploração econômica e opressão militar de que são vítimas as raças de cor; procura a união e colaboração do proletariado revolucionário do Norte ao Sul, do Oriente ao Ocidente”. “A organização do B.I.A. é de caráter federativo. No congresso foi expresso o desejo de que todas as organizações anti-militaristas revolucionárias de um determinado país se unissem num Bureau Nacional, que trabalharia tanto quanto possível de acordo com o B.I.A. Compõe-sepelomenosdeummembroemcadapaísondeexistamorganizaçõesaderentes.EsteBureaudesigna,porumespaçodetempodeterminado,umcertopaís,ondeestejadomiciliadooComitêExecutivo.OCongressodesignouosPaíses-Baixos.OComitêExecutivonãotempoderdirigente.Fazcorrespondência,recolhedados,enviacomunicadosàimprensa,estudatantoquantopossívelasrelaçõespolíticaseeconômicasinternacionais,lançaoalarmeinternacionalmenteemcaso de guerra imediata, incita a agir no sentido da declaraçãodeprincípioseestimulaemseguidaportodos os meios, conforme está fixado no programa e é aceito como meio de luta.” Depois de arrolar uma espécie de trabalhos desenvolvidos pelo B.I.A., o Secretário do Comitê Executivo comunica os futuros congressos até o de janeiro de 1923, em Berlim, com as adesões da Argentina, Finlândia, Itália e Brasil. A divisa do B.I.A. era a seguinte: “nem um homem, nem um centavo, nem um gesto a favor do militarismo”. Depois da Segunda Guerra Mundial, o B.I.A. deu lugar à “Internacional dos Resistentes à Guerra”, com sede na Inglaterra. Editando um Boletim em inglês e francês, com edições mimeografadas também em alemão e esperanto, sua propaganda sempre foi dirigida para o Movimento dos Objetores de Consciência. Os objetores de consciência desenvolvem uma luta contra o serviço militar obrigatório e o direito à insubmissão. Vale a pena conhecer o manifesto dos objetores de consciência publicado, recentemente, numa revista argentina: “Manifesto dos Insubmissos: Os objetores de consciência, que estamos recebendo ordens de incorporação ao Exército para prestar o serviço militar, queremos dar ao recrutamento forçado uma resposta ativa e coletiva, apresentando-nos publicamente ante a Jurisdição Militar, para a qual é delito nossa postura pacífica e solidária, e manifestamos: 1) Que fazemos objeção de consciência negandonos a prestar o serviço militar; conscientes de que com isso estamos contribuindo para que as relações entre as pessoas e os povos sejam baseadas na justiça e na solidariedade. 2) Que somos partidários da liberdade, da responsabilidade, da participação e da paz e entendemos que tudo isso contraria a lógica militar. Por isso, não queremos colaborar com o Exército prestando o Serviço Militar, por entender que se o fizéssemos estaríamos afirmando valores negativos, como a obediência cega, o machismo, a dominação e opoder.Estaríamoscolaborandocomachamadaordem econômica internacional; transformar-nos-íamos em consumidores de orçamentos astronômicos que, impedindo o desenvolvimento desviam os recursos do planeta para a guerra e a destruição. Não queremos ser parte do Exército porque não queremos ser instância necessária da dominação de umas nações sobre outras, do domínio de umas pessoas sobre outras. 3) Que ao negarmos expressamente a prestação do serviço militar entendemos que não podemos ser considerados como militares, mas mantemos sempre nossa condição de civis. 4) Que somos objetores de consciência, sem necessidade de que nenhum organismo administrativo tenha porque declarar nossa condição como tal, no âmbito de uma lei cujo objetivo é conseguir que o protesto contra o serviço militar obrigatório, que os objetores de consciência fazem, não seja levado em consideração. 5) Que a imposição de uma prestação de serviço por outra que a substitua, para os objetores de consciência não tem sentido se não é entendida no âmbito do recrutamento forçado. 6) Que fazemos um chamamento a toda a população para que da mesma forma que nós, desobedeçam as imposições militares fazendo objeção de consciência (antes, durante e depois do serviço militar) impedindo a implantação das mulheres nas forças armadas. Não cumprindo as tarefas que substituem o serviço militar e combatendo o financiamento das despesas militares mediante a objeção fiscal. Por tudo isso, entendemos que nossa oposição a verve toda conscrição, a todo recrutamento, ainda que sob ameaça de prisão, constitui um gesto de responsabilidade social que estamos dispostos a levar adiante e para o qual esperamos o apoio e a compreensão de toda a sociedade civil”2. Como já dissemos, a luta dos anarquistas contra o militarismo significa uma luta maior. A história da origem e desenvolvimento dos mercadores de armas revela-os como uma ameaça crescente. Toda guerra moderna ameaça envolver metade do mundo. O negócio da indústria cresce constantemente e os governos, em toda parte, estreitam os laços que os ligam, numa parceria com os mercadores da morte. A guerra já aparece como maior e mais importante atividade dos governos. O desarmamento e a verdadeira paz só serão atingidos quando as forças representadas pelos fabricantes de armas forem esmagadas e eliminadas. O problema do desarmamento e da verdadeira paz é, por conseguinte, oproblema de construir uma nova civilização. É a grande luta dos anarquistas. E no aqui e agora só resta às pessoas interessadas apoiar todas as ações e todos os movimentos contra a guerra. Lutar contra o nacionalismo, o chauvinismo onde quer que eles se apresentem, na escola, na imprensa, no trabalho e em todos os lugares. A guerra é feita pelo homem; e a paz, na nova sociedade, quando chegar, também será feita pelo homem. Notas: 1 Extraídode:VictorPerlo.Militarismoeindústria:armamentoselucrosnaeradosprojéteis.RiodeJaneiro,PaeseTerra,1969. 2 Manifesto da FOSMO — Frente de Oposição ao Serviço Militar Obrigatório — publicado na revista La Letra A, anarquista, de Buenos Aires, julho de 1991.

revolta e ética anarquista

Estudar a memória do Centro de Cultura Social e de seus membros é um trabalho de geração. Fundado em 14 de Janeiro de 1933, ele é resultante de uma tradição anarquistaqueremontaaoiníciodoséculoXXcomuma intensa atividade anarco-sindicalista na cidade de São Paulo. No início do século passado, o sindicato foi o grande baluarte das lutas e reivindicações operárias de influência anarquista; houve outras frentes de batalha dos libertários, como o anti-clericalismo e o anti-militarismo, mas quase sempre foram conduzidas tendo à frente o sindicato operário como força de mobilização para a prática revolucionária. Os antecedentes históricos do anarco-sindicalismo brasileiro são encontrados na fundação da Associação Internacional de Trabalhadores, conhecida como 1ª Internacional, no dia 28 de setembro de 1864, durante o meeting de St. Martin´s Hall, em Londres. O histórico da 1ª Internacional é fundamental para se entender o movimento social europeu e seus desdobramentos futuro, correspondendo aos anos de 1860-1870, uma * Mestrando em Ciências Sociais na PUC-SP e integrante do Centro de Cultura Social de São Paulo. década localizada entre os acontecimentos de 1848 e a Comuna de Paris, refletindo o despertar do movimento operário para um radicalismo crescente. Algunsdostraçosdistintivosdaaçãosindicalistarevolucionáriasãoencontradosjáno1ºCongressodeGenebra,em1866,quandonaseçãododia5desetembrosãodiscutidososonzeartigosquecompõemseusestatutosprovisórios.Emrelaçãoaoartigo8º,quetratadascondiçõesexigidasparaadesão,ocongressoregistra“umalongaeanimadadiscussão”1; parte da assembléia pede que qualquer cidadão, mesmo não sendo trabalhador manual, possa fazer parte da Associação; já os delegados de Paris e Suíça, em sua maioria proudhonianos, exigiam ao contrário, a qualidade de trabalhador manual, sob alegação de que a Associação poderia ser vítima de muitos ambiciosos e aventureiros, objetivando tornarem-se senhores da Associação e utilizá-la para seu próprio interesse. Depois de longa discussão, a assembléia pronunciou que: “SeráadmitidocomomembrodaAssociaçãoInternacionaldeTrabalhadoresqualquerhomemquepossajustificarsuaqualidadedetrabalhador;destemodo,cadaseçãoteráliberdadeparaadmitir,sobsuaresponsabilidade,aquemjulgueconveniente”2. Todavia,apolêmicareaparecenaseçãododia8,novamenteenvolvendoosproudhonianos,edestaveznadiscussãodoitem11dos“regulamentosespeciais”daAssociação,oqualdispunhaque“cadamembrodaAssociaçãotemdireitoavotareservotadoparadelegação”3. NestaocasiãoTolain,delegadodaseçãoparisiense,objeta: “Se é indiferente admitir como membro da Associação Internacional cidadãos de todas as classes, trabalhador ou não, não deve ocorrer o mesmo quando se trata de eleger um delegado. Em presença da organização social atual em que a classe trabalhadora sustenta uma luta sem trégua nem descanso contra a classe burguesa, é útil, é mesmo indispensável que todososhomensquesejamencarregadosderepresentar grupos operários, sejam trabalhadores”4. A mencionada preocupação do proudhoniano Tolain, que ao querer como delegados dos operários apenas trabalhadores manuais, além de exteriorizar sua desconfiança das profissões liberais de origem burguesa, denota igualmente, e com mais força, a influência das idéias de Proudhon, e mais particularmente de sua obra póstuma ACapacidadePolíticada Classe Operária, na qual Proudhon coloca o operário como sujeito da ação revolucionária sem qualquer intermediação. Com isso quero afirmar que, abstraindo as origens filosóficas do anarquismo e de sua eventual filiação em revoltaseaspiraçõespopularesdeumpassadoanterior, é certo dizer que seu aparecimento enquanto movimento social definido se dá como expressão do movimento operário, como sindicalismo revolucionário desde o berço. Proudhon, considerado o “pai do anarquismo moderno”, tem ele mesmo origem operária e todo seu pensamento constituiu uma reflexão sobre a realidade destes a quem ele considerava “irmãos de miséria”; após sua morte, o pequeno grupo que irá constituir o núcleo da AIT na França se declarará mutualista. Desta forma, o anarquismo ganha expressão de movimento social, inicialmente, vendo no sindicato o grupo essencial, o órgão específico da luta de classes e o núcleo re-organizador da sociedade futura: a emancipação operária se daria pela prática revolucionária na luta solidária dos operários contra os patrões, cujo o objetivo buscava a organização e a crescente federação dos sindicatos. Se essas são as origens das práticas anarquistas, muito ainda se daria com a cisão da 1ª Internacional entre centralistas e federalistas, uma nova orientação seria dada às concepções anarquistas do sindicalismo. Durante o congresso de Berna, em 1876, a discussão sobre a origem dos delegados da Associação foi reacendida e o discurso de Errico Malatesta, então delegado da seção italiana, estende o anarquismo para além da causa operária ao afirmar “que a Internacional não deve ser uma associação exclusivamente operária” e que “o fim da revolução social, com efeito, não é só a emancipação da classe operária, mas a emancipação da humanidade inteira”5.MalatestahaviacompreendidooscismasintestinosquedividiramaInternacional,extraindodelesensinamentosqueseriamadotadospelosanarco-sindicalistasdetodomundo.Suanotoriedadeenquantopensadorehomemdeaçãojáerabastantesentidanestaépoca,oquetornousuainfluênciamuitoforteentreosanarquistas.NumartigoreproduzidoporNenoVasco,nasuaConcepçãoanarquistadosindicalismo, o autor destaca as seguintes palavras de Malatesta: “Na Internacional, fundada como federação de associações de resistência para dar mais larga base à luta econômica contra o capitalismo, bem depressa se manifestaram duas tendências: uma autoritária outra libertária, que dividiram os internacionalistas em duas facções inimigas, conhecidas ao menos nas duas alas extremas, pelas designações dos nomes de Marx e Bakunin. UmqueriafazerdaAssociaçãoumcorpodisciplinadoàsordensdumaComissãocentral,osoutrosqueriamqueelafosseumalivrefederaçãodegruposautônomos;unsqueriamsubmeteramassaparafazer,conformearançosasuperstiçãoautoritária,obemdelaàforça,osoutrosqueriamsublevá-laeinduzí-laaemancipar-seporsimesma;masumtraçocomumcaracterizavaosinspiradoresdasduasfacções:unseoutrosprestavamàmassadosassociadosassuasprópriasidéias,julgandoqueatinhamconvertidoquandohaviamobtidoasuaadesãomaisoumenosinconsciente”6. Malatestaconcluiseuartigoafirmandoquenãosepodecometerosmesmoserroseque“ascausasqueporfimamataram,istoé,aoposiçãoentreautoritárioselibertáriosdumlado,edooutroadistânciaexistenteentreoshomensdeidéiaseamassasemi-conscientesómovidapelosinteresses [imediatos], acham-se hoje prontas para impedir o nascimento e o crescimento de uma nova Internacional,quefossecomoaprimeiraaomesmotempo sociedade de resistência econômica, oficina de idéias e associação revolucionária”7. E por fim, fornecendo a orientação que seria adotada pelos sindicalistas revolucionários, termina Malatesta dizendo que: “AnovaInternacionalsópodeserumaassociaçãodestinadaareunirtodososoperários(istoé,omaiornúmerodeles)semdistinçãodeopiniõessociais,políticasereligiosasparaalutacontraocapitalismo,eporissonãodevesernemindividualista,nemcoletivista,nemcomunista;nãodevesernemmonárquica,nemrepublicana,nemanarquista;nãodevesernemreligiosanemanti-religiosa.Ònicaidéiacomum,únicacondiçãodeadmissão:querercombaterospatrões”.8 Esses foram alguns dos desdobramentos que sofreram as concepções anarquistas e os militantes brasileiros estavam sensíveis a tais desenvolvimentos; é forçoso dizer que tais mudanças de concepção foram frutos da experiência de seus militantes, dos erros e acertos do próprio movimento. Este fato foi mal compreendido por diversos historiadores que atribuem este caráter de organização do movimento operário brasileiro a uma fase “primária” ou “pré-política” de sua evolução. Porém, sendo em si uma questão de método de grande relevância política para os anarquistas, por ele pautaram-se os congressos operários brasileiros ocorridos respectivamente em 1906, 1913 e 1920, garantindo os princípios do sindicalismo revolucionário nos moldes europeus. Comaproliferaçãodasligasoperáriasduranteosanos de 1903 à 1905, em novembro de 1905 é criada a FOSP (Federação Operária de São Paulo) e em abril do mesmo ano já acontece o “I Congresso Operário Brasileiro”. A presença dos anarquistas é decisiva para orientar osprincipaisrumosdomovimento.Entreoutrascoisas, combateramaorientaçãopolíticadomovimento,devendoesteserorientadoapenaseconomicamente:ossindicatossãoórgãosderesistênciaeconômica,devendoabster-sedoprocessoeleitoraledasquestõesreligiosas;osanarquistascombateramasposiçõesdosmoderadosdequeumaburocraciaremuneradadina-mizariaomovimento:defenderamquearemuneraçãodeveriaacontecerapenasparaumexecutivoporsindicatosomenteemcasosecircunstânciasmuitoespeciais,equeosalárionãoexcedesseodosdemaistrabalhadoressindicalizados;osanarquistastambémpropuseramacriaçãodaCOB(ConfederaçãoOperáriaBrasileira).DentreasResoluçõesdoICongressoOperárioBrasileiro,valedestacarduas:sobreorientaçãoemodalidadessindicais. Sobre orientação, aprovou o congresso: “Considerando que o operariado se acha extremamente dividido pelas suas opiniões políticas e religiosas; que a única base sólida de acordo e de ação são os interesses econômicos comuns a toda classe operária, os de mais clara e pronta compreensão; que todos os trabalhadores, ensinados pela experiência e desiludidos da salvação vinda de fora de sua vontade e ação, reconhecem a necessidade iniludível da ação econômica direta de pressão e resistência, sem a qual, ainda para os mais legalitários, não há lei que valha. O I Congresso Operário aconselha o proletariado a organizar-se em sociedade de resistência econômica, agrupamento essencial, e sem abandonar a defesa, pela ação direta, dos rudimentares direitos políticos de que necessitam as organizações econômicas, a pôr fora do sindicato a luta política especial de um partido e as rivalidades que resultariam da adoção, pela associação de resistência, de uma doutrina política ou religiosa, ou de um programa eleitoral.”9 Em modalidades sindicais foi vivamente rejeitada a remuneração de cargos nos sindicatos por serem suscetíveis de “produzir rivalidades e intrigas, ambições nocivas à organização” e por atraírem “indivíduos unicamente desejosos de se emancipar individualmente, trabalhandocomoexclusivofimdeperceberoordenado”10.Noscasosexcepcionaisporexcessodosserviçossindicais,erapermitidoumúnicoexpedientequenãorecebesseordenadosuperioraosalárionormaldaprofissão.OCongressodecidequeessefuncionárionãovotariaenempoderiaservotadoequeparataiscargosseriamadmitidosaquelessóciosinutilizadospelotrabalho Ocongressoaindarejeitaaintervençãonossindi-catosdepessoasmovidasporinteressescontráriosouporidéiasesentimentosestranhosaosinteressesdosoperários,edecidenãoadmitirpatrõesenemqualquerespéciedenão-trabalhadores,masapenasunicamenteassalariados;tambémimpedeainclusãodemestresecontra-mestresporseremosrepresentantesdospatrões.Sobreasconquistasimediatas,entreaumentodesalárioediminuiçãodashorasdetrabalho,estaúltimaépreferidapelocongresso,poisqueodescansofacilitaoestudo,aeducaçãoassociativa,aemancipaçãointelectualecombateoalccolismo,frutodoexcessodetrabalhoembrutecedoreexaustivo11.Enfim,ocongresso aprova campanha de denúncias contra a imigração, incitando os colonos “a não emigrarem para o Brasil, enquanto vigorar a escravidão nas fazendas”. Duranteo2ºCongressoOperárioBrasileiro,realizadoem1913nacidadedoRiodeJaneiro,foraapresentadapelaFederaçãoOperáriaLocaldeSantosumamoçãoparaqueaquelainstâncianacionalrecomendasseapropagandaanarquistanossindicatos;amoçãofoirejeitadatendoEdgarLeuenroth,militanteexpressivodoanarquismodaépoca,seopostopelofatodelaviolaroprincípiodeneutralidadedossindicatoselimitarseuapelo12. Os anarquistas pretendiam com a neutralidade sindical ressaltar o que havia de essencial no sindicalismo revolucionário13: a organização e a ação diretadooperário.Osindicatoeraomeiode“estarentre as massas” e, ao invés de impor-lhes um programa, devia-se incitar o operário a agir por ele mesmo e cultivar a consciência do antagonismo de classe e a necessidade da luta coletiva. Noentanto,outraquestãoseimpõe:seporumladoosindicatonãopodeenemdeveserdeclaradoartificialmenteanarquista,poroutroéprecisoevitaroqueosanarquistaschamaramde“automatismosindical”,quetendeaatribuirvirtudesintrínsecasaosindicalismo,virtudesqueconduziriam“automaticamente”e“fatalmente”aumatransformaçãodasociedade.Sustentavamosanarquistasque“ofatoeaaçãosóvalemenquantoproduzemaidéia,enquantosãorefletidos,enquantocriamumpensamentodiretor”14,daíoriscodasconquistassindicaisresultaremestéreisdopontodevistadoprojetorevolucionário.Contrapondo-seaestasituação, osindicatoeraconcebidocomoinstrumentodepreparaçãodoterrenoparareceberasementelançadapelapropagandarevolucionária.Semapropaganda,comentaNenoVasco,“asmassas,emboraassociadas,nãosaberiaminterpretarosfatos,nemaproveitarascircunstâncias,lendo,pelocontrário,asliçõesdaexperiêncianosentidomaisgratoàsuapreguiçaeàsuainércia”15.

É aqui que a luta econômica liga-se a uma ética e uma estética anarquistas que ultrapassam o limitado e sufocante cotidiano fabril; novos lugares são inventados e um novo cotidiano é dado ao indivíduo na forma de bibliotecas, conferências, concertos, piqueniques, espetáculos filo-dramáticos e musicais, realizados pelos sindicatos ou por outras organizações por eles criadas comooCentrodeCulturaSocialdeSãoPaulo.Sãolugares cujo objetivo é fazer o operário encontrar, nas palavras de Neno Vasco, “o conforto convidativo da luz, do ar e da arte [antípodas do ambiente fabril], eí-lo definitivamente roubado às consolações dúbias do botequim e das ilusórias fustigações do álcool [...] A música, o teatro, a arte declamatória, enchendo os merecidos ócios do trabalhador, enriquecendo-lhe o cérebro, burilando-lhe

o sentimento!”16.

O tema da subjetividade é hoje bastante relevante nas pesquisas em ciências sociais. Guattari17 chamou a atenção para a importância dos fatores subjetivos em acontecimentos como a revolta dos estudantes chineses e o colapso da ex-URSS na medida em que foram acompanhados de um estilo de vida, de uma concepção das relações sociais e de uma ética e estética coletivas. São práticas que criam valores a partir dos quais os indivíduos se posicionam em relação aos seus desejos e afetos na gestão de suas pulsões. Não se trata, no anarquismo, de valores universalistas, mas de criações heterogêneas e poéticas no sentido etimológico deste termo. E neste aspecto, Foucault chamou de “artes da existência [...] práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”18. Avidacomopoesia,querdizer,avidacomocriaçãoencontranoanarquismoumaproximidadeirredutível.Deumladoeladelineiaregrasfacultativasdecondutaedeoutrosearticulacomoantípodadadominaçãosimbólicaestatal,comoredesarticuladasdeanti-disciplinaparafazerfrenteàdisciplinaindustrialdapaulicéia19.Aprisão,afábrica,ohospitaleasvilasoperárias,possuíamoscorposdosoperárioseconcorriamparasuadocilidade;eraprecisosubtrair-lhesasvontadesque,buriladapelapropagandaanarquista,despertavanaexistênciaainvençãodeoutroshorizontes.ÉcomooanarquistaHebertReadconcebeuaarteesuafunçãocriadora;segundoele: “Para criar é preciso destruir, e o agente da destruição na sociedade é o poeta. Eu creio que o poeta é necessariamente anarquista, e que deve opor-se a todas asconcepçõesorganizadasdeEstado,nãosomenteasque herdamos do passado, mas também aquelas impostas à humanidade em nome do futuro. Neste sentido não faço distinção entre fascismo e marxismo”20. Com este objetivo, as práticas de centros de cultura e grupos filo-dramáticos foram privilegiadas; já no II Congresso Estadual Operário de São Paulo, em 1908, é aprovada a resolução que “aconselha aos sindicatos a fundaçãodecentrosdramáticossociaisedesessõesonde se entretenham os sócios em palestras amigáveis”21;EdgarRodriguescontacomoarepresentaçãodapeçaanticlericalElectraemSábadodeAleluiaescandalizouasociedadepaulistanoanode1901,assimcomonoanode1902ojornalOAmigodoPovonoticiaarepresentação — interrompida pela polícia — da peça Primo Maggio de Pietro Gori22;essesprimeirosregistrosdeatividadesdramaturgassinalizamumprocessoanteriordeassociaçãoeautoconhecimentodomovimentofomentadopelaatividadesindical;registra-seumaintensaatividadedramaturganacidadedeSãoPaulo,comfinalidadesdiversas:desolidariedade,propaganda,comemoraçãoousimplesentretenimento.Asatividadestinhamgeralmenteoseguinteformato:1)ConcertoMusicaldehinosoucançõesoperáriaserevolucionárias;2)Conferênciadealgumtemarelevante;3)Representaçãoteatral,e;4)Baile.“Erahábitocomemoraro1º deMaio,14deJulho(tomadadaBastilha)eo13deOutubro(fuzilamentodeFerrer)comrepresentaçãodepeçassociais”23.OanarquismoganhaadimensãodavidadosindivíduoseissoéverificadonumilustrativoartigoescritopelomilitantepaulistaSouzaPassosnojornalAPlebe,em16/07/1948,noqualafirmaquenãosepodereterdoanarquismoapenasseuaspectodecríticasocialemdetrimentodesuafinalidadeestética,egrifaque“aarte,essencialmenteanárquica,porqueé,semdúvida,aexpressãomaislivredoindividualismoequetemumafunçãocriadora,quasenuncaestaligadaaosmotivosdelutaecombate(...).Istotemfeitocomque(...)nãoseconcebaoanarquismosenãocomoumidealdefamintos,apenascomoinstrumentodereivindicaçõesproletárias,encerradonumproblemaeconômicoemoraldasmassas trabalhadoras”24. Podem ser destacados vários temas valorizados dentro desta ética anarquista, mas falaremos de um deles, e o mais relevante: o espírito da revolta. O anarquista A. Hamon, depois de coletar os resultados de um questionário aplicado em 1893, visando descobriro“estadod’alma”dosadeptosdoanarquismo, chegou à conclusão de que “todos os anarquistassocialistas são revoltados, embora nem todo revoltado seja um anarquista-socialista”25. No anarquismo, a rebelião do indivíduo é a condição primeira de sua libertação do sistema autoritário; por ela, o indivíduo se coloca em estado de perpétua desobediência frente aos guardiães da autoridade. Não é uma revolta lógica, mas visceral, é um grito como nas palavras de Proudhon: “A cólera, a indignação, o desespero, todas as paixões de uma alma exaltada que, sentindo-se esmaga por uma força superior quer, antes de morrer, lançar seu dardo o mais profundamente possível: tais têm sido as verdadeiras motivações de minha conduta política”.26 O tema da revolta leva, no anarquismo, à questão da auto-responsabilidade do indivíduo27 no sentido em que, negando-se a tutela da autoridade, o indivíduo chama para si o governo e a responsabilidade de seus atos. Implica faculdade ética como conteúdo moral, que Proudhon denomina moral imanente; se em Kant o conteúdo moral é transcendente, em Proudhon e no anarquismo ele é imanente ao indivíduo. Ora, esse é um tema de grande atualidade e corrobora as teses foucaultianas do “cuidado de si”. Na estética da existência grega, Foucault chamou a atenção para as práticas que constituem uma “moral” cuja importância recai nas formas das relações que o indivíduo mantêm consigo, nos procedimentos pelos quais essas práticas são elaboradas e nos exercícios pelos quais os indivíduos permitem transformar seu próprio modo de ser; por isso Foucault disse que esta seria uma moral orientadaparaaética, ao contrário da moral cujo valor verve

recai sobre os códigos ligados a instâncias de autoridade que os fazem valer pela imposição sob pena de incorrer num castigo. É assim que “agir livremente” implica “querer livremente”, e o anarquista acaba por autoconstituirse enquanto indivíduo com vontade autônoma em sua relação com o outro. As conseqüências são uma reelaboração das práticas sociais e a invenção de um estilo devidasingular.O“homemrevoltado”éumdosgrandes temas para se estudar a ética no anarquismo, e dele podemos tirar lições valiosas para nossa época. Notas 1 JacquesFreymond.LaPrimeraInternacional.TomoI.Madrid,EditoraZero,1973.2 Ibidem, p. 93. 3 Ibidem, p. 112. 4 Ibidem, p. 113 5 NenoVasco.Concepçãoanarquistadosindicalismo.Porto,Afrontamento,1984, pp. 87-88. 6 Ibidem, pp. 89-90. 7 Ibidem, p. 90. 8 Ibidem, pp. 90-91. 9 EdgarRodrigues.Oanarquismonaescola,noteatro,napoesia.RiodeJaneiro, Achiamé, 1992, p. 121. 10 Ibidem, p. 125. 11 Ibidem, p. 129. 12 Maram Sheldon Leslie. Anarquistas, Imigrantes e o movimento operário brasileiro –

1890/1920.RiodeJaneiro,PazeTerra,1979,p.92.13 Ostermosanarco-sindicalismoesindicalismorevolucionáriosãogeralmenteempregadosparadistinguirosindicalismodetipoanarquista,commétodosdeaçãodiretaefederalista,daquelesindicalismoligadoainstânciasdepoderequesepautapelométododarepresentação;umaoutradistinçãoserefereàsquestõesdeconcepção:na1ªInternacionalossindicalistascriticavamnasTrade´sUnions“suaobradereaçãoimediata”epredicavamqueasubmissãodotrabalhoéafontedaservidãopolítica,moralematerial;assim,oobjetivodaaçãosindicalistaeraodaemancipaçãointegraldotrabalhadorpeloprópriotrabalhador. 14 NenoVasco,op.cit.,p.97.15 Idem, p. 101. 16 Neno Vasco, 1984, pp. 130-131. 17 FélixGuatarri.Caosmose–umnovoparadigmaestético.SãoPaulo,Ed.34,1992.18 MichelFoucault.HistóriadaSexualidade2–ousodosprazeres.7ª ed., Rio de

Janeiro, Graal, 1984, p. 15. 19 MargarethRago.Docabaréaolar–autopiadacidadedisciplinar(Brasil1890-1930).2ªed.,RiodeJaneiro,PazeTerra,1987.20 HerbertRead.Anarquiayordem.BuenosAires,Tupac,1959,p.60.21MariaTherezaVargas.TeatrooperárionacidadedeSãoPaulo.SãoPaulo:Secretaria MunicipaldeCultura,DepartamentodeInformaçãoeDocumentaçãoArtística, CentrodePesquisadeArteBrasileira,1980,p.13.22 EdgarRodrigues.Oanarquismonaescola,noteatro,napoesia.RiodeJaneiro,Achiamé,1992,p.110-111. 23 Ibidem, p. 112. 24 MariaTherezaVargaas.op.cit.,pp.142-143.25 Hamon Augustín . Psicolojia do Anarquista-Socialista. Lisboa, Guimarães

Editores, 1915, p. 59. 26 Heintz Peter . Problemática de la autoridade en Proudhon. Buenos Aires, Ed. Proyección, 1963, p. 141. 27 Ibidem.

resumo abstract ApartirdanoçãodeestéticadaFromtheconceptofaestheticofexistênciadeMichelFoucault,oexistenceofMichelFoucault,thisarticlepresenteartigodiscutecomopráticasdiscusseshowanarchistculturalculturaisanarquistaslevamaumapracticesleadtoaproblematizationofproblematizaçãodapessoaeatheindividualandtheconstructionofaconstruçãodeumasubjetividadelibertariansubjectivity.Thethemeoflibertária.Otemadarevoltaleva,norevolt,inanarchism,conductstotheanarquismo,àquestãodaauto-questionofself-responsibility.Byresponsabilidadedoindivíduonodenyingtheguardianshipofauthority,sentidoemque,negando-seatutelatheindividualassumeforhimselfthedaautoridade,oindivíduochamaparagovernmentandresponsibilityforhissiogovernoearesponsabilidadedeacts.seusatos.

anatomia da crise: do sindicalismo revolucionário ao colaboracionismo cooperativista

Aoconceituarochamado“trabalhismocarioca”,BorisFaustodeuimportantecontribuiçãoàinvestigaçãodasorigensdocooperativismonoBrasil.Entreoutrasconclusões,ohistoriadorafirmaque,apartirdasuabasenoRiodeJaneiro,ocooperativismoteriadominadoacenasindical,naúltimadécadadoséculoXIX,perdendogradativamente,noiníciodoséculoseguinte, o controle de grande parte das organizações operárias para os sindicalistas anarquistas.1 Aperdadesuaprimazianãoimpediu,noentanto,queemmuitasassociaçõespermanecessemvestígiosdeantigaspráticas,galvanizadasembasesdeacordoenaformaçãodegruposinternosdissidentes.Nasfranjasdasorganizaçõesoperáriasmaisexpressivas,manti-veram-seativosossindicatosdescomprometidoscomosnovosprincípiosdosindicalismorevolucionário.AdisposiçãoematribuiraoEstadoainterlocuçãoeopapel *MembrodoCírculodeEstudosLibertáriosIdealPereseprofessordeHistória. ** Membro do Círculo de Estudos Libertários Ideal Peres e pesquisador. 211

mediador nos conflitos de natureza salarial e operária não desapareceu. Emmuitosaspectos,oentãoDistritoFederalreuniaascondiçõesnecessáriasàpermanênciadetaisaspirações,graçasaumaelitepolíticadeoposiçãoqueacenavaconstantementecomapossibilidadedeconsecuçãodaharmoniasocialatravésdasinstituiçõesdoEstado.Entretanto,associadaaocampodapolítica,aquestãosocial,sobperfiloperário,serviuaprojetosquepossuíampoucoapoiopopular.ParaBorisFausto: “Semdúvida,ossetoresintermediárioscarecemsocialepoliticamentedehomogeneidade.Aindaassim,aexistênciadestessetoresemumasituaçãodemenordependênciadasclassesagráriaseascaracterísticasapontadasdoproletariadonascentedãofundamentoaostímidosprojetosdeconstituiçãodepartidosoperáriosdotipotrabalhista.”2 ComoavançodoséculoXX,os“trabalhistas”perdemgradualmentemuitosdosespaçosconquistadosnaúltimadécadadoséculoanterior.Oprotagonismodaestratégiasindicalanarquistaempurrou,emumnãolongoespaçodetempo,oscooperativistasparaocampodeoposiçãoaonovoelementodeinspiraçãoorganizativa.Adespeitodealgunscontatospontuaisamistosos,osanarquistascedodemarcaramasdiferençasentreumaeoutracorrente,conformeselênaVozdoTrabalhadorde1908: “Nãohádúvidaqueoslibertários,maisdoqueosoutroshomenshãodecontarcomaforçadaassociação,porquetudooesperamdalivreafinidadeentreaspersonalidadeslivres;masnãocreioqueasassociaçõescooperativasdetrabalhadorespossamrealizarumatransformaçãoimportantenasociedade.Astentativasfeitasnestesentidosãoexperiênciasúteisedevemosfelicitar-nosdequetenhamsidopostasemprática;porémbastam,ejápodemosformarsobreoassuntoumjuízo.”3 As primeiras críticas ao cooperativismo aconteceram dentro da polidez e ponderação típicas dos debates de idéias. O “Primeiro Congresso Operário”, no Rio de Janeiro, em 1906, contou com a presença de Mariano Garcia e Antônio Augusto Pinto Machado, dois líderes históricos do movimento reformista. Os debates marcaram, a partir das divergências ideológicas presentes nos discursos, definitivamente as diferenças e os campos de atuação dos dois segmentos de representação dos interesses dos trabalhadores. Dessa forma, a expressão que assumiram os sindicalistas revolucionários e a própria difusão do ideário anarquista, que não cessava de crescer nos meios operários, rivalizava ainda com iniciativas paralelas dos cooperativistas. Estes, a despeito do crescimento da proposta de radical independência oriunda do programa anarquista, insistiam em organizar entidades que deveriam atuar em conformidade com os princípios de um tipo específico de evolucionismo positivista. Algumas experiências cooperativistas calcadas no “culto ao trabalho”4, como a do funcionário do Arsenal deGuerra,FranciscoJuvêncioSaddockdeSá,iniciadas ainda em 1900, buscavam inserir alguns setores do operariado estatal na lógica de organização reformista. Saddock de Sá, que não abandonou a luta associativa até sua morte em 19215, foi um bom exemplo de organizadordeclasseque,paragarantirmelhoriaspara os operários do Estado, não hesitou em isolá-los das propostas congêneres do período. De forma ilustrativa podemos evidenciar tal comportamento quando o “Círculo de Operários da União”, fundado em 1909 e dirigido pelo referido funcionário, recusou-se a comparecer ao “Congresso Operário” convocado pelos reformistas em 1912. Embora as organizações de cunho cooperativo compartilhassem dos mesmos interesses, ao priorizarem a via de diálogo permanente com o governo, nem todas buscavam uma ação conjunta. Após alguns anos de debilidades os reformistas retornariam com relativa força em meados dos anos 10 e seriam, em 1912, a condição fundamental para a organização do “Congresso Operário”, sob a tutela do Tenente Mário Hermes da Fonseca, filho do Presidente Hermes da Fonseca.6 Deste encontro resultaram a consolidação das propostas reformistas e a formação da “Confederação Brasileira do Trabalho”, organismo que combinava, simbioticamente, funções organizativa e partidária. No seu antagonismo às propostas libertárias, os “trabalhistas”, a partir de 1912, segundo Boris Fausto, davam ênfase aos melhoramentos econômicos; às elevações social, intelectual e moral da classe, evitando o envolvimento do proletariado nas questões internacionalistas, antimilitaristas, antiestatais e nos problemasdaorganizaçãodapropriedade.Naapreciação dos “trabalhistas”, o meio utilizado pelos sindicalistas revolucionários, a ação direta, era incapaz de garantir as transformações sociais necessárias à classe operária. O caminho preferencial era o da política, dentro dos quadros do sistema. Argumentavam que, em um país guarnecido por instituições democráticas, o abandono, por parte do proletariado do exercício dos direitos políticos, conduziria ao predomínio das figuras mais conservadoras e comprometidas com o capital.7 Em harmônica parceria com estes princípios trabalhava desde 1907, ano da aprovação do decreto lei nº 1637 de incentivo às cooperativas, o funcionário do Ministério da Agricultura, Custódio Alfredo de Sarandy Raposo8. Este “sindicalista” muito depressa se tornou o expoente máximo de uma linha associativa ainda mais estreitamente ligada às instituições do governo; diferente de Saddock de Sá, que aceitava dialogar, mas não se beneficiava diretamente das instâncias do Executivo, Sarandy Raposo encarnou o paroxismo do “colaboracionismo de classe”. Osanarquistas,apósumabrevepolíticadetolerância com relação a Sarandy Raposo9 e os princípios do cooperativismo, iniciam pesada investida contra as iniciativas nesse sentido. Organizado pela “Confederação Operária Brasileira” (COB), o “Segundo Congresso Operário”, de setembro de 1913, delibera então, entre outras questões, o combate ao cooperativismo. E, no seu jornal, AVozdoTrabalhador, a Confederação publicava sua posição: “Bemsabemosqueosgovernos,parasetornarempopulares,parasemostraremliberaiscostumamfomentarapropagandadestascataplasmas,destasiscastraiçoeiras,comooéocooperativismoorapropagadoporinfluênciadoministériodaagricultura—eofazemjustamenteparadesviarem,porumaenganosamelhoria—hipocritamentefilantrópicos—comosãotodosquevivemparasitariamente—comofimde,distraindoostrabalhadorescomestechamariz,desviando-osdocaminhojátraçadoequedevemcontinuar,implantar-lhesadiscórdia,adesorientação,sabedorescomoestãodequeenquantoassimacontecemaissevaimantendoaescravidãooperáriaeporconseguinteprolongandoaorgiadosquebacanalmentevivem.”10 RespondendoaumacircularenviadaporSarandyRaposo,do“EscritóriodeInformaçõessobreSindicatoseCooperativos”,órgãoligadoaoMinistériodaAgricultura,aossecretáriosdoCOB,estesutilizariam,maisumavez,oveículoclassista,AVozdoTrabalhador: CidadãoC.A.SarandyRaposo. — Recebemos a vossa circular, e mais os estudos do Sindicato Profissional dos Operários do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro e da Cooperativa de Consumo dos Operários do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Em resposta a ela temos a declarar-vos: Que absolutamente de modo nenhum queremos aceitar o ‘sindicalismo e o cooperativismo’ propagados e auxiliados pelas autoridades do país. E não os queremos aceitar pelo seguinte: esta Confederação e todas as federações e sindicatos que a compõem são organismos de luta, de combate, essencialmente baseados na resistência à exploração capitalista. Ora, sendo as autoridades governamentais simples instrumentos de defesa da classe capitalista, evidenciase desde logo que com elas só poderemos ter uma espécie de relação — a resultante da luta quotidiana e tenaz, que constitui a mesma base em que assentam as nossas organizações.”11 Aos olhos dos anarquistas a classe operária já havia optado pelo protagonismo histórico de sua luta; ceder ao cooperativismo não só representaria retrocesso como, também, o triunfo da classe contra a qual se deveria lutar. O ano de 1917 confirmaria os prognósticos dos sindicalistas revolucionários do Rio de Janeiro. Na sucessão de greves, motins e levantes armados, que se prolongarampeloanoseguinte,oscooperativistas,além de manterem as associações a eles ligadas alheias às lutas, manifestariam reiteradas vezes seu apoio ao governo12. Este fato acirraria ainda mais as disputas pelo espaço sindical que, a partir de então, não se circunscreveriam apenas ao plano do livre debate. O ano de 1921 foi significativo para Sarandy Raposo, pois neste período, na vigência do governo Epitácio Pessoa, ele ampliaria ainda mais sua inserção nos meios operários. Boa parte de seu sucesso deveu-se ao “auxílio pecuniário” fornecido pelo governo, possibilitando, em março de 1921, a fundação da Confederação Sindical Cooperativista do Brasil, a CSCB.13 O falecimento de Saddock de Sá, representante da outra vertente cooperativa, naquele mesmo ano, implicaria em alguma medida na ampliação das bases sociais do fundador da CSCB. A ação de Sarandy Raposo parece ganhar mais notoriedade em conformidade com a sua assunção na orientação da “Seção Operária” do periódico governista OPaís, em fevereiro de 1923.14 Estampados nas páginas do jornal, encontramos não só os presságios de inspiração triunfalista como também apelos eloqüentes ao governo para o auxílio às suas iniciativas. Tentando representar o espírito da conciliação, a CSCB contava com a colaboração de patrões e empregados, além de “prestigiosas instituições”. Procurava, com o apoio da Liga de Defesa Nacional, a Sociedade Nacional de Agricultura, o Centro Industrial do Brasil e o Instituto de Engenharia Militar,15 manterse no limite entre as reivindicações sociais e os interesses patronais. Os cooperativistas, no intuito de captar simpatias e firmarem-se como síntese do processo traumático da luta entre capital e trabalho, traçavam estratégias que se caracterizavam por ataques nem sempre dissimulados ao anarquismo, enfatizando e associando aos libertários o viés violento da revolução. Em contrapartida, reforçavam, na mesma proporção, a sua vocação “apaziguadora” e conciliatória. Dentro da lógica de ampliar ao máximo sua esfera de representação, não demorou muito, a CSCB, a tomar a iniciativa de se aproximar dos sindicatos dirigidos pelos comunistas. Parecia uma aliança quase natural na medida em que os preceitos do sindicalismo revolucionário, eminentemente anarquistas, impossibilitavam de todo o crescimento da base de diálogo com o governo. Os comunistas, virtuais antagonistas dos anarquistas no campo revolucionário, ao contrário destes, não rejeitavam a participação nos espaços formais de representação e, em última análise, haviamtrazidoparaocampodo“bolchevismo”muitodo prestígio adquirido no meio operário em décadas anteriores de hegemonia anarquista. Para Sarandy Raposo, a exemplo do que previam os cooperativistas para o anarquismo, ao contrário do fortalecimento da facção “neo-comunista”16,a “confluência” dos membros do PC para CSCB era uma questão de tempo, ou amadurecimento. E, como ensejo a esta apreciação, um acordo com os mesmos, em que estavaprevistaaformaçãodagrande“frenteproletária”, parecia razoável. Não só os anarquistas, mas mesmo alguns comunistas, entre eles Antônio Bernardo Canellas, viram no projeto um oportunismo vergonhoso. A aprovação, através de pressões internas, na CSCB, da inserção das disputas eleitorais nos planos táticos da entidade, aproximou-a ainda mais das premissas dos comunistas. Assim: “ACSCB,apartirdeentão,precisavaremodelarsuasprópriaslinhasdeconvergênciaedivergênciacomasduasoutrasfacçõesexistentesnomovimentooperário.Suadistânciaemfacedoanarquismocrescia.Quando,emoutubrode1923,umaassembléiageraldaConfederaçãoaprovouformalmenteapráticadaaçãoparlamentar,oslibertáriosestavamsendodefinidoscomo‘oinimigoirreconciliáveldosindicalismocooperativista,docomunismo,dogovernorusso,detodososgovernoseatédetodarevoluçãolimitada.” Jáosneocomunistasestavamcadavezmaisnocaminhodaevolução,apresentando‘emsuasatitudeseseusatos,judiciosastendênciasparaapráticadocooperativismoeatédaaçãoparlamentar,tendênciasestasqueosaproximamdaeficiênciadosindicalismocooperativista.”17 Ao receberem um convite para a “Conferência dos Presidentes das Associações de Classe”, organizada por cooperativistas e comunistas, os sindicalistas anarquistas iniciam uma seqüência extensa de artigosresposta. Não só para justificar sua objeção em participardetalencontrocomotambémparaevidenciar as opiniões sobre a aliança “frentista”. O operário maleiro e sindicalista anarquista Antônio Vaz18, para demonstrar a impossibilidade de colaborar com a “frente” convocada pelos cooperativistas, evidenciava, em um de seus artigos publicados em A Pátria19, as finalidades do estatuto de uma cooperativa ligada a CSCB em Petrópolis: ‘”Art 2o -São seus fins: a) Promover entre os seus membros e para eles, a vendadetodososgênerosdeconsumoagrícolas,pastoris e industriais, adquiridos diretamente ou indiretamente; b) Adquirir para serem vendidos aos sócios, todas as mercadorias e manufaturas domésticas produzidas por sócios e suas famílias; c) Adquirir terras e instrumentos de trabalho para sócios que desejarem residir em regiões rurais, mediante pagamento a prazo e em produtos agrícolas. Art 3o -Para o primeiro item (a) do artigo 2o,a Cooperativa de Consumo estabelecerá em local apropriado, um armazém regional e tantos armazéns distritais quantos necessários se tornarem pelo desenvolvimento de suas operações e aumento de numero de sócios consumidores. Art. 4o -Para o segundo item (b) do art. 2o, instalará, por intermédio do Sindicato Profissional, tantas cooperativas distritais de consumo forem os grupos de sete ou mais aderentes a estes estatutos, que realizem qualquer cultura ou indústria doméstica, por si ou suas famílias, ou que residam em regiões rurais, onde possam colaborar como adquiridores diretos de mercadorias necessárias ao consumo dos membros das cooperativas urbanas de consumo. Art. 5o -Para o terceiro item (c) do art. 2o, organizará nas regiões rurais, por intermédio do Sindicato Profissional, pequenas cooperativas de produção em terrenos coletivos, até que esses terrenos se tornem propriedadesindividuais,mediantepagamentodaparte destinada a cada sócio, na forma indicada no mesmo item (c) do art. 2º.”20 Segundo Antônio Vaz o “canto de sereia” do cooperativismo não resolveria o problema social, mas “insuflaria em seus cooperadores” a falsa crença na harmonia com os regimes de “salariato” e propriedade. Assim: “Como se vê não visam nem a extinção do dinheiro, nem da lei, isto é, aceitam a sociedade conforme está constituída — com todo o vampirismo, toda a opressão do forte contra o fraco, a exploração do senhor contra o escravo. Não resolvem nem a questão econômica, nem política, nem social. São trambolhos aos quais o proletariadosódeveligarparaafastá-losdoseucaminho com a ponta do pé.”21 Vaz também denunciava a influência negativa do aparecimento de cooperativas em locais onde já existiam sindicatos de resistência, tomando como exemplo o fechamento da sucursal da União dos Operários em Fábricas de Tecidos, no bairro da Cascatinha, em Petrópolis, causado pela fundação da cooperativa dos operários da Companhia Petropolitana. Segundo este, a sucursal da UOFT: “(...) não seria vista com bons olhos pelos magnatas do industrialismo desse bairro. Não hesitamos por isso até afirmar que foram eles os primeiros a sugerir a criação dessa tal cooperativa com o fito de desnortear seus assalariados, de lhes desviar a atenção da Sucursal. Mas mesmo não sendo eles os promotores diretos e indiretos de tais “arapucas” irrecusáveis aceitam mais depressa uma cooperativa que em nada os prejudica, do que uma organização que procura esclarecer seus componentes, pondo-lhes bem diante dos olhos os motivos do seu mal-estar, de sua miséria em contraste com a abastança dos plutocratas.”22 No Distrito Federal, as cooperativas de operários têxteis fundadas nos bairros da Gávea, Vila Isabel e Andaraí, ocasionaram um influxo irreversível na União, que, já em 1923, não era mais ocupada de maneira preponderante pelos sindicalistas anarquistas que a haviam fundado em 1918. Ainda no mesmo contexto, o operário sócio da União GeraldosTrabalhadoresemHotéis,Restaurantes,Cafés e Similares, Manuel A. Pereira, ao denunciar a colaboração do Centro Cosmopolita23 com os cooperativistas, aproveitava para definir, com alguma ironia, a sua opinião sobre o líder reformista e suas relações com o PCB: “Mas isso é vergonhoso. Porque se há traidores, se há quem esteja de acordo com o patronato, esteéosr. Sarandy Raposo que, como presidente da Confederação S. Cooperativista, a quem deseja ver filiadas todas as associações operárias do Brasil (pasmai, oh! gentes!), defende o interesse das duas classes. O Sr. Sarandy quererá negar que o Centro Industrial do Brasil, a Liga de Defesa Nacional, Centro dos Proprietários de Hotéis e outras associações retintamente burguesas fazem parte da Confederação? Quererá negar? O Sr. Sarandy, cujas intenções políticas estão sendo exploradas pelos bolchevistas da zona (que por sua vez fornecem meios de exploração política ao sr. Sarandy) quererá dizer que a Confederação só defende os interesses das associações operárias? Não quererá dizer! Mas se se atrever a tal nós os desmascararíamos com os seus próprios atos. Pescadores de águas turvas, filadores, candidatos a deputados, a senadores, a ministros, a comissários do povo, a ditadores — tudo tem passado pelo campo dos trabalhadores de todo mundo. Os do Brasil também já têm sido vítimas de muitos embusteiros; e se não se precaverem agora serão novamente vítimas — e vítimas do mais audacioso de todos os empreiteiros da gamela orçamental.”24 Mas talvez um dos artigos mais significativos seja o de Antônio Bernardo Canellas, particularmente por ser ele um comunista assumido25. Ao denunciar o interesse do PC nos cem mil filiados da CSCB — número anunciado pela própria Confederação em sua convocatória para a “Conferência dos Presidentes das Associações de Classe”26 — Canellas critica duramente a aliança articulada por Astrojildo Pereira e a ingenuidade dos comunistas ao franquearem à pregação reformista espaços sindicais antes exclusivos dos revolucionários.Segundoocomunista,afrenteproposta pelo Komintern confundia-se, dessa forma, com a “unificação atuadora” pregada por Sarandy Raposo. E conclui: “O autor do nosso Duhring pró-mussoliniano é agora o Sr. Sarandy Raposo. Vamos ver o que vai sair dessa aliança realizada com assistência passiva dos comunistas oficiais, que deste modo malbaratam o prestigio da revolução russa, à sombra da qual têm vivido e que é pena seja assim tão mal aproveitada.”27 AvinculaçãodoscomunistasdirigentesdaFederação dos Trabalhadores do Rio de Janeiro (FTRJ) à CSCB, denunciada nas “primeiras horas” pelo anarquista Marques da Costa, responsável pela coluna trabalhista de A Pátria28,seencontravaexpressanarepresentaçãoquepossuíaaAssociaçãodosGráficosdoRiodeJaneiro,nareferidaConfederação,apartirdosócioAstrojildoPereira.Assimcomo,a“SeçãoOperária”,dojornalligadoaadministraçãodeArthurBernardes,OPaís,tambémabrigavaartigosdecomunistascomoOctávioBrandão29 que, sob pseudônimo, divulgavam as premissas do partido no Brasil. Mesmo, o segundo número do jornal oficial do PCB, A Classe Operária, foi impresso nas oficinas gráficas do periódico governista30. A despeito da estratégia que iriam adotar os comunistas no Bloco Operário, nos pleitos de 1927, ao apoiarem os nomes de políticos “pequeno-burgueses” como Azevedo Lima e Mário Rodrigues31 e a ação junto aos sindicatos cooperativistas, em agosto daquele mesmo ano, o governo baixa a “lei celerada”32.Talmedidairiaafetarduramenteaspretensõesdeascensãodomovimentocomunistaedificultariaaindamaisamanutençãodeummodelosindicalrevolucionário.Mas,dealgumaforma,arelaçãoqueseestabeleceuentreosmembrosdoPCBeoslíderesreformistashabilitouaqueles a uma sobrevivência relativa no meio sindical da década seguinte. A experiência adquirida nas manobras trabalhistas no interior do estamento oficial, observadasmuitodepertopeloscomunistas,possibilitou a sobrevivência dos “bolchevistas” à crise do sindicalismo revolucionário. Destarte,podemosobservarsemmaioresdificuldades,queacrisepelaqualpassaosindicalismorevolucionário,nosanosqueseseguiramàpesadarepressãodosórgãosdepolíciaeleisdedeportação,foicausadaporumaperdagradativademilitantesjogadosemcárceres,internadosnoexíliodoOiapoque,assassinadosporagentesdepolícia,convertidosao“bolchevismo”eaoavançodocorporativismo“trabalhista”.Entretanto,oanarquismo,nasdécadasposterioresaoadventodosindicalismocorporativo,iriaaindasemantercomoumvigorosoconjuntodoutrináriodecríticaaocapitalismoeàsestruturasdepodervigentesnopaís.Aopçãoposteriordosanarquistaspelaaglutinaçãodesuasforçasemtornodeperiódicosdecombate,ligasanticlericaisecentrosdeculturadeveu-se,emgrandemedida,àperdadeseuvetordeinserçãosocial,osindicalismorevolucionário.Carentedeumaestratégiamaisconcretadeclasse,oanarquismoperderiamuitodesuavisibilidadesocial,apesardemantersuavigênciaideológica.Ateoriaanarquista,dessaforma,nopós-30,iriasecaracterizarcomoexpressãoculturalemanancialrevolucionárioaseroferecidoaosgrupossociaisemrebeliãocontraqualqueralternativainstitucionaldereforma. Notas 1 BorisFausto.TrabalhoUrbanoeConflitoSocial.SãoPaulo,Difel,1977,p.41.2 Ibidem,p.42.AVozdoTrabalhador,15/08/1908. 4 AngeladeCastroGomes.AInvençãodoTrabalhismo.SãoPaulo,Vértice;RiodeJaneiro,IUPERJ,1988,p.123.5 Ibidem, p. 56. 6 Fausto.op.cit.,p.55.7 Ibidem, p. 56. 8 Castro Gomes. op. cit. p. 124. 9 Ibidem. 10 AVozdoTrabalhador,15/10/1913.11 Ibidem. 12 Castro Gomes, p. 125. 13 Ibidem, p. 159. 14 Ibidem.

15 Ibidem. 16 NosprimeirosanosapósafundaçãodoPartidoComunistadoBrasilseusmilitantesforam,emdeterminadasocasiões,qualificadosnaimprensaoperáriaenascolunastrabalhistasde“neo-comunistas”.Talfatoexplica-sepelautilizaçãodotermocomunistaparaidentificardeterminadastendênciasnointeriordopróprioanarquismo. 17 Castro Gomes. op. cit., p. 164. 18 OportuguêsAntônioVazfoideportadoparaoseupaísdeorigemem1924.EdgarRodrigues.OsCompanheiros.RiodeJaneiro,VJR,1994,p.39.19A Pátria 11/11/1923. 20 Ibidem. 21 Ibidem. 22 A Pátria 21/11/1923. 23 O Centro Cosmopolita, fundado em 1903, local do “Segundo Congresso

Operário”,em1913,eraumaassociaçãodecaráterclassista.Osseusfiliadospertenciamaosegmentodos“gastronômicos”eprestavam,nopróprioestabelecimento,serviços,denaturezadiversa,ligadosàclasse.AtéafundaçãodoPCBesteveoCentrosobhegemoniadosanarquistas;após1923passaaintegrarogrupodeassociaçõesligadasaos“bolchevistas”.Nesteperíodo,oCentroCosmopolita,passaadisputarcomaUniãoGeraldosTrabalhadoresemHotéis,Restaurantes,CaféseSimilaresalegitimidadejuntoàclasse. 24 A Pátria 01/11/1923. 25 AntônioBernardoCanellasfoiprotagonistadeumdosprimeiroscasosdeexpurgodoPCBnosanos20.VerEdgardCarone.“UmaPolêmicanosPrimórdiosdoPCB:OincidenteCanellaseAstrojildo(1923)”.InMemória&História,SãoPaulo,LivrariaEditoraCiênciasHumanasLtda.,1981. verve

26 A Pátria 27/10/1923. 27 Ibidem, 04/05/1924. 28 Ibidem, 17/08/1923. 29 OctávioBrandão.CombateseBatalhas.SãoPaulo,Alfa-Omega,1987,p.240. 30 AlexandreRibeiroSamis.ClevelândiadoNorte:anarquistas,repressãoeexíliointernonoBrasildosanos20.UERJ,DissertaçãodeMestrado,2000. 31 MárioRodrigueseraàépocaoproprietáriodojornalAManhã,apoiouoBlocoOperárioeseucandidatoAzevedoLima.Ojornalistacandidatou-setambém,nomesmoperíodo,àintendênciadoDistritoFederal.VerSamis.op.cit.p.338. 32 AleiAníbaldeToledo,deagostode1927,inspiradanassuascongêneresde1907,1913e1921,atualizavaasmedidasdedeportaçãoeperseguiçãoaoelemento“radical”nopaís.Alei,porsuaimpopularidade,ficouconhecidanosmeiosoperárioscomo“celerada”. resumo abstract OtextoprocurademonstraratrajetóriaThisarticleseekstodemonstratethedosindicalismonoBrasilapartirdohistoryoftradeunionisminBrazilininíciodoséculoXX.Asdisputasentrethebeginningofthe20thcentury.Theosmodelossindicais—trabalhista“,disputeamongunionistmodelsofanarquistaecomunistadefiniram,em—workers“,anarchistsandcommunists, grandemedida,astransformaçõesnaslargelyshapedthechangesofestratégiasdogovernoparaenfrentargovernmentstrategiesinfightinglaborasorganizaçõesoperárias.Aorganizations.Thedifferencesbetweenaproximaçãodoscomunistasdesocialistandanarchistbecamedeepertendênciasreformistascomowiththeapproachofthesocialistwithcooperativismoampliouaindamaisasareformistorientation.Thecrisisthatdivergênciasentreaqueleseoshasafflictedtherevolutionaryunionismanarquistas.Taisquerelaspodem,cominthelate1920s,canbeanalyzed,inalgumaprecisão,esquadrinharossomedegree,bythestudyofthosemotivosdacrisequeabateufightsamongsocialistfactions. profundamente o sindicalismo revolucionário no fim da década de 1920.

mistério e hierarquia

Um Emqualquercidadedoplaneta,nãoimportaseutamanho,hápelomenosumapessoaquesedizanarquista.Estapresençasolitáriaeinsólitasegu-ramenteocultaumsignificadoquetranscendeoterritóriodapolítica,damesmamaneiraqueadispersãotriunfantedassementesnãopodeserresumidaapenascomolutapelasobrevivênciadeumalinhagembotânica.Talvezaevolução“anímica”dasespéciespolíticassejaequivalenteàsabedoriadaaspersãoseminalnanatureza.Damesmamaneira,asidéiasanarquistasnãoforamnuncaorientadaspormétodosintensivosdo“plantio”ideológico-partidário:espalharam-seseguindoasondulaçõesinorgânicasdaervaplebéia.UmpensamentoqueteveinícionametadedoséculoXIX,conseguiuproliferarsobreumabasebastantefrágilnaSuíça,ItáliaeEspanha,atéchegaraserconhecidopraticamenteemtodolugarhabitadodoplaneta.Assim, * ProfessordaUniversidaddeBuenosAires,editordarevistaArtefactoeautordediversoslivrossobretemasanarquistas.TraduçãodeNataliaMontebello. é possível considerar o anarquismo, depois da evangelização cristã e a expansão capitalista, a experiência migratória mais bem sucedida da história do mundo. Quem sabe seja este o motivo pelo qual a palavra “anarquia”, antiga e ressonante, esteja ainda aqui, apesar dos agouros que deram por acabada a história libertária. Referir-se ao anarquismo supõe um tipo de “milagre da palavra”, sonoridade lingüística quase equivalente a acordarmos vivos cada novo dia. Também pode ser considerado um milagre o fato de que o ideal anarquista tenha aparecido na história, uma dádiva da política; sendo a política, por sua vez, uma dádiva da imaginação humana. A persistência desta palavra se sustenta, sem dúvida, em sua potência crítica, na qual habitamtantoopânicocomooconsolo,ambosderivados do estilo “de garra” e da sede de urgência próprios dos anarquistas: suas biografias sempre adquiriram o contorno da brasa ardente. Mas se a idéia anarquista persiste é também porque nas significações que ela absorve se condensa o mal-estar que a hierarquia gera. Porém, para a maior parte das pessoas, o anarquismo, como saber político e como projeto comunitário, transformou-se num mistério. Não necessariamente em algo desconhecido ou impossível de conhecer, mas em algo semelhante a um mistério. Incompreensível, inaudível. Invisível. Não há indício de que a aparição histórica do anarquismo no século XIX fosse um acontecimento necessário. As ideologias operárias, o socialismo, o comunismo, foram frutos inevitáveis, germinados na selva da vida industrial. Mas o anarquismo não: sua presença foi um acontecimento inesperado, e é possível especular que poderia nunca ter se apresentado em sociedade alguma. Sei que uma tal suposição é inútil, pois o anarquismo efetivamente existiu, e qualquer historiador profissional saberá dispersar bandeiras causais sobre o mapa da evolução das idéias operárias e da política de esquerda. Mas a ucronia que esta especulação supõe não é ociosa. Facetas políticas do anarquismo estavam presentes nas idéias marxistas, nas idéias liberais, nas construções comunitárias dos primeiros sindicatos. Por que, então, este hóspede incômodo e inesperado fez seu abrupto e notório aparecimento e se instalou como uma farpa nas idéias políticas de seu tempo? Foi o anarquismo uma errata no livro político da modernidade? Penso que o mistério desta anomalia política é diretamente proporcional ao mistério da existência da hierarquia. Erro ou dádiva, sua difícil persistência e o fato de que em certos momentos a população confiou e depositou no anarquismoachavedecompreensãodosegredodopoder hierárquico e, ao mesmo tempo, um ideal de sua dissolução, faz supor que esta idéia desmesurada é a única saída existencial que aquela época ofereceu a sofredores e ofendidos, que ainda tem força, mesmo que sua voz não consiga atravessar a barreira do som midiática e política. Cada época segrega uma zona secreta, um tipo de “inconsciente político” que opera como um ponto cego e centro de gravidade soterrado que não admite ser pensado por um povo, e as linguagens que tentam penetrar nessa zona são tratadas como blasfemas, ictéricas ou exógenas. O anarquismo foi o estilhaço, o irritador dessa zona, a invenção moderna que a própria comunidade, obscuramente, precisou, para poder compreender provisoriamente o enigma do poder. Toda época e toda experiência comunitária propõem interrogações quase sem solução para seus habitantes.É exatamente por isso que em toda cidade estão distribuídos alguns recintos e rituais que devem tornar provisoriamente compreensíveis seu mal-estar e seus enigmas. Assim, prostíbulo, igreja, estádio de futebol e sala de cinema acolhem as interrogações proferidas pelo desejo, a criação do mundo, a guerra e os sonhos. O anarquismo acolheu interrogações associadas ao poder, foi a cratera histórica pela qual emanaram respostasradicaisaoproblema,aencruzilhadadeidéiasepráticasnaqualsecondensouodramadopoder.Ofatodeque,emsuaslinguagenseemsuascondutas,asinceridadeconsumasseumvínculosólidoepeculiarcomapolítica,deuaessemovimentodeidéiasumapotestadesingular,subtraídaparasempreaomarxismo-leninismoeaorepublicanismodemocrata,obrigadosacontínuasnegociaçõesentremeiosefins.Acondutairredutível,ofundamentalismodaconsciência,aconvicçãoinegociável,apolíticadacontrapotência,foramasqualidadesmoraisquegarantiramqueaimaginaçãopopularconfiasseemlíderessindicaisanarquistasouemcertoshomensexemplares,mesmoquandoaquelesquesediziamanarquistasfossemumaminoriademográficanocampopolítico.Essadeterminaçãodemográficaexplicaporqueasvidasdosanarquistasforamtãoimportantesquantosuasidéiasteóricas.Cadavidaanarquistaeraaprovadaliberdadeprometida,otestemunhovivodequeumapartedaliberdadeabsolutaforaprometidaeexistianaterra. A hierarquia se apresenta diante de milhões como uma verticalidade, imemorial como uma pirâmide e perene como um deus. Pouco menos que invencível. Mas a história de um povo é a história de suas possibilidades existenciais, e o reaparecimento esporádico da questão do anarquismo — isto é, da pergunta pelo poder hierárquico — significa, talvez, que essa possibilidade permanece em aberto, e que através dela filtra-se o retorno de tudo que é reprimido no território da política. Logo, o anarquismo seria uma substância moral flutuante que atrai intermitentemente as energias refratárias da população. Opera como um fenômeno raro, como um eclipse ou um arco-íris duplo, um ponto de atração dos olhares que precisam compreenderopoderseparadodacomunidade.Aúltima das terras raras da tabela periódica dos elementos de Mendeleiev. Seria possível dizer que o anarquismo não existe, mas insiste. Dois Evoca-se toda palavra como objeto de museu, mas também se degusta como um fruto apenas arrancado do galho. No ato de nomear, um equilíbrio sonoro consegue que se evidencie um resto animador na rotineira fossilização das palavras. O anarquismo, que conviveu intimamente com esse equilíbrio por muito tempo, debate-se hoje entre ser tratado como resto temático pela paleontologia historicista e sua vontade de continuar sendo uma ramificação da ética (uma possível moral coletiva) e uma filosofia política vital. Resolver esta questão requer identificar seu “drama cultural”,conformadoporparadoxoseporredemoinhos de tensões que se tornam evidentes em situações de extremo perigo ou quando o tempo de uma idéia começa a esgotar-se. Sabe-se que a luta por expandir os limites da liberdade, mito político, consigna e emblema afetivo vitorioso que mobilizou as energias emotivas de milhões de pessoas, foi a paixão do século XIX. No final desse século o mito da liberdade separou-se em três direções, orientadas pelo comunismo, o reformismo e o anarquismo. Quando aquela paixão política foi “capturada” vitoriosamente pelo marxismo e endossada a todo o imaginário e à maquinaria que conhecemos sob o nome de “comunismo”, ou de suas várias ramificações paralelas, não somente foi desdobrado um modelo de ação política e de subjetivação do militante, mas também um triunfo histórico que ao mesmo tempo iniciaria — ainda que inadvertidamente para seus fiéis — seu “drama cultural”: a cristalização liberticida de uma idéia num molde, despótico-nacional primeiro, depois imperial. Décadas mais tarde, custou-lhe muito caro à esquerda a longa subordinação sem crítica ao modelo soviético. A obsessão pela eficácia e o centralismo autoritário, a relação oportunista entre meios e fins, os silêncios diante do intolerável, são cargas históricas pesadas demais até para um santoou um titã. É muito difícil que volte a aparecer uma crença no “modelo” asiático de revolução e, lentamente, os partidos autodenominados marxistas vão se transformando em grupos apóstatas ou em seitas em vias de extinção. Suas linguagens e seus símbolos rangem e se dispersam, talvez para sempre. Odramaculturaldoreformismosocialdemocratatambémderiva,emparte,curiosaoutristemente,deseuêxitocomoeficazsubstitutodocaminho“maxi-malista”detransformaçãosocial.Asexpectativasdepositadasnospartidosreformistasforamenormesnamaioriadospaísesocidentais,entreaPrimeiraGuerrae1991,anodofimdoregimecomunistanaUniãoSoviética.A“genialidade”doreformismoresidiuemsuahabilidadeparadeviremumeficazmediadorentrepoderosose“perdedores”,eparahumanizaressarelação.Mascomopassardotempo,asocialdemocraciadeixouderepresentarumavançoemrelaçãoàculturapolíticaconservadoraparasetransformarnoidealdeadministraçãodoestadodecoisasnasdemocraciasocidentais.A“atualização”dospartidosdedireita,odesaparecimentodo“cosmossoviético”earenovadapujançadocapitalismonasduasúltimasdécadastornaramasocialdemocraciaincapazdediferenciar-sedadireitaliberal,alémdosbarulhentosrituaismoralistas,sendoaindaarecentepropostada“terceiravia”poucomenosqueumfarolpublicitário.Seudramaculturaléquea“reforma”élevadaadianteporforçasquetradicionalmenteforamconsideradasdedireita,inclusivequandoasmudançassãofeitasporlíderesdecentro-esquerda.Perdidoomonopóliodatransformaçãonocapitalismotardio,esendoasreformasprote-cionistascomparativamentepaupérrimasemrelaçãoàatualedescarnadaconstruçãodomundo,ocicloculturaldoreformismocomeçaaestreitar-sedramaticamente.Jáéumamoralderetaguarda. O comunismo pareceu sempre uma corrente fluvial quesedirigia,impetuosamente,paraumadesem-bocaduranatural:ooceanopós-históricounificadordahumanidade.Paraseuscríticos,esserioestavasujo,irremediavelmentepoluído,masinclusiveparaeleseraimpossíveldeteracorrente.Entretanto,esseriosecoucomoseumsolsuperpotenteotivessedissolvidoapenasnuminstante.Restouapenasomoldevaziodoleito.Easestriasquealirestam,earessacaacumulada,jáestãosendonumeradaseclassificadasporhistoriadoresecuradoresdeexposições.Seinsistíssemoscomasmetáforashidrográficas,nãocorresponderiaaoanarquismoafiguradorio,massimadogêiser,comotambémadotrasbordamento,dainundação,doriosubterrâneo,datormenta,doredemoinhodomar,doromperdaonda,doolhodatormenta.Fenômenosnaturais,todos,inesperadosedesordenados,aindaquedotadosdeumapotênciaparticulareirrepetível.Estediademadefluídosjánosadvertesobreseudrama,noqualnãosepodemconciliarseupoderdetranstornaresuafrágilpersistênciaposterior,suacapacidadeparaagitaremobilizaromal-estarsocialdeumaépocaesuaincapacidadeparagarantirumasociabilidadeharmoniosadepoisdapurgadeumasituaçãopolítica,suatradiçãoimpetuosadeacossoéticoàpolíticadadominaçãoesuadificuldadeparaamplificarseusistemadeidéias.Apalavra“anarquismo”temaindaumsonoro,mesmoquefocalizado,prestígiopolítico(tendo-sesalvadodasmáculasendossáveisaomarxismo,jáquesuasmútuasbiografiasdivergiramháumbomtempo).Esseprestígio—talvezumpoucoequívoco—estátingidodeumacortenebrosa,quenãodeixadeserpercebidapormuitojovenscomoumaauralírica.Otenebrosoacoplaoanarquismoàviolênciaeaojacobinismoplebeu;olírico,aodesejodepurezaeàintransigência. Mas não há quase anarquistas, ou então suas vozes não são audíveis. Talvez nunca existissem muitos, se aceitamos que a definição de anarquista supõe uma identidade“forte”,esforçadoativismoderesultadosmínimos,eumaéticaexigente.Ascircunstânciashistóricasnuncalhesforampropícias,masaindaassimconseguiramser“contrapesos”ético-políticos,compensaçãoaumaespéciedemaldiçãochamadahierarquia.Talvezomundosejaaindahospitaleiroporqueestetipodecontrapesosexiste.Umacidadeseriainabitávelsenelasóacontecessemcomportamentosautomáticos,maquinaiseresignados.Oanarquismo,pensamentoanômalo,representa“asombra”dapolítica, oquenãopodeserrepresentado,aimaginaçãoanti-hierárquica.Eoanarquista,serimprovável,mesmoexistindoemquantidadesdemográficasquaseinsignificantes,assumeodestinodeexercerumainfluêncialibertáriadetiporadical,quemuitasvezespassainadvertidaeoutrassecondensanumatoespetacular.Destino,econdena,porqueaoanarquistanãolheédadoestabelecernemfáceisnemrápidasnegociaçõescomavidasocialatual,ejustamenteéessaimpossibilidadequeemalgummomentodesuaexistênciafazcomqueoanarquistapadeçadeseuidealcomodeumfeitiço,doqualnãosabecomoselibertar.Aquelainfluênciatemseuobjetivo:adissoluçãodovelhoregimepsicológico,políticoeespiritualdadominação.Pararealizá-lo,oanarquismorecorreuaumarsenalquesóocasionalmente—enãosubstancialmente—podeseracolhidoporoutrosmovimentospolíticos:humordeparódia,temperamentoanticlerical,atitudesirredutíveisdeautonomiapessoal,ebuliçãoespiritualacopladaaurgênciaspolíticas,comportamentoinsolente,impulsodaaçãopolíticaàmaneiradecontrapotênciae,enfim,umateoriaqueradicalizaacríticaaopoderatélimitesdesconhecidosantesdaépocamoderna.Suaimagináriaimpugnadoraeseuimpulsocríticonutrem-sedeumagigantescaconfiançanascapacidadescriativasdosanimaispolíticos,umavezlibertosdageometriapolíticacentralista,concêntricaevertical. Adissoluçãodomundosoviéticoeacrisedopensamentomarxistapareceramdaraoanarquismoaoportunidadedesairdascatacumbas.Porém,aquedado“sovietismo”levouconsigooabanicosocialistainteiro,poisinclusiveoanarquismoestavafamiliarizadocomoimagináriocomunistaafetadopeladerrubada:eraumadesuasvaretassoltas.Osacontecimentospolíticosdobiênio1989-91,festejadosmidiaticamentecomosesetratassedadecapitaçãodeLuísXVI,abriamcomportasgeopolíticasmastambémenclausuravamtradiçõesemancipatórias.Nãosóopior,tambémomelhordelas.Juntoàderrubadadaordemsoviética,fechava-seumespaçoauditivoparaasmensagensproféticasdetiposalvador.Enavozanarquistaressoousempreumtombíblico.Paraseusprofetas,aordemburguesaequivaliaàBabilônia.Noiníciodosanos90nãoestavaconcluídaahistória—talcomosugeridoporumaconsignavelozebanal—,massim,talvez,oséculoXIX:constatava-sequeasdoutrinasmarxistas,anarquistaseinclusiveasliberaisemsentidoestrito,liquidificavam-seeevaporavam-sedahistóriadopresente.Presenciávamosocantodocisnedohuma-nismo.Umadesuasconseqüênciasfoiodesapareci-mentodamemóriasocial,istoé,daslinguagensesímbolosquecarregavamoprojetoemancipatóriomodernoeomodelodeantropologiaquelhecorrespondia.Aomesmotempo,apolíticaclássica,vinculadaàrepresentaçãodeinteresses(versãoreformista)ouàpugnasocialcontraoabsolutismoeaordemburguesa(esquerdaeanarquismo),perdeforçaelegitimidade.Jáfaztempoqueapolítica,emescalamundial,operasegundoomodeloorganizacionaldamáfia.Aordemmafiosaé,desaída,ametáforadefundaçãodeumnovomundo,eissoemtodasasordensinstitucionais,dasgremiaisàsuniversitárias,dasempresariaisàsmunicipais.Ouseestádentrodaesferadeinteressesdeumamáfiaparticular,ouseestádesamparadoatélimitesapenascomparáveiscomocomeço da revolução industrial. Este pode ser o destino que enfrentaremos, mal cruzadas as portas do terceiro milênio. JáquetodoEstadoprecisaadministraraenergiaemotivadamemóriacoletiva,asmaneirasdecontroleemoldagemdosrelatoshistóricoschegamaserassuntosestratégicosdeprimeiraordem.Arupturadamemóriasocialfoicausada,emalgumamedida,pormudançastecnológicas,particularmentepelaarticulaçãoentreospodereseosinstrumentosmidiáticosdetransmissãodesaberes.Épossívelencontrarumacausa,talvezmaisativa,nodesaparecimentodesubjetividadesurbanasqueeramresultadodeummoldepopularnãoligadoàculturadasclassesdominantes.Essastrivialidadesurbanaseramefeitoda“culturaplebéia”,quenaArgentinaedurantemeioséculofoidominadapeloimaginárioperonista.Aolongodoséculopassado,avelhaculturapopular(misturadeimagináriooperárioeantropologia“folk”)semetamorfoseouemculturademassa,oquetransformoulentaporémradicalmenteamaneiradearquivoetransmissãodamemóriadaslutassociais.Equandoahistóriaeamemóriaseretraem,aspopulaçõespodemedificarseuagirapenasemfundamentostãoinstantâneosquantofrágeis.Porsuavez,odestinodapaixãopelaliberdade—mitocentraldoséculoXIX—éincertoemsociedadespermissivas,dotipodasatuaissociedadesocidentais,nasquaiso“libertário”chegaaserumademandapossíveldeacoplaràsofertasdeummercadodeprodutos“emocionais”,dapsicoterapiaàindústriapornográfica,daproduçãodefármacosharmonizadoresdocomportamentoàspromessasdaindústriadebiotecnologia.Estaúltima,emparticular,revelacertossintomassociaisdaatualidade:leituradomapagenético,transmutaçãodacarneemalambiquesdeclonagem,aprimoramentotecnológicosdorórgãos,cirurgiaplástica,siliconeinjetávelnocorpoàmaneiradevacinacontraarejeiçãosocial.O“modeloestético-tecnológico”desdobra-secomoum“sonho”quepretendeapaziguarummal-estarque,porsuavez,nadatemdesuperficial.Emeconomiasflexibilizadas,empaísesnosquaisfoidestruídaaidéiacoletivadenação,comhabitantesquemalconseguemseprojetarparaofuturo,condenadosaidolatriasmenores,arecorreràmoedacomolugar-comum,arealizarapostasquenãosesustentamnotalentodecadaum,aexperiênciacoletivatorna-sedura,cruel,carentee,pormomentos,delirante.Cadapessoaestásolitáriajuntoaoseucorpodescarnado,aquilonoque,emúltimainstância,sesustenta.A“ansiedadecosmética”revela-nosopesoquearrastamos,oesforçoquefazemosporexistir.Mastambémnosrevelaquea“artedevivercontraadominação”,naqualsedesenvolveuoanarquismo,estásuspensa,porquantoasnecessidadeshumanassetransformamdrasticamenteehojenãomaissearticulamcomamemóriadaslutassociaisanteriores.Seodestinodaépocaseguisseestecurso,umaforçasemelhanteàqueladodilúvioderrubariaaspontesdahistória. Três Autocraciaefome.Osdoisirritadoresdo“mal-estarsocial”namodernidade.Nãomaisosão,ouaomenosnãoestãoativosnamesmamedidaemqueasimagensdesofrimentonosacostumaramapensá-los.Diferentedeveser,então,odestinodapolíticalibertárianumasituaçãosocialassinadapelalicenciosidadeemquestõesdecomportamento,porumanotávelcapacidadeestatalderecuperaçãodasinvençõesrefratáriasoupelomenosporumainesgotávelcapacidadede“negociação”comestasinvenções,enaqueaspessoasnomelhordoscasosestãodesorientadase,nopior,dotadasdeumapercepçãocínicadavidasocial.Paraimaginarasformasdelutadopróximofuturoserianecessárioidentificarnãosomenteorumordomal-estarsocialemnossosdias,mastambémsedeveriadirigiroolharparaastransformaçõesexistenciaisdoséculo.Aúltimamemóriadelutassociaistransmitidaàatualidadefoiadasrebeliõesjuvenisdosanos60,emespecialsuasfacetasassociadasàsmudançassubjetivas—o“parricídiodecostumes”—eàmúsicaeletrônicaurbana.Memóriaqueétransmitida,quaseemsuatotalidade,pelaordemmidiáticaepasteurizada,paratorná-lacompatívelàsindústriasdoócio.Éevidentequenãoéomodelodafomeaquelequeinformaàsatuaisgeraçõesnoocidente.Omal-estarpolítico,porém,parapoderdesdobrar-sesobreumterrenosocialnãoadubadooutrilhadopelaimaginaçãohegemônicaatual,precisaidentificarnovasformasdeviver:contrapesosexistenciais.Cadaépocacontribuicomahistóriadadissidênciahumanacomum“contrapeso”,individualoucoletivo,quebalanceiaodespotismoeasujeição.Ocontrapeso“libertário”esparziu,aolongodesuamaisquecentenáriahistória,práticasorganizacionaiseemocionais:invençõessociais.Eassimcomospré-históricosinventaramarodaeaagricultura,osgregos o conceito e o teatro, e os primeiros cristãos o ideal de irmandade, assim também os anarquistas inventaram algo: o grupo de afinidade. “Invenção” que ingressa no tipo superior das obras humanas, onde se acostuma incluir o jogo, a festa e a melodia. A defesa anarquista da autonomia individual questionava a tradição da heteronomia eclesiástica ou estatal, mas o substrato existencial que permitiu sua expansão não dependeu de uma idéia ou uma técnica, mas sim de sua articulação com práticas sociais que necessariamente eram culturalmente preexistentes ás teorias libertárias. Essas práticas vinham germinando na longa história da experiência humana que antagonizou os usos hierárquicos. Para Marx — como também para aqueles que se empaparam da tradição anarcosindicalista —, a fábrica e o mundo imaginário dotrabalhosupunhamumexcelentecimentoparauma novasociedade.Masoutrofoiosubstratoexistencialnoqualseenxertouogrupodeafinidadeanarquista.EsseespaçoantropológicojácomeçavaagerminarnoséculoXIXeosanarquistasforamosprimeirosempercebersuasilenciosaexpansão.Antesqueaaliançasindicato-anarquismoestivessebemconsolidada(ejádesdequeosprimeirosgruposdesimpatizantes“daidéia”seorganizaramnoamplocírculoqueocompassodeBakunindesenhoudaEspanhaàBesarábia)apráticagrupalnaqualaspessoassevinculavam“porafinidade”concedeuaoanarquismoumtraçodistintivo,distanciando-odacentralidadeverticalconcêntricaprópriadospartidospolíticosdemocráticosoumarxistas,modeloqueseincrustanoimagináriopolíticotradicional.Aafinidadenãosógarantiareciprocidadehorizontal,mastambém,emaisimportante,promoviaaconfiançaeomútuoconhecimentodosmundosintele-ctuais,emocionaisehedonistasdecadaumdosintegrantes.Estacondiçãogrupalpermitiaumamelhorcompreensãodatotalidadedapersonalidadedooutro,assimcomodesuaspotencialidadesedificuldades.Deondeprovémoidealdosgruposdeafinidade?TalvezdatradiçãodosclubesrevolucionáriospréviosàRevoluçãoFrancesa,oudos“salõesliterários”quefloresceramnoséculoXVIII,eseguramentenalongaépocanaqueosgruposcarbonáriosdoséculoXIXexperimentaramaclandestinidade,condiçãodeimediatoherdadapeloanarquismo;enfim,datradiçãoda“autodefesa”eda“conspiração”.Também,talvez,dosusoserituaismaçônicos,dosquaisBakuninerapróximo,tendosidomembrodeumaseçãoitalianadafranco-maçonaria.Pense,porexemplo,naimportânciaqueteveataberna(oupub)naconstituiçãodasociabilidadedeclassenosprimórdiosdarevoluçãoindustrial,ouocafépúbliconaconstruçãodaopiniãopúblicaliberaldoséculoXIX,ou — para as sufragistas — os salões que ampararam uma nova figura social da mulher na metade desse mesmo século, ou os grupos de leitura entre os camponeses espanhóis no começo do século passado, ou ainda e atualmente, a prática de trocar “fanzines” entre adolescentesemidadeaindaescolarempraçaspúblicas ou concertos de rock. As práticas de afinidade não são, portanto, a prerrogativa do “local militante”, mas a efusão possível de experiências afetivas compartilhadas pela coletividade. Aafinidadeéosubstratosocialdoanarquismo,masumhorizontemaisamploacolheoespaçoantropológicoqueésemprefavorávelaeleedesdesemprerecebeonomede“amizade”.Variadassãoaslinhasgenealógicasqueseconfluemnodesdobramentomodernodaamizade,talcomoaconhecemosatualmente.Serianecessárioagregaraoidealclássicodaphiliagregaoidealdafraternidaderevolucionária.Umeoutroinsistiramnaigualdadeposicionaldosamigosenasaçõesde“cuidadodooutro”.DuranteoséculoXX,aamizadecomeçouatranscenderarelaçãointerpessoalepassouaserumapráticasocialquetransitasobreespaçosafetivos,políticoseeconômicosantesocupadospelafamíliatradicional,fazendoopapelderesguardocontraaintempérieaqualoEstadoouocapitalismosubmetemapopulação.Aamizadesupõeajudamútua,econômica,psicológica,reanimadora,inclusiveconsultiva,e—eventualmente—política,transformando-seassimnumtipodetônicoenumaredefundantedasociabilidadeatual.Aidequemnãotemamigos!Careceentãodeumadasamarrasquenosunemàvidaenosreconciliamcomela.Aestagenealogiadepráticasamistosas,deve-seincorporaraamizadeentremulheremulher,entrehomememulher,queforampropiciadas,comonuncaantes,pelastransformaçõesculturaisdoséculopassadosomadasaodesvanecimentodo“lar”comoespaçoeconômicoobrigatório.Cabeadicionaraelasaamizadeentrehomossexuaisemulheres,antessustentadaemcertaclandestinidadeeemcertosguetosehojeexpostaabertamente.Talveztambémcabeadicionaraamizadeentreex-casais. Todas essas formas da amizade eram quase insignificantes no século XIX, ou seu raio de ação era muito limitado. Muito mais que as viagens para o espaço, Internet, o transplante de órgãos ou a penicilina, são estes novos formatos da amizade as grandes inovações que devem ser creditadas no inventário do século XX. Quatro Oanarquismofoiocontrapesohistóricodadomi-nação.Masnãofoioúnico:tambémasocialdemocracia,opopulismo,omarxismo,ofeminismoe,inclusive,oliberalismoreclamamessacategoria.MasoanarquismofoiamaisdescarnadadetodasasautópsiaspolíticasmodernaseamaisexigentedetodasaspropostasparasuperaroestadodecoisasdoséculoXIX.Justamenteporterescolhidoumângulodeobservaçãotãovertiginoso,tambémoanarquismosetransformou — imperceptivelmentenocomeço,paraseusprópriospaisfundadores—numsabertrágico.Poisdescobrirqueahierarquiaéconstantehistórica,pesoontológicoeenraizamentopsíquicotãoimponentes,levaaadmitirqueseudesafiosuscitapânico,comosetratandoderenegarumdeusolímpicoouabandonarparasempreacasapaterna.Osanarquistassãoconscientesdesuaprópriadesmesuraconceitualepolítica.Suspeitamqueseuidealnasceucontraasleisdanatureza,quepoderiatersidoabortado,queaimaginaçãocoletivapoderianãotê-locomonecessário.Eoanarquismo,quepassoupormuitasfaseslunaresemsuahistória(asfasescarbonária,messiânica,insurrecional,anarco-sindicalista,sectária,sessentista-libertária,punk,ecológica)precisahojedeummitodaliberdadequeseja“revelador”domal-estarsocialequedêaboapartedapopulaçãoumimpulsoderejeição,talcomoodesafioblasfemoedesculpabilizadorempurrouosanarquistascontraaigreja,eodesafioanti-hierárquicoaonegara verve

ordem estatal. Se continuará existindo “milagre da palavra”, isto é, anarquismo, é porque ele pode vir a ser contra-senha para a esperança coletiva e para lutas sociais libertas do lastro de modelos autoritários. O mistério da hierarquia cederia então sua opacidade a uma revelação política. resumo abstract ApresençainsistentedoanarquismoTheinsistenceofanarchisminthepresentnomundoatualéproblematizadaworldistakeninthisarticleasapoliticalaquicomoanomaliapolíticaeandmysteriousanomalythathasbeenmisteriosaqueemsuasmuitasfaseshistoricallyquestioningtheinsistencehistóricastemquestionadoconstan-verticalitythathierarchyhaspresentedtotementeaperenidadeeavertica-peoples.Theanarchistuneasinessbeforelidadecomqueahierarquizaçãotemthehistoricaldramaoverpowerandtheseapresentadoaospovos.Ainventionofsociabilitiesaslivingpracticesinquietaçãoanarquistafrenteaoandexistentialpossibilities,endedupdramahistóricodopodereainvençãotransformingitinatragicknowledge,anddesociabilidadecomoefeitodabeingso,restlessandrevealingofadeep desmesura de lidar com a hierar-discontent. quização como sendo apenas uma das possibilidades existenciais de um povo, acabam por transformá-lo num saber trágico e como tal,

analíticas anarquistas do federalismo

Com o fim da Segunda Guerra, o século XX redimensionou muitas das opiniões que fundaram, até então, as demarcações territoriais do Ocidente. Não que a necessidade do Estado, sua força ou sua soberania fossem colocadas em questão: podemos pensar que a territorialidade do Estado ganharia novos contornos, talvez mais elásticos ou dinâmicos, ou melhor, mais federativos. Quando Winston Churchil propõe, em setembrode1946,aidéiadeEstadosUnidosdaEuropa, enuncia uma urgência que seria a marca da política deste continente em toda a segunda metade do século. Século que se encerra cronologicamente, mas que, ao contrário, abre-se politicamente com a discussão federativa como urgência que perpassa nomes e nações, e se potencializa planetariamente, assim como o século XVIII fechou com o federalismo norte-americano. Longe de anunciar a ineficácia das fronteiras bem * MestreemciênciassociaispelaPUC-SPepesquisadoradoNu-Sol.Esteartigotemporreferênciaminhadissertaçãodemestrado,Federalismoeanarquismo:umacartografiadosprincípiosdeautoridadeeliberdade,apresentadaàPontifíciaUniversidadeCatólicadeSãoPauloem2000. traçadas de territórios e/ou, ideologias, o segundo grandeespetáculodaguerraentreosmodernosEstados nacionais pôs em prática justamente a força dos governos que surgem do interior dessas fronteiras, anunciando, sim, a multiplicação exponencial que se imprime na força do Estado quando a ciência abre o caminho da tecnologia a serviço da violência sistemática e legítima, que é a prerrogativa do Estado. Temosaquiumaproblemática,adoEstado,apresentadapelopontodevistadacríticaanarquista,oumelhor,anarquizante:aquelaquequestionaoEstadoabandonandoaspreocupaçõesdegraueprivilegiandoasanalíticasdosefeitos,queresultamsempreemsubmissão.Efalodesubmissãoaopensarnarepetição,porconsentimentoexpressoouomissão,doprincípiodeuniversalismoqueseexpressacomonecessidadedoEstado.ChamodepensamentoanarquizanteemrelaçãoàproblemáticadoEstadoaquelepensamentoqueinveste,comofilosofiapolítica,naafirmaçãodepráticaslibertárias,prescindindo,antesdemaisnada,dauniversalidadedoprópriopensamento,questionando o pensar que consagra esta ou aquela necessidade do Um — qualquer um — que fala por todos. Nas linhas que seguem, apontarei para três problematizações possíveis, escolhidas por pura vontade, mas segundo a noção de série, analítica apresentada por Proudhon como pensar não universalista e não centralizador. Pensar federativo sobre o federalismo... Minhaspalavrasprovêmdeafinidades,aqui,detrêstextos:Oprincípiofederativo,tambémdeProudhon,Investigaçãosobreajustiçapolítica,deWilliamGodwin,eDiscursodaservidãovoluntária,deEtiennedeLaBoétie.Estasafinidadessãopossíveispelasérie,quecombinaunidadesanalíticas,nãoporcontinuidadecronológica,oumesmoporrelaçõesestabelecidaspelosprópriosautores,masporconexõesquebuscamproblematizar,nuncademarcarterritóriosteóricos.Problematizarparaabandonar fórmulas que prometem soluções segundo este ou aquele padrão, abandonando, assim, qualquer síntese de contrários como solução última a se esperar. Tomo de La Boétie a negação do Um para combinála, neste ensaio analítico, com o pensar de Godwin e Proudhonsobreofederalismo.SeucontraoUmdissolve oimperativodaobediênciauniversal,assimcomoemGodwineProudhonoincômodoqueauniversalizaçãodaobediênciaprovocaresultaeminvestimentoparapensarapolítica—outambémparapensaropensardapolítica—pelopontodevistadafederaçãodescentralizada.GodwineProudhon,porsuavez,nãonosoferecemnenhumafórmuladotipo“amaneiraanarquistadepensarofederalismo”;nãosetratadisto.Há,nestestrêsautores,umainterrogaçãocontundenteàunicidadequederivadoEstadocentralizador,interrogaçãoestaqueemLaBoétiesedesdobranaafirmaçãodavidasemosenhor,assimcomoemGodwineProudhondesdobra-seemdescentralizaçãofederativa. a analítica serial Quando lanço mão da analítica da série, opero numa extensão de pensamento que é, antes de tudo, descentralizada, horizontal e localizada. Extensão descentralizada, porque a série não aponta para problemas e soluções universais, mas para problematizações específicas; horizontais, na medida em que dispensa as profundidades ideais; e, portanto, também localizada, uma vez que a série não tem validadeparaalémdoseupontodevista.Apróprianoção de ponto de vista nos remete não só à localização, mas também à superfície, a diferença da profundidade teórica, o que novamente interrompe qualquer universalização. Assim, a série reclama por noções com as quais pensamos localizadamente — ou dispensando a dimensão universal. Opero com noções que remetem à visibilidade permitida pelo ponto de vista. Não que o ponto de vista imponha um ponto final, ou mesmo anuncie uma solução definitiva. Nem solução, muito menos definitiva, nem ponto final: ao se propor uma série,propõe-seumapossívelproblematização,umolhar direcionado a um problema, e o resto estará sempre por ser pensado. Asérieproposta,quechamode“nãoaoUm”,descreveumaextensãodopensamentopolíticoqueinterrompeacontinuidadedoargumentodanecessidadedogovernouniversal.Porgovernouniversal,entendoogovernocentralizado,fundadonaobrigatoriedadedaobediênciaàlei,tantodaleiquederivadavontadedopríncipe,comodaleiquederivadavontadegeral.Ainterrupçãodacontinuidadedogovernoédimensionada,nestasérie,comofederalismodescentralizado.E,namedidaemqueofederalismodescentralizadotraduzadissoluçãodarelaçãoentreautoridadeinstitucionalizadaeobrigaçãodeobediência,podemosentenderosefeitosdestefederalismocomoumaextensãodeafirmaçãoecríticaanarquista. Meu interesse, entretanto, não me leva a pensar o anarquismo como discurso que responde modernamente à existência do governo pela supressão deste e pela afirmação de um conjunto de noções que possibilitam espaços de liberdade. Interessa-me pensar o federalismo descentralizado como proveniência moderna do anarquismo e, sinalizar que o anarquismo se atualiza em práticas descentralizadas e federativas. Nasériedevemserencontradasasunidadescomasquaisserãopropostascombinações,noquesechamaderazãoourelaçãoentreelas,segundoopontodevista.Seasérieéo“nãoaoUm”,comointerrupçãoaoargumentodanecessidadedogoverno,eopontodevistaéaafirmaçãodofederalismodescentralizado,comoampliaçãoprogressivadeespaçosdeliberdade,restaencontrarasunidadeseascombinações. As unidades da série, na ciência da política, são, diz Proudhon, seus dois princípios: autoridade e liberdade. Seestaciênciaépotencializada,atravésdametodologiaserial,pordoisúnicosprincípios,omesmoProudhonquebraadelimitaçãopelapossibilidadeinfinitadecombinaçõesdestasduasunidades.Istoé,secombinamososprincípiosdeautoridadeeliberdade,numaextensãoqueémostradapelopontodevistafederativo,vemosqueéanossaescolhadecombinaçõespossíveisoquedeterminaaextensãodasérie,oumelhor,oquenosofereceasdemarcaçõesdosmapas.Destamaneira,observamosque,porresponderaogovernocomocontinuidade,portantologicamente,anossasériedialogatantocomoquepodemosentendercomoextensõesdeautoridade,comocomextensõescaracterizadaspelapreponderânciadoprincípiodeliberdade. Anoçãofederativa,nointeriordaanalíticaproposta,respondeaogoverno,àgeografia,unitáriaoufederativa,queresultadesuasoberania.Privilegiarodiálogo,oracomumasériequeinvestenoprincípiodeautoridadeoracomoutraqueinvestenodeliberdade,nãoémaisdoqueoresultadodeumaescolha.Mesmoconsiderandoanoçãoprogressivadaaçãodoprincípiodeliberdade,mostradaporProudhonemOprincípiofederativo,noprópriotexto,Proudhontambémdissolveasdivisõesconvencionaisentretiposdegovernosouregimes,apontandoparaoqueelechamadedefesafanáticadeumapurezadeidéiasquenãoexistenaaplicação,emostrandoquechamarumgovernodemonárquicooudemocráticonãoé,namaiorpartedasvezes,maisdoqueumaconvenção. O mesmo poderíamos encontrar na Justiça política, redimensionandoadiscussãopelaóticadamoral,onde, ao mostrar que o governo é sempre a cristalização de um erro — ou a institucionalização de uma injustiça — , Godwin dialoga tanto com concepções conservadoras do governo — e neste caso Burke é seu interlocutor preferencial —, como com concepções que investem na ampliação de liberdades civis, como é o caso de Paine e os Federalistas, Rousseau, Montaigne e Locke, igualmente interlocutores privilegiados de Godwin — como também depois de Proudhon. Outrascombinações?Conectaro“não”deLaBoétieaotirano—queabreasportasdaRenascença—comonãoaogovernoquesedebruçasobreasRevoluçõesAmericanaeFrancesa,emGodwineProudhon,dentrodeumacartografiafederativa,que,maisumavez,nãoinvestenasorigens,ounotraçadocontínuoenecessárioquesurgedainterpretaçãosobreasorigens.LaBoétie,GodwineProudhonguardamafinidades,nointeriordasdiferenças,dentrodeumdiscursonoqualo“não”—demolição—éafirmaçãodeliberdades. É,então,dentrodestaextensãodopensamentolibertário,ondeopensaranarquizaopensamento,queapolíticatorna-sevital,dispensandoinstânciasereivindicaçõesdeampliaçõesdedireitos,assimcomoreformasoutrocasdenomesparapreservaromesmo.Aopensarofederalismodescentralizado,lançandomãodo“nãoaoUm”,mostra-sequeestepensarnãoéumasaídateóricaquerespondeaumadiscussãodeépocaoudecontinuidadesesíntesesconceituais,massimumaproblematizaçãopertinenteaafirmaçõesdeuniversalismos,possível,nopensarpolítico,comoextensãohorizontaledescentralizada,quereclamaporvontadesinteressadasemafirmarliberdadesrecíprocas. Na série, então, não se discutem totalidades, de idéias ou de obras, mas, novamente, algumas combinações das suas unidades que permitem verificar o ponto de vista proposto. Qual será o nosso ponto de vista? Queremos saber qual o percurso que nos permite afirmar o federalismo descentralizado como resposta políticaqueinterrompeacontinuidadedogovernocomo necessidade, principalmente nas extensões nas quais é possível preservar o argumento da necessidade do governo quando este é considerado um mal necessário. Devemos ainda observar que esta extensão do anarquismo não recorre à luta revolucionária, e a entendo, portanto, como proveniência pacifista do anarquismo e, em especial, do federalismo anarquista. La Boétie o dissera claramente: ao tirano não é necessário derrocar, enfrentar, enfim, resistir pela força, basta deixar de obedecer, basta querer não mais servir. Se, ao mostrar o funcionamento da servidão, o que La Boétie descreve é a ação da vontade de todos, dos cinco sentidos de todos, prolongando e infiltrando o poderdomaisfracodoshomens,otirano,bastariadeixar de prestar este serviço para ser livre; sem a vontade de servir, a dominação do tirano é inviável. Godwintemporintenção,aoescreverEnquiryConcerningPoliticalJustice,pensaraproblemáticadogovernocomoassuntodeargumentoedemonstração,emais,comoassuntoquedevesersempresubmetidoàdiscussãodetodos.Aopensarasrevoluções,suaintençãonãofazmaisdoqueprolongar-se:asrevoluçõesdevemserrevoluções,antesdemaisnada,desentimentosedisposição,provenientesdousodarazão,nuncadaviolência.Aintensidadedeumarevoluçãonopensamentoéinversamenteproporcionalàviolênciadalutarevolucionária.Pelopensaroshomensaproximam-sedaverdade—éoqueGodwinentendeporcapacidade,própriaatodos,deaperfeiçoar-se—,peloerrodaviolência. Seháalgumacoisaquepossaserchamadadeverdade,dizGodwin,eladevesersuperioraoerro.Oerro,porsuavez,éminimizadoouevitadonoterrenodaciência,istoé,pelousoininterruptodarazão.Logo,pararevolucionaropresentenossugeretrêsverbos:“escrever,argumentar,discutir”;queopõeatrêssubstantivos:“indignação,furor,ódio”.Assim,àrazão,exercitadapelalivreeampladiscussão,Godwinopõeaviolência.Avisa-nos,ainda,que“quandodescendemosdoterrenodalutaviolenta,abandonamosdefatoocampodaverdadeelançamosoresultadoàsorteeaocegocapricho.(...)Nobárbarofragordaguerra,doclamorosoestrépitodaslutascivis,quempoderápredizerseodesenlaceserámiserávelouventuroso?”1 GodwineLaBoétiebuscamaafirmaçãodeespaçosdeliberdadequeprescindemdareivindicaçãoporserem“naturais”ou“lógicos”,muitomaisdoquediscorrersobreoproblemadalutarevolucionária.Estãointeres-sadosemafirmar,nãoemderrocar.DamesmamaneiraProudhon,nãotantopelasuaconsistentecríticaàsrevoluções—principalmenteàAmericanaeàFrancesa—,massimpelaafirmaçãodeliberdadesqueperpassasuafilosofiaofazdescartar,primeirodalógica,alutarevolucionária.Aampliaçãoprogressivadaliberdade,efeitopotencialdeseumétodo,éumaclararespostaàviolência,mesmoquesupostamentelibertadora,daslutasrevolucionárias.SetomamosdeProudhon,ainda,suaspalavrassobreasmaisespetacularesrevoluçõesdeseutempo,vemosquesuacríticadirige-seaoquepodeserconsideradocomosuainiqüidade:osenhor-reicedeulugaraopovo-rei.ComoGodwin,Proudhontambémrelacionaoresultadodeumarevoluçãoaotantodepensamentoediscussãoqueaantecede.Aapostanapolítica-ciênciaoleva,emOqueéapropriedade?,adiferenciar“progresso”de“revolução”,ereformademudança. não ao Um: as analíticas Quando,nofinaldoséculoXVIII,WilliamGodwinencontranahistóriaarepetiçãodaviolênciaedaguerra,respondeàviolênciaeàguerracomasupressãodaformapolíticaquelhesdácontinuidade:ogoverno.OalvodeGodwin:ainquestionadaassociaçãoentreautoridadeinstitucionalizadaeobediênciauniversal.Constataqueahistóriadosgovernoséahistóriadocrime,comoameaçaecomocastigo,ouahistóriadaviolênciasistemáticaenquantoefeitodaprerrogativadoEstadodegarantirasegurançadasvidasedapropriedadeprivada.Diantedestaconstataçãorespondecomainterrupçãodoargumentodaprevençãogeral,quetransformaoEstadoemmáquinadeviolência,sendoqueminimizarosperigosdaviolênciaéaatribuiçãoontológicadoEstado.SeoEstadoéoprodutoruniversaldaviolênciaqueeledeveeliminar,operarnoseuinteriorparadeterosefeitosindesejáveisdetodasuaauto-suficiênciaé,nomínimo,umlíricoexercíciodecandidez—poderiamuitobemser,noentanto,ocálculoestratégicodeadoçarestesefeitosparapreservarasvantagens. SeGodwinescancarouainjustainstitucionalizaçãodaviolêncianogoverno,suapreservaçãonasopiniõesqueoconsideramnecessárioeapreservação,novamente,destasopiniões,comoreverênciaaopassado,EtiennedeLaBoétie,escancaraoacaso,omauencontroquedásentidoàspalavras“tirano”e“súdito”,dissolvendoumanaoutra.OprópriopercursodaServidãovoluntárianosmostracomo“tirano”nãoéantônimode“súdito”evice-versa,comonãoháoposiçãoouexterioridadequedelimitegovernoegovernados:háumaprogressãogeométricaquerelacionaumadez,dezadezmil,dezmilamilhões...e,assim,nãohavendoumaorigemqueexpliqueeque,portanto,permitapensarmedidas,háumacasoquedeterminaumamedida:ogovernoésempreabsoluto.Diantedoacasoedesuatotalização,LaBoétieirrompecomainsubmissão,comnãomaisservir,deondeasrelaçõesdevemserinventadasentreiguais. Nesta desobediência, mais do que uma negação do tirano, há uma afirmação que desobedece às palavras: nãohátiranomelhoroupior,mastambémnãohásúdito mais ou menos subjugado. Simplesmente, não havendo servidão, não há tirano, não há súdito. Desta maneira, se é terrível que o tirano seja o ponto de vista que descreve o súdito, é igualmente terrível que o cidadão seja o ponto de vista que descreve o governo. Godwin, no século XVIII, e anteriormente La Boétie, no XVI, disseram claramente que o governo não perde força nenhuma, eficácia nenhuma ou violência nenhuma quando se tenta, mesmo que benevolentemente, redimensioná-lo, atualizá-lo, suavizá-lo, humanizá-lo.Entenderamqueogovernoseprolongaem si mesmo, se refaz e se atualiza. Ou melhor, entenderam que é o governo, a institucionalização da violência, aquilo que transforma a violência em necessidade de governo. Por que se preserva o governo? Porque muitos tiram muitas vantagens disto, diria La Boétie, e porque os homens nem imaginam que podem querer, que bastaria querer para não ter um tirano. Bastaria um “não” lógico ao governo. Por que os homens nem imaginam que podem viver sem governo? Porque não pensam, escrevem e discutem sem pensar o governo a não ser como uma necessidade, diria Godwin. Aqui, um “não” moral. Podemos,então,perguntar:épossívelpensar,escreverediscutirdescartandoaoposiçãotirano-súdito?Ouantes:quaissãoosefeitosdestaoposiçãoqueaprisionamaimaginaçãoeopensamentoentreaspalavras?Respondendoaestapergunta,diriaqueresulta,daoposição,umacentralização:dotiranosobreossúditos,notempodeLaBoétie,oudoscidadãossobre o governo, no tempo de Godwin, mas uma não difere da outra. Monarquia ou democracia: há sempre um lugar, institucionalizado, para colocar a própria vontade. Tirania ou governo representativo: há sempre uma voz que fala por todos. Do século XVI até a primeira metade deste século, a voz e a vontade ecoaram em territórios que prometiam, com certa tranqüilidade, a paz e a prosperidadegeral. Acreditou-se, neste tempo, que os problemas colocados pelo território, problemas políticos e econômicos evidentes, seriam resolvidos pelo dimensionamentodoterritório.Encontrou-se,assim,umaequação: repúblicas pequenas para a paz e a ordem internas, repúblicas grandes para a força política e econômica. Esta equação, que modernamente é republicana e federalista, colocou definitivamente em discussão um tema que, a despeito da coincidência das palavras (Estados Unidos, da América, no século XVIII; e da Europa, no XX) se mostra insuficientemente pensado. Europa, na segunda metade do século XIX, escuta novas palavras libertárias: a teoria sobre o governo federal não tinha sido nunca pensada. Se entendemos isto como não foi satisfatoriamente ou suficientemente pensada, hoje ainda nos fazemos esta pergunta: o federalismo foi, ou é hoje, suficientemente pensado? Proudhon potencializa o “não lógico” de La Boétie e o “não moral” de Godwin, desenhando um pensamento moderno. Depois da Segunda Guerra, a promessa da paz e a prosperidade geral tornou-se a grande incerteza, frente à missão do governo: garantir a segurança, interna, dos cidadãos, e externa, da nação. Quando, em 1788, os norte-americanos resolveram a equação da segurança — quedeviaresultarempazeprosperidade—,pelainserçãodavariávelfederativa,redimensionaramacentralização,preservandoogovernoaoeliminarosperigosqueterritóriosisolados,grandesoupequenosoferecemasuacontinuidade.ArevoluçãoemnomedogovernoconstituiuosEstadosUnidosdaAmérica.Poucomaisde150anosdepois,aEuropateriaquereavaliarosperigosqueaforça—tambémautodestrutiva—deseusterritóriosisoladosofereciadiantedapromessadepazeprosperidade.ChurchilpropõeosEstadosUnidosdaEuropa.Atéhoje,sabemosmuitobem,nãohouvegovernoquepudesseoferecer,tranqüilamente,apromessadepazeprosperidade,massucessivasfederalizaçõesdeterritóriosisoladostornaram-seaúnicasaídadiantedoaniquilamentoeconômicoeoúnicorefúgio,mesmoquefrágil,diantedaguerra. Asupranacionalidadequecaracterizaointernacionalismodestemeioséculonãopareceterincorporadoadúvidadiantedacentralização:apalavra,“supranacionalidade”jáéumadescriçãoeloqüentedodimensionamentodasurgênciaspolíticaseeconômicasque surgem do interior de territórios demarcados pela continuidade do governo. O prefixo potencializa o conceito: o intervencionismo, na política e na economia, parece ser a tradução mais acabada da promessa que o Estado moderno não esquece. Todos devem ser iguais, todos devem associar-se — ajustar-se —, e aqueles que não prosperem e que insistam no confronto bélico serão castigados pelo isolamento. Da mesma maneira, reivindicar o isolamento não é mais do que aniquilamento romântico que apenas poderia satisfazer ideologias. Assim, entre a federação e o isolamento de territórios centralizados, voltamos à pergunta: é possível pensar, escrever e discutir descartando a oposição tirano-súdito? Pensamentos anarquizantes perpassam de múltiplas maneiras esta pergunta. Anarquizantes: pensar sem o governo é uma maneira de pensar que não presta contas nem às demarcações políticas e econômicas, nem tampouco às históricas, que conformam territórios, confinando inteligências e talentos em servidões voluntárias que perderam a imaginação. Não ao Um, tirano ou governo, é uma proveniência anarquista que dissolve, e não divide, fronteiras artificiais.Nestesentido,Proudhon,GodwineLaBoétie, a despeito de histórias de idéias, pronunciaram verdades que ainda hoje continuam insuportáveis para um mundo que insiste em destilar prefixos para as totalizações que confinam em nome da paz e da prosperidade. Pensamentos anarquizantes têm respondido a confinamentos territoriais de toda índole. Se o federalismo é o tema que perpassa a solução norteamericana à continuidade do governo, encerrando o século XVIII, o internacionalismo do final do século XX mostra que o tema não foi ainda esquecido, e que é maior do que as cronologias. federalismo Ofederalismo,modernamente,foiemprimeirolugararespostarepublicanaaoproblemadotamanhodoterritórioemrelaçãoaotantodeliberdadecivil,istoé,degarantiadesegurançaindividualenacional,quegovernosinspiradosnavontadegeralpoderiamoferecer.Porsuavez,ainterrupçãoanarquistaàcontinuidadedogovernosetornafederativaaodispensaraautoridadecentral,afirmandoqueestanãoénecessária. Estas duas extensões federativas da política são, também, uma resposta ocidental, não só à monarquia ou aos governos antigos, mas a um problema que a antigüidadenãoconhecia:apopulação.Apopulação,não só por seu acelerado crescimento potencial, mas por seu acelerado e, também, potencial trânsito, tornar-seia uma força política que dividiria o pensamento entre aqueles que equacionavam a forma de pacificá-la e aqueles que a entendiam como uma força que devia, de fato, atualizar-se. No primeiro caso, deu-se à população a cadeira do rei, o trono. E assim separa-se, na política, o mundo antigodomundomoderno:oargumentodavontadegeral como fundamento do governo. Preservando-se o trono, preservou-se também a forma circular da soberania: a vontade geral antecede à lei, que funda o governo, que deve resguardar e executar a vontade geral. Para tanto, o governo tem a prerrogativa da força e os cidadãos a prerrogativa da obediência à lei. Chama-se a isto liberdade civil. Nada mais elucidativo a este respeito do que a frase que Thomas Paine pronunciara alguns meses antes da independência norte-americana: assim comonosgovernosabsolutosoreiéalei,nospaíseslivres a lei deve ser o rei. A vontade geral torna-se, desta maneira, a atualização do rei e, quando a política se dispõe a comemorarapreservaçãodogoverno,oaumentodapopulação colocanovamenteemsérioriscooprincípiodogoverno:amedidaquearepúblicaaumenta,avontadegeral,seufundamento,torna-semaisdispersa,eobemcomum,suamissão,maiscomprometido.Damesmamaneira,quantomenorarepúblicamaiorapossibilidadedeumataqueestrangeiro,oqueevidentementetambémcomprometeobemcomum.Comosolucionaresteimpasse?OqueLockeanunciaracomopoderfederativo,Montesquieuassentaracomorepúblicafederativa,eosEstadosUnidos,poucomaisdevinteanosdepoisdopronunciamentodePaine,consagraramcomorevoluçãoemnomedogoverno.Tudocoerente,entretanto,comPaine—bastalembrarqueograndeargumentoafavordarepúblicafederativa,apresentadoporMontesquieu,éafórmulaqueconjugaaforçadamonarquiacomaliberdadedarepública. Arepúblicafederativasemostrouarespostamoderna mais consistente ao problema do território, quando este representa uma ameaça à vontade geral. E de fato o é, sempre que as demarcações geopolíticas resguardem as fronteiras que instauram e preservam a necessidade do governo. Também foi a equação mais acabada da continuidade do governo. Mas quando o governo é interrogado em seu princípio, estas fronteiras logicamente se dissolvem e deslocam o problema, não mais para o tamanho do território, mas para o conjunto de opiniões que fundamentam este território como demarcação legítima de fronteiras. Desta interrogação, resulta uma demarcação arbitrária, que está na base da obediência irrestrita e eterna à lei. O anarquismo responde à máxima da necessidade do governo sobre todos, seja este do rei ou da lei — do povo. Mostrando a continuidade entre um e outro, desliza-se da história para a lógica para demonstrar, como o fizera Godwin, que todo governo é fundado em opiniões. Nada mais do que opiniões. Mais do que dissolver territórios centralizados, o pensamento anarquista dissolve, com a mesma intensidade,territóriosdesaberque,lançandomãodeverdadesinexplicáveis,centralizamodiscursodaciênciaquemaisinteressaaoshomens,apolítica.AoescreveraJustiçapolítica,Godwinsubmeteaoexercíciodademonstraçãoedaargumentaçãoasopiniõesquefundamogoverno.Dirige-seaogovernoparainterrogartantoareaçãoconservadoradiantedaRevoluçãoFrancesa,quandoEdmundBurkefazaapologiadamonarquia,quantooentusiasmoliberalqueprecederaaRevoluçãoAmericanacomLocke,MontesquieueRousseau,equeaacompanharacomPaineeosFederalistas.Godwinresponderáaesteentusiasmoprovocadopelomundonovo,dissolvendoanecessidadedepensaraliberdadedopontodevistadogoverno,investindo,portanto,contraosefeitosdestepontodevistanapolítica.RespondeparticularmenteàafirmaçãodePainesobreogoverno,quepodesersintetizadanaexpressãodequequalquergovernoé,emúltimaanálise,ummalnecessário,deonderestariaapenasdimensioná-losegundoomaiorbemquesepossaextrairdesuainquestionávelexistência—edimensionar,também,asformasinstitucionaisdecontroleoupreservaçãodestemáximodebem. Relaciono assim o percurso de Godwin, ao mostrar a continuidade da obediência, tanto a La Boétie, que dissera, no século XVI, que para não ter um tirano bastaria não mais servi-lo, como a Proudhon, que três séculos depois investiu não na interrupção da continuidade da vontade do senhor, mas no federalismo descentralizado como interrupção libertária da continuidade do governo na modernidade, afirmando a potencialização da ação do princípio de liberdade, em detrimentodoprincípiodeautoridade.Decertamaneira, o pensamento de Godwin preparou uma extensão na qual o federalismo descentralizado encontraria ressonâncias no que a história das idéias chama de anarquismo. Mas esta extensão, se vista pela negação ao poder do Um, dá visibilidade a uma afirmação que transborda as leituras cronológicas: afirmação de que os homens podem inventar suas relações, e que para tanto contam com sua razão, seu talento e sua vontade. E mais: que nunca uma autoridade universal poderá dizer, e ao dizer ordenar, de que maneira cada um deve viver. Extensões de liberdade que se abrem no pensamentopolítico,seprojetam,peloanarquismo,como resposta federativa diante de qualquer centralização. Mas o anarquismo não é um decálogo — tanto faz se teórico ou religioso — que diz de que maneira viver melhor; mesmo porque a vida, assim como sua negação sistemática e legitimada na forma do governo, não aponta para uma discussão de grau ou intensidade. Ao contrário, ao pensarem a política como argumentação e demonstração, Godwin e Proudhon imprimiram, na política, seu federalismo: isto é, sua forma de proferir não ao Um. Afirmaçõesdefederalismodescentralizadooudesociedadessemsenhorinterrompemtodaumasériedeverdadesquemuitobempoderíamosvercomodemarcaçõesdaobediênciairrestritaàlei.Numaguinadalógicaquesemprenossurpreendeporsuaforça,LaBoétiedesmontaalegitimidadedosenhor,deixandoemevidênciaapenasoqueestatemdeacomodaçãoouconveniência.TantoGodwincomoProudhonpensaramemseusdetalhesasidéiasqueconsagraramanecessidadedogoverno.Nosmostraram,certamente,umahistóriadaviolênciasistemáticaedopensamentocomplacente.Masmuitomaisdoquemostrarainvalidadedestasidéias,investiramnadescentralizaçãofederativacomoextensãodopensamentopolíticoquenãoseamoldaaouniversalismoeaqualquerumdeseusqualificativosdeocasião.OUm,senhorougovernocentralizadordestaoudaquelavertente,desvanecepelogestoirreverentequeoentendeapenascomo“maisum”. Nota 1 Wlilliam Godwin. Investigacion acerca de la justicia politica y su influencia en la virtud e la dicha generales. Buenos Aires, Editorial Americanale, 1945, p. 123. resumo Paraequacionarofederalismonointerior de uma analítica anarquista, afirmações de La Boétie, Godwin e Proudhon são combinadas, segundo a noção de série, proposta metodológica apresentada por este último. Assim, desenha-se uma série que investe na negação da autoridade central como imperativo universal, em nome de qualquer bem. Senhor ou Estado, súditos ou cidadãos, tanto faz. Questiona-se, cronologias a parte, a necessidade do Um. Uma resposta possível: o federalismo descentralizado. abstract Inordertothinkfederalismintoananarchistanalysis,claimsfromLaBoétie,GodwinandProudhonarecombinedaccordingtotheconceptoftheoriesbuiltbythelatter.Thus,itispossibletocomeupwithatheorythatdeniescentralauthorityasanuniversalimperative,onbehalfofanyone.Lordorstate,subjectorcitizens,itdoesnotmatter.ThenecessityoftheONEisquestionedapartfromchronologies.Ananswerispossible:decentralizefederalism.

quando o sol penetra no diadá um dia de sol muito bonito muito belo Stela do Patrocínio

Tgugpjcu

a dialética da autoridade e da liberdade paulo-edgaralmeidaresende * Pierre Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp. EstaobratratadoFederalismoenquantoprincípiogeraldereorganizaçãorevolucionáriadasociedade.TodaareflexãotemcomoeixoadialéticadaAutoridadeedaLiberdade.Porautoridadeentendam-seassoberanias,embasadasnatríplicetranscendência:doEstadosobreaSociedade,doCapitalsobreoTrabalho,daReligiãosobreaMente.Porliberdadeomovimentodeultrapassagemdasociedadedocapitalpelasociedadedotrabalho,doregimegovernamentalpeloregimeeconômico,darevoluçãopolíticapelarevoluçãosocial;dosocialismoestatalpelosocialismolibertário.Trata-sedocerneteóricodetodaasuaproduçãoposterior.DiantedacríticaradicalaoEstadoemsuasobrasanteriores,Proudhonsecolocadiantedohorizontemais * ProfessordoProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasSociaisPUC/SP.Co-organizador,comEdsonPassettideProudhon.SP,Ed.Atica,1985. amplodasrelaçõesentrepovos.Afederaçãoseapresenta como forma de contrabalançar a liberdade e a autoridade. Isto se torna possível na medida em que Proudhon, ao invés de aprisionar seu raciocínio no par Estado-Mercado, aprofunda sua reflexão sobre as lutas contra a desigualdade econômica, coroada pelo autoritarismo em nível político. Concebe a federação como rede de associações autônomas, com interesses comuns. Asociabilidadenosclássicosdaantiguidadetendiaasernaturalizada.Asposiçõesestruturaisdoescravoedoamo,doservoedosenhorseriampré-ordenadasnanascença.Aexplicaçãodadesigualdadenosclássicosdateoriapolíticadamodernidade,chegaaProudhonhistoricizada,mascomounificação,unidadeprecária,àbasedocontratualismooudadicotomiahegelianaentreentendimentocorporativononíveldasociedadecivilerazãouniversaldobemcomum,acessívelapenasdoânguloestatal.Éumasociabilidadesujeitaadesfazer-seearefazer-se,sempreadanodosque,nacorrelaçãodeforças,encontram-sesemocontroledaprodução.OraciocíniodeProudhonsetornacristalino:senãoháapré-ordenaçãodasociabilidadehierarquizada,senãovigoraoarranjodenatureza,seadesigualdadenãoéfenômenonatural,aquestãodopodereconômicoepolíticotemdeserapreendidaemsuarealidadehistórica.Porestatrilha,desvelaasrelaçõesdapolíticaedaeconomianasociedadecapitalistadoséculoXIX. A unidade de objetivos entre os desiguais no interior do Estado nacional é problematizada. A partir do movimento operário revigorado pela revolução industrial e a urbanização, a idéia libertária da insuficiência da política e dos limites do pacto social, na sociedade do capital, consubstanciam-se as potencialidades da sociedade do trabalho. Passa pelo crivo de sua crítica à Revolução Francesa, que proclama o advento da igualdade, da liberdade, da solidariedade. Mas ela se esgota nos formalismos de participação. Deixa como legado a autoridade, e não consolida a sociedade, antes se esmerando no seu governo. O movimento revolucionário esterilizou-se nas constituições políticas. O nivelamento dos indivíduos pelo sufrágio universal deixa intacta a não reciprocidade social. O povo sobe um degrau na ordem políticoinstitucional, mas permanece a inferioridade do trabalho em relação ao capital. Longe de pura e simplesmente desqualificar o processo desencadeado pelas Revoluções burguesas, Proudhon anota a queda da venda monárquica dos olhos do povo, que se depara com a grande contradição de participar da soberania política e permanecer subjugado economicamente. A revolução deverá então gestar o regime econômico, superando o seu contrário, o regime governamental. O revolucionário terá sobretudo de lidar com as contradições do presente, sem o afã de ter o futuro aprisionado numa ordem de idéias que o enclausure. Ninguémserácapazdeserportadordeumprojetopronto para ser implantado, formulado por vanguardas iluminadas. O que cabe é detectar o movimento da história a cada passo. E 1848 revela a consciência mais desenvolvida dos trabalhadores, que se defrontam com duas correntes de opinião: o sistema comunista governamental e o sistema mutualista proudhoniano. Nosistemacomunistagovernamentalacomunidadeuniformizadaéconcebidasobainfluênciadoprópriopreconceitodapropriedade.Acomunidadeéproprietárianãosódosbens,masdaspessoas,dasvontades.TudoépropriedadedoEstado.Omovimentooperárioécooptadopelaburocraciaopressoraqueresta-beleceaautoridadeeanulaaliberdade.Adiferençaentreosistemacapitalistaeosistemacomunistaestatalestánofatodeosistemadepropriedadeesuasvantagensmudardeendereço,comexclusãoemambososcasos,dosprodutores. O revolucionário não visa a purificar o capitalismo, como tampouco opta pela profilaxia do Estado. Tendo verve comoformaeconteúdodesuaaçãootrabalho,convencese que antes de qualquer tipo de convenção, os trabalhadores se associam na produção. Antes mesmo da legislação, da administração que centralizam o processo decisório, impondo disciplina e obediência, a sociedade se constitui de várias formas pela dinâmica econômica e é neste nível que se desvela seu formato, seu significado. Nas duas situações anteriores do capitalismo e do estatismo, o coletivo é entregue pronto de modo transcendente. No sistema mutualista, a iniciativa da ordem coletiva se constitui sem apelo a instâncias superiores, prescindindo de qualquer tipo de delegação, que ratifique a verticalização das relações. A recuperação do coletivo pela mediação do trabalho realiza a liberdade dos produtores, no sentido da autogestão, em lugar da heterogestão. Constitui-se, assim, no nível econômico a Federaçãoagrícola-industrial. Aomutualismoautogestionário,emníveleconômico,correspondeofederalismodescentralizadornonívelpolítico,oopostodahierarquiaoucentralizaçãoadministrativaegovernamental.Afederaçãoseancoranaautonomiadasunidadesfederadas,comarticulaçãonãoburocrática.AeraconstitucionaldarazãodeEstadoéchamadaasersuperadapelaeradaFederaçãopolíticaoudaDescentralização.NadireçãocontráriaaoEstadonacional,dedireçãocentralizada,Proudhondetecta,nomovimentohistórico,aalternativadaFederaçãoprogressivaquelevaàconfederaçãoderegiões,deprovíncias,comfluidezdefronteiras,delineadasemodificadasàmedidaqueodesenvolvimentosocialopostule,semsobrepor-secomomarcolimitador. Em resumo, na república de Proudhon, aliberdadeé elevada à potência três, a autoridade é reduzida à sua raiz cúbica. 1 2002 andredegenszajn* visões do estado Frank Harrison. The Modern State. Montréal, Black Rose Books, 1983, 227 pp. (…)pormaisprofundaquesejaaperdadaliberdade,nuncaestáperdidaobastante,nuncaseacabadeperdê-la Pierre Clastres Frank Harrison apresenta em seu livro um panorama sobre o Estado moderno. Apesar de ter sido escrito há quase duas décadas, mostra-se mais atual doqueamaiorpartedasanálisescontemporâneassobre o tema. Harrison constrói sua argumentação a partir da perspectiva da resistência ao Estado, através das múltiplas correntes do pensamento crítico. Conceitos como propriedade, revolução, poder e liberdade são discutidos a partir das concepções de diversos autores e tendo como pano de fundo o debate entre socialistas e anarquistas. Estanãoéumaobraimparcialouisenta.Enãopretendeser.Osubtítulodolivro,ananarchistanalysis(umaanáliseanarquista),explicitaaabordagemeacríticaqueoautordesenvolve.OlivrodeHarrisonadquiremaiorrelevâncianestemomentoemquecríticasecontestaçõesparecemserabsorvidaspeloconservadorismodominante,quenutreumafalsaesperançadeumnovomundoreconstruindooquejáestácolocado.Faltamespaçosparareflexõesqueradicalizemacríticaeprocurembuscarpossibilidadesalémdaquelasquenossãoapresentadas—dascédulasaosrealityshows. The Modern State é um livro da Black Rose Books, * Mestrando em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador do Nu-Sol. editoracanadensequepublica,desde1970,livroscríticosecontestadoresnocampodasciênciashumanas.Longedeserumaeditoracomercial,aBlackRoseBookséumprojetoeditorialquecontribuiparaodebatecríticoapartirdenovospontosdevistaereferenciais.Emumcontextonoqualadecisãodepublicarlivroséresultadodeumcálculoeconômicodefinidopelademanda,éimportanteque(ainda)existameditorasorientadasporestesprincípios.Nãoéporacasoqueolivronãofoitraduzidoparaoportuguês. Aafirmaçãodoanarquismodiantedeoutrasformasdesociabilidadeganhaaindamaisvalidadenomomentoatual,emqueesteéesvaziadodeseusentidoesuaforça.Quandonãoseidentificaoanarquismoàbaderna,eleéenquadradocomosocialismorevolucionário,pacificando,assim,odebate.Harrison,apartirdesuafundamentaçãohistóricaedaapresentaçãodosembatesentresocialistaseanarquistas,deixaclaroquaissãooselementosderupturaentreasduasperspectivas. A partir de formulações teóricas de individualismo e anarquismo, Harrison apresenta críticas às concepções socialistas de Estado e de organização social. Seja pelo viés liberal de pensadores como William Godwin ou por meio do individualismo de Max Stirner, a argumentação do autor mostra que o Estado, independente de sua forma ou organização, é um instrumento de repressão edeproteçãodapropriedade,sejaesteumEstadoliberal ou socialista. “Todo Estado”, afirma Max Stirner, “é despotismo, seja o déspota um ou muitos”. Emumaépocaemqueasdiscussõespreponderantes realizam-se em torno da reforma do Estado, Harrison é preciso em demonstrar que este tem sido reformado incessantemente, e desde sua origem tem permanecido o mesmo. Para que o Estado sobreviva e possa se conservar, são necessárias reformas que tragam a idéia de um constante aprimoramento. Esta idéia também não é recente. Maquiavel já dizia que um bom príncipe é aquele capaz de introduzir aquilo que já existe como sefosseanovidade,eassimconservaroEstadoeopoderdosoberano. AanáliseapresentadasobreoEstadoesuarelaçãocomoindivíduonãoperderásuaatualidadeenquantoasociedadeestruturar-sesobrevaloresdeautoridadeehierarquia.Harrisonpretende,emseulivro,des-construiraconcepçãosocialistaderevoluçãoeliber-dade,demonstrandoqueadominaçãonãoédeterminadapelascondiçõesdaquelequeestánocontroledoEstado,maspelasuaprópriaexistência.AliberdadenoanarquismonãosealcançapelaconscientizaçãodasmassasoupelatomadadoEstado,pelasubstituiçãodapropriedadeprivadapelapropriedadeestataloupelamobilizaçãoeparticipaçãodetodos.Aliberdaderealiza-senasuaprática,pormeiodeassociaçõeslivrese,principalmente,porumaexperiêncialibertáriadevida. luce em travessias, memórias e percursos anarquistas edson lopes * Margareth Rago. Entre a liberdade e a história: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo, UNESP, 2001, 368 pp. Não se trata de uma biografia, mas de um diálogo entre a vida da libertária Luce Fabbri e sua produção intelectual, com a constituição do movimento anarquista na Itália e América Latina. Margareth Rago não se aparta das conversas miúdas, inventando o passado, desvelando ínfimas, expressivas e incomensuráveis personalidades anarquistas e conquistas do movimento, em diferentes momentos *Pesquisador do Nu-Sol. históricos. A presença dos fragmentos da memória de Luce Fabbri, não está para a construção fixa, linear e pronta de seu passado. Respeita-se aí a possibilidade caótica da rememorização, com sua temporalidade própria, imbricada em sentimentos e silêncios e suas emergências desconhecidas ou ao menos provocadas: “não se trata apenas de contar a história de uma anarquista, mas de contá-la libertariamente” (p. 26). Entre os capítulos do livro, os aspectos mais marcantes da vida de Luce, sua relação com o pai, o anarquista Luigi Fabbri, a ascensão do fascismo na Itália, perseguições, exílio, a luta no espaço político, a poesia, o casamento, a experiência espanhola — enfim, aLuceanarquista—;nãonumadispersãoqueosisolam, mas interligados aos acontecimentos históricos do período entre guerras do século XX, ditaduras latinas e tantos anarquistas em trânsito nômade, entre lugares e costumes. ParaMargareth,boapartedahistóriadatradiçãolibertáriaencontra-sevelada,interrompidapelosilêncio;desconhece-semuitodaproduçãointelectualdealgunsanarquistaseaseditorasinsistememnãoospublicar.AnarrativadaprópriaLuce,fazresgataralgunsanarquistasjádevozescaladaspelotempo,apresentandotantoàpesquisadoracomoaoleitorasurpresadeterdeencontrá-loseàssuasvidasintensas,inquietasearriscadas.Entreeles,opróprioLuigiFabbri,quetrabalhouinsistentementeemdiversasimprensasanarquistas,naEuropaeAméricaLatina;ouConcepciónFernandes,queLucechegouaconhecer,manteremmemória,masquesemnenhumlivroescrito,écitadaapenasemnotasdarevistaArgentina“TodoesHistória”emqueéapresentadacomo“oradora,poetaexcepcionaledirigentepolíticadegrandecoerência”. À intensidade do fluxo de imigrantes à América Latina, que possibilitou a existência do anarquismo em países como Uruguai, Argentina, Brasil, México, Chile e Peru, correspondia o fluxo de idéias. A “imigração francesa, italiana, portuguesa e espanhola, reunindo muitos ativistas internacionalistas, anarquistas e socialistasfugitivosdeseuspaíses,provoca,semdúvida, uma intensa movimentação social entre 1870 e 1930” (p. 118).Essesanarquistasseaglutinaramemsindicatos,centrosdeculturasocial,gruposdeestudo,bibliotecaslivres,teatro,imprensa,etc.Portodososlados,ofascismo,asditaduraseasperseguiçõespoliciais.EsteéopercursodeLuce,quefogedofascismodeBolonha,naItália,exila-secomafamílianoUruguai,ondeencontraumpovodetradiçãolibertáriaqueremeteàdécadade1870,quandoimigrantesfrancesesprovenientesdaComunadeParis,jáhaviamcriadoaSeçãoUruguaiadaAssociaçãoInternacionaldosTraba-lhadores(AIT),alémdeperiódicoscomoElInternacional,LaRevoluciónSocial,LaLuchaOperariaeLaFederacióndelosTrabajadores,quejáapresentavamosideáriosanarquistasaostrabalhadoresuruguaios;afugadeMalatestaparaArgentinaesuaerrânciapelaAméricajáhaviaintensificadotambémapropagandalibertária. Luce esteve altamente engajada na luta contra os totalitarismos, fossem eles os de Mussolini, Franco, Gabriel, Terra, ou as ditaduras militares das décadas de 1970 e 1980, atuando com amigos e colaboradores como Max Netlau, Abad de Santillán, Hugo Treni, Maria Lacerda de Moura, Louise Michel, Nelly Ferreira, Ana Maria Gómez, Ermácora, e outras, em revistas, jornais, fundos de apoio e inventando sociabilidades libertárias opostas ao autoritarismo, em momentos nos quais os anarquistas eram progressivamente derrotados tanto pelarepressãodoEstadoburguêscomopelocomunismo. Nesta constelação de preocupações e radicalidades resistentes, confunde-se a história do anarquismo e a história pessoal de Luce Fabbri, como se formassem uma malha. O anarquismo para Luce constitui-se como experiência intensa, não só como resposta ao poder centralizado, mas como uma prática libertária que impregna a vida, como constituição ética sofisticada. Luce esforçou-se em dizer que o anarquismo não comporta catecismo. Implica pequenas construções coletivas e individuais que ampliem a liberdade; e se em algum momento arriscou definições é porque entende o anarquismo como um saber histórico que necessita atualizar-se sem apagar suas marcas. Sua concepção dispensa uma certeza metafísica de um final perfeito, absoluto: interessam-lhe os meios, o presente cheiodeinvençõesparaconstruçãodeumavidabaseada na liberdade, solidariedade e justiça social, temas que lhe são caros. Luce e Margareth Rago se encontraram pela primeira vez por ocasião do Congresso “Outros 500. Pensamento Libertário Internacional”, realizado em 1992 na PUC/SP. Margareth procurava figuras marcantes do anarquismo, quando estudava as “mulheres anarquistas”. Tornaram-se amigas. No livro encontramos algumas anarquistas marcantes, delicadas inquietas com a coragem de afirmar anarquismos. thiagorodrigues ousar ser uns Doris Accioly e Silva & Sonia Alem Marrach (orgs.). Maurício Tragtenberg, uma vida para as Ciências Humanas. São Paulo, Editora da Unesp/Fapesp, 2001, 328 pp. Maurício, um homem de palavra. Da gramática acadêmica antropofágica, do verbo combativo popular, das idéias flamejantes em duelos viscerais, do compromisso consigo. Em sala de aula, nas páginas de jornal, na porta de fábricas, em teses, em livros, em casa:coerênciaheterodoxa.EsteMauríciosalta,pluralemsi,destacoletâneadetextosnascidadeumajornadadepalestras,homônimaaolivro,erealizadanaFaculdadedeFilosofiaeCiênciasdaUNESPdeMarília,em1999.Falecido,então,hápouco,Maurícioemergedasfalas,forte,íntegro,vivo.Ostextostrafegamentredepoimentospessoais,muitasvezesemocionadosequaseherméticosàquelequenãopartilhoudasexperiênciasrelatadas,ereflexõessobreaproduçãoacadêmicadeTragtenberg,suatrajetóriaintelectual,suainfluêncianaacademiaesuaposturanosembatespolíticos.Dastrêspartesemqueseestruturaolivro,respectivamente,Memóriasdeumconvívio,ContribuiçãoàsciênciashumanaseCoerênciaentreteoriaeprática,omosaicodecontribuiçõesdosautorescompõeumMaurícioTragtenbergfirmeecombativo,corajosonãoporambicionarostatusdemártir,maspordeliberadaescolhaexistencial. Somosapresentadosaoautodidata,ausentedaescoladesdemuitojovemesemafinidadealgumapelapráticacomercialtãovalorizadaemsuafamília.Longedaescola,masimersonumasedeinsaciáveldesaber,Maurícionãoseforma,aocontrário,seconstróiaproximando-se,comouvidosinteressadíssimos,depessoasinteressantes.Em“MaurícioTragtenbergeafamíliaAbramo:algumaslembranças”e“MaurícioTragtenbergnamocidade”temosacesso,pelosrelatosdeLéliaAbramoeAntônioCândido,afragmentosdesseMauríciojovemesedento,devoradordelivrosnaMáriodeAndrade,participanteativodediscussõespolíticas.Discussõesquevibravamnocampodacríticasocial,damilitânciasocialista,doaprendizadodosclássicos.Nutrindo-sedoconvíviocomovelhosocialistaHermínioSacchetta,Maurícioleu,discutiuefiltrouosaberproduzidopor‘marxistasmalditos’comoRosaLuxemburgemtemposdestalinismo.Conheceu,também,ospensadoreslibertários:Proudhon,Bakunin,Kropotkin.Incômodoemambientessectárioseexclusivistas,Tragtenbergeraavessoaverdades,aoincontestável. Aaversãoaoesquerdismoautoritário,conduziuMaurícioaproduzir-se,comoafirmaEdsonPassettiemseuartigo,um“socialistaheterodoxo”.“Intelectualherético”,ressaltaRicardoAntunes,autênticoe,poressarazão,insuportávelaosmuitossacerdotesdascertezas.AoconjugarMarx,BakunineWeber,Tragtenbergproduziuumaferinareflexãoacercadaburocracianocapitalismocontemporâneo,semjamaisdescuidardacríticacontumazà“universidadetecnocrática”formadorade“assessoresdetiranos”,“‘recursoshumanos’paraaburocraciadasempresasprivadasedoPoderPúblico”1. A rigidez no pensar era inconcebível para alguém que aprendeuemliberdade,investindoemseustalentospara se tornar, como nos diz Paulo Resende em seu texto, um “intelectual sem cátedra”. Intelectualiconoclasta,Mauríciofoi,também,militantesingular.Sempredesconfiadodasconvicçõesintransigentes,Tragtenbergatrevia-seanãoseidentificarcomumpartido,umsindicato,umacorrentedepensamento.Nolivro,relatosdeJoséCarlosMoreleAntônioOzaídaSilva,entreoutros,nosapresentamumMaurícioTragtenbergempermanenteatividadepolíticaextra-acadêmica.Aindaquepresenteemmomentosimportantesdonovosindicalismodofinaldadécadade1970,Maurícionãoexibiasuasarmaspreferencialmenteempalanques.Convictodequeumtrabalhadorsóserialivresenãodelegasseaninguématarefadelutarporsi,MaurícioTragtenberginvestiucomdeterminaçãonadefesadaautogestão,daorganizaçãosemrepresentantes,daautonomianareivindicaçãoporinteresseslocais.Socialistalibertário,Maurícionãoacreditavanaelaboraçãovanguardistadosanseiosproletários.Assim,atravésdasuacoluna“NoBatente”,publicadaduasvezesporsemananoNotíciasPopularesdosanosoitenta,opensador-militantenãosearvorouafalarpelostrabalhadores,masnoutrosentido,fezdaqueleespaçoumaviaparaqueassalariadospudessemfalareseouvir.Posturaanarquistacontráriaàcessãodevozeinimigadasvanguardasclarividentes.Acoluna,segundo Maurício, “dirige-se a quem está ‘no batente’ e não àqueles que estão afastados da produção querendo falar em nome dos que trabalham” (apud Silva:123). Em linguagem direta, um golpe certeiro em intelectuais oportunistas e sindicalistas pelegos. Em discussão que nos evoca o diálogo Deleuze-Foucault acerca do papel do intelectual, Maurício crê na validade de um ‘saber operário’ completamente apto a entender e criticar sua realidade, fato que faz do intelectual instrumento para a luta dos trabalhadores, não cabendo a interpretação e o refino dos supostos murmúrios pueris emitidos pelas massas. A visão libertária acerca do indissociável duplo teoria/prática se fez impressa em reflexões como A delinqüência acadêmica e Saber e poder (ambos de 1979) e na sua atividade militante-jornalística. Maurício via a pequenez das disputas por prebendas e títulos, postos e honrarias porque dispunha de olhos que aprenderam a enxergar ‘de fora’ e ‘para fora’ da academia, mesmo fazendo parte dela. Ou melhor, mesmo estando nela. Podemos,certamente,desconfiardeumlivroquehomenageiaquemnãodispunhaopeitoacomendas.Contudo,ostextossemostram,emsuagrandemaioria,comorelatossobreumagrandevida.Vidaque,semdúvida,seduzeinstigaoleitorquepoucoconheceaobradeMaurícioTragtenberg.Defato,aspoucaspáginasreproduzidasdeseulivroMemóriasdeumautodidatanoBrasil,deixamvontadepormais.Maurício,oquenãofalavapelosoutros,aindaémaissaborosoquandofala,elemesmo,desi.Acoletâneadeartigos,noentanto,nãopodeserconsideradalaudatória:éhomenagem,sim,massemdevoção.Ostextosapresentamportasparaqueoutrossedentosadentremomundodesteinteressa-díssimointeressadoquefoiMaurícioTragtenberg. Nota 1 TragtenbergemBurocraciaeIdeologia,apudGandini:170,172. estrela de vestido azul e óculos escuros saleteoliveira Stela do Patrocínio. Reino dos bichos e dos animaiséomeu nome. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2001, 157 pp. Stela rocha em menir. Stela estrela. Não uma estrela aleatória. Estrela do mar, assim ela designa seu nome. Estrelasalgadademergulhosrasoseprofundos.Estrela na superfície da explosão de gases que lhe imprimem cor. Stela-livro.ApublicaçãodeReinodosbichosedosanimaiséomeunomeéresultadodoesforçodeinúmeraspessoasqueesbarraramemStelaemmeioasuaexistêncialivre,apesardeseuconfinamentomanicomialdurantetrintaanos.Olivrofoiorganizado,cuidadosamente,porVivianeMosé,emnovepartesintituladasporversosextraídosdospoemasfaladosdeStela,poiselafaziapoesiafalando:“Umhomemchamadocavaloéomeunome”;“EusouSteladoPatrocínio,bempatrocinada”;“Nosgaseseumeformei,eutomeicor”;“Euenxergoomundo”;“Aparedeaindanãoerapintadadeazul”;“Reinodosbichosedosanimaiséomeunome”;“Botandoomundointeiropragozaresemgozonenhum”;“Procurandofalatório”e“StelaporStela”.AAzougue-Editorialnogestocerteirodeargento-vivopresenteiaapoesiacomapresençadaartedeStela.AsensibilidadedoeditorepoetaSérgioCohnfoitomadapelapalavra-invençãodaestrela-salso-argento. Stela-BaíadaGuanabara.Oleitoréarremessadopara dentro da boca banguela da artista repleta de seu “falatório”, como ela prefere dizer. A boca insubmissa que cospe psicotrópicos e ignorâncias. Ela sabe muito bem o que quer degustar. Gosta de cigarros, fósforos, bolachas de chocolate, coca-cola e óculos de sol. Não nasceu para pastar. Negra alta de porte altivo, caminhando elegantemente sobre o ossário do cárcere manicomial, enfeitada de panos deixando antever seus braços pintados de branco. Espargindo em seu redor o desconcerto do ar no espaço vazio. Stelafoiapanhadanajuventude,arrancadadeseuvestidoazulquandodebruçavanochãodaRuaVoluntáriosdaPátria,emBotafogo,nabuscadeseusóculosescuros.Stelafoiapanhadaaos21anospelosvoluntáriosdapátriaedanormalidadedarazão.Deramseudiagnóstico.ConstruíramStelacomodoentemental:“personalidadepsicopáticamaisesquizofreniahebefrênica,evoluindosobreaçõespsicóticas”.Internaram-naem15deagostode1962noCentroPsiquiátricoPedroII,noEngenhodeDentro.MaselanoseuvestidoazulsóqueriaacharseusóculosescurosparairatéaCentraldoBrasiledepoisaCopacabana.Seusóculosescurosquebraram.Em1966foitransferidaparaaColôniaJulianoMoreira,ondepermaneceatésuamorte,em1992.Acometidadeumahiperglicemiagraveamputam-lheumaperna.Stela,apartirdeentão,senegaacomereafalar.Seucorpoétomadoporumainfecção.Arrancaramseusdentes,suaperna,seuvestidoazuleseusóculosescuros. Stela falatório-artista. Stela se negou a morrer todas as vezes que a mataram. Sua poesia é uma evidência disto. Evidência no sentido atribuído por Artaud ao afirmar que só acreditava nas evidências capazes de agitar sua medula e suas vísceras. A arte de Stela convulsiona os sentidos e subverte a linguagem. Contradiz a convenção formal que provoca a cisão entre a língua que fala e aquela que escreve. O dito do espaço grafado do papel jorra de sua boca no exercício de uma fala que não cessa de dizer. Escrita-gesto de saltos dos mil ritmos impressos por seu diafragma. Linguagem livre. Abolição da sintaxe. Língua e estômago exigentes. Estes eram seus instrumentos, aliados de sua paixão pela vida. Stela-inventa-corpo. De gestos precisos faz nascer língua, pernas, cabeça, pés, estômago. Milbichos reinventados. Distante e próxima do grito selvagem no silêncio do nada. Repleta no vazio transbordante da guerra incessante contra paredes brancas, paredes pintadas de azul. Guerra declarada contra o confinamento, em favor da vida. Stela não se engana, na batalha entre razões soberanas em nome da verdade centralizada, ela afirma: “só o cientista vence outro cientista”. Stela intensifica suas cores na tessitura escatológica de quem se sabe viva. Seu gesto-força sofisticaacrueldade.Coragemaudaznaultrapassagem do gozo. Instante átimo no vácuo de sua boca antropofágica. Engolir Stela é um convite e um risco, para quem, como ela, ainda se sabe vivo. PW/UQN

PublicaçõesdoNúcleodeSociabilidadeLibertária,doPrograma de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. hypomnemata Publicação eletrônica mensal. 1999-2002. vídeos Libertárias, 1999 Foucault-Ficô, 2000 ColeçãoEscritosAnarquistas 1. a anarquia Errico Malatesta

2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston

3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.

4. municipalismo libertário Murray Bookchin

5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux

6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky

7. a bibliografia libertária -um século de anarquismo em língua portuguesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva

8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin

verve

9. deus e o estado Mikhail Bakunin

10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin

11. escritos revolucionários Errico Malatesta

12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares

13. do anarquismo Nicolas Walter

14. osanarquistaseaseleiçõesBakunin,Kropotkin,Malatesta,Mirbeau,Grave,Vidal,ZoD‘Axa,Bellegarrigue&Cubero

15. surrealismoeanarquismoJoyeux,Ferrua,Péret,Doumayrou,Breton,Schuster,Kyrou&Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia

Nestor Makhno, Alexandre Skirda e Alexandre Berkman 17. arte e anarquismo Pietro Ferrua, Michel Ragon, Gaetano Manfredonia, Dominique Berthet e Cristina Valenti

18. análise do estado -o estado como paradigma do poder Eduardo Colombo

19. oessencialproudhonFranciscoTrindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

Livro PierreJosephProudhon.DoPrincípioFederativo.SãoPaulo,Ed.Imaginário,2001,134pp. Achiamé — estante libertária Anarquismo no Banco dos Réus (O) (1969-1972) œ Edgar Rodrigues œ 206 P. Ilust. Anarquismo e Feminismo œ Margareth Rago œ 32 P.

Anarquismo ou Marxismo: uma opção política œ Gilberto

Green œ 200 P. Anarquismo œ uma Introdução Filosófica e Política œ Sílvio Gallo œ 100 P.

Anarquismo à Moda Antiga œ Edgar Rodrigues œ48 P.

Anarquismo Hoje (O) œ Jorge E. Silva œ80P.

Atuação Libertária no Brasil œ Oscar Farinha Neto œ 104 P.

Anarquismo na Escola, no Teatro, na Poesia (O) œ Edgar Rodrigues œ 340 P. Ilust. Bartolomeu & Nicolau œ Olavo Cabral Ramos Filho œ24P.

Banqueiro Anarquista (O) œ Fernando Pessoa œ56P.

Colônia Cecília œ (Um Pouco de Ideal e de Polenta) œ

(Teatro)-RenataPallottiniœ72P.Companheiros(Os)œEdgarRodriguesœVol.1,2,3,4,5. Construção da Anarquia œ Gilbert R. Ledon œ56P. Despindo a Política: Notas Para Uma Crítica das Visões Políticas do Mundo œ Jean-Michel Michelena œ56P. Dois Textos da Maturidade œ Errico Malatesta œ16P.

DoutrinaAnarquistaaoAlcancedeTodos(A)œJoséOiticicaœ152P. EducaçãoLibertária:textosdeumSeminárioœMariaOlyPey(Org.)eOutrosœ208P.DemocracianoTrabalhoœHaroldB.Wilsonœ176P. Entre Ditaduras (1948 -1962) œ Edgar Rodrigues œ 304 P. Ilust.

Esboço para uma História da Escola no Brasil œ Algumas Reflexões Libertárias œ Diversos Autores œ 128 P.

verve

Foucault e o Anarquismo œ Salvo Vaccaro œ40P. Florentino de Carvalho œ pensamento social de um anarquista œ Rogério N. Z. Nascimento œ 208 P. Guia dos Cornudos œ Charles Fourier œ24 P. Homem em Busca da Terra Livre (O) œ Edgar Rodrigues 272 P. ImprensaLibertáriadoCeará(1908-1922)(A)œAdelaideGonçalveseJorgeE.Silvaœ316P.IndivíduonaSociedade(O)œEmmaGoldmanœ40P. Libertários (Os) (José Oiticica, Maria Lacerda de Moura,

Neno Vasco, Fábio Luz) œ Edgar Rodrigues œ 218 P. Ilust.

Moral Pública & Martírio Privado œ A Colônia Penal da

Clevelândia do Norte œ Alexandre Samis œ88 P.

Nova Aurora Libertária (A) (1945-1948) œ Edgar Rodrigues

œ 232 P. Ilust. 12 Provas da Inexistência de Deus œ Sébastien Faure œ80P.

Pedagogia Libertária na História da Educação Brasileira

(A) œ Neiva B. Kassick E Clóvis N. Kassick œ36P. Poder e Domínio: uma visão anarquista œ Fábio López López œ 200 P. Política da Libertação Urbana œ Stephen Shecter œ 200 P. Porque não Eleger Governantes œ Marcos Cesar (Grito) œ 72 P. Pós-Estruturalismo e Anarquismo œ Todd May œ40P. Letralivre (Revistas) œNo29, 30, 31 E 32 Letralivre: CaixaPostal5008320062-970-Riodejaneiro-RJletralivre@gbl.com.brTel./Fax.(21)2544-5552 destemodo,amigosmeus,poder-nos-emosdefender,pelomenosporalgumtempodasduasterríveispestesquenosameaçam:otédioprofundodohomemeaprofundacompaixãopelohomem Nietzsche